Excesso

// por Cristina Ribas

São muitas anotações. São anotações que vão caindo pelas bordas do papel. Dos papéis colados na parede. Das ideias que se repetem, e que só na repetição com conjunções temporais tomam consistência. Aprendem umas com as outras, as ideias, e vão me avisando desse eu constituído entre elas. Processual, incompleto, excessivo. Esse eu constituído entre elas nem é um eu, é um intento de mergulho no excesso, no puro excesso que as concatena, as ideias, os eventos, as anotações. Intento intensivo. Sentido.

Produzimos por excesso. Por um fluxo aberto, ar-atmosférico, que vai elencando e anotando e sobrepondo e repetindo. E diferindo as coisas, o tudo mais, os restos. Vida é coisa em excesso, vida é coisa que só existe por meio de um excesso.

Não excesso como coisa secretada, expelida do aperto de outra coisa, estruturada. Não tanto resto, como em Jean Baudrillard, quando fala de um resto secretado por uma máquina (*). Sobre o excesso, que ele chama de resto, ele diz: “É sobre esse resto que a máquina social se relança e encontra uma nova energia.” Entre o excesso que eu quero falar o resto de Baudrillard pode não haver, portanto, muito desencontro.

Mas e que restos são esses? Perseguidos pela máquina social, produtiva? Na dinâmica que persegue as sobras, as minorias, a pequena gente, a mulher a parir (depois de espremida no saguão do hospital, provavelmente, ela tem que voltar  a trabalhar num curtíssimo espaço de tempo), os restos seriam também aquilo tudo que pode ser novamente quantificado e reformatado na ordem de uma normalidade. Baudrillard de novo: “o resíduo pode ser à dimensão total do real. Quando um sistema absorveu tudo, quando se adicionou tudo, quando não resta nada, a soma toda reverte para o resto e torna-se resto.”  Mas pode ser que hoje já nem haja mais resto, diz ele, “pelo fato de se estar em toda a parte.”

Nesse sentido o resto se torna o próprio excesso. O resto pode então reverter. (Reversibilidade que faz rir, diz ele.) E o excesso, assim como esse outro resto, pode ser que se faça na lógica da produção desejante, de um produzir que não pode passar pelo medir. Da efetuação de um desejo, de um produzir que se faz ele mesmo pelo desejo desmedido. O excesso é então aquela parte sempre acometida de um não, de um escape. De já se foi.

O excesso é assim acometido de outros sim. O excesso é assim autonomização pura da ficção, artificialidade pura, coisa secreta ela mesma (por si própria, para si própria), nem deixa rastros? Natureza pura do movimento, natureza pura de um fazer. Gozo incessante, manutenção do gozo, testosterona, cheiro de gente.

O excesso talvez não tenha estrutura, e tudo e qualquer coisa que se faça seja só coisa expressa pelos excessos. Excessos contudo disponíveis às neuroses, às medidas, às apropriações, fazendo que o mundo seja puro excesso, ao mesmo tempo que seja o mundo puro excesso medido, regulamentado, registrado, cortado, apropriado.

O excesso duvida da determinação que vem de fora, fazendo dela coisa cabisbaixa. Do que fazemos sabe o excesso de uma certa soberania, mas também de uma extrema vulgaridade. O excesso que deriva parece nos cercar. Ou será que somos, na verdade, feitos vulgares do excesso?

Há uma incongruência em arriscar dizer que há excessos improdutivos, visto que só há excessos produtivos, que são eles mesmos a coisa toda a fazer virar a atenção. A sintetização do excesso é nada mais que a natureza do controle, fazendo do controle uma estratégia estúpida que vem para codificar ou trilhar o que está se movimentando. Mas é que para mostrar o excesso, sem que sejamos engolidos por ele, precisamos do fragmento. Me parece que fragmentos produtivos são aqueles que carregam a intensidade do excesso em si, sem começo, e sem fim. Excesso como puro meio.

O excesso é, então, uma espécie de sublime, um sem bordas,
espaçoso, meio em descontrole, ao mesmo tempo pura ficção, e natureza pura

(*) Jean Baudrillard, “O resto”, Em Simulacros e simulação (1981) Lisboa: Antropos

Manifestações

manifestações > travesti

// por Inês Nin

02/07/2013

travesti é amor. aqui, outros nomes, uma apropriação. mídia travesti de asinhas de fora, se faz de amiga, quer assaltar as máscaras de multidão. violência de estado corrompeu nossas ruas. contação de alertas, gente no chão: pensamento difuso, escreve-se para fagocitar os termos, desentranhar os caminhos por entre as nervuras do acontecimento.

derivaceleste:

saber emaranhar os acasos nas estranhas lágrimas provocadas pelos anteriores.

o medo, a sede, a luta e o sossego se contaminam uns aos outros até não existirem mais.

não há permutas, marmotas, percepções inertes ou qualquer outro sentido além daquele visível, ainda que tão turvo, paspalho:

serão neves, tudo ao inverso. ou talvez não, coisadura. não serão fascistas a nos buscar nas casas, senhora no batente, senhor na multidão (infame ilógica inerte que perdura). enxame de refugiados na tijuca, naquela rua perto do estádio, encurralados no próprio quintal de casa. ninguém entende o assunto em voga, há tanta confusão.

de voz em voz uns tentam pintar as cores todas de verde e amarelo, as janelas de inferno, as lutas de brincadeira e então desvalorizam o todo, a própria multidão. em processos, recessos e mistérios, porque são muitos e mil-ações.

não tem jeito de cessar o grito porque vem de longe, de muitos, muitos anos, adormecido que estava nos pulmões de tantos, expelido enfim por aqueles que puderam se manter vivos de alguma forma. e não é caso de impeachment, sem surto. isso é tudo lorota turva, e muito simples, um caso de apropriação:

(explicaremos primeiro a oposição)

reacionário (adj.) é aquele que é contrário a quaisquer mudanças (sociais e/ou políticas); que se opõe à democracia; antidemocrático. sinônimos: antidemocrático, antiliberal, retrógrado e ultraconservador.

(nada como um be-a-bá das curvas)

tampouco nos iludamos com o liberal (s.m.), isto é, aquele que é partidário da liberdade em matéria política ou econômica. no plano econômico, é um perspicaz enganador, astuto defensor das desigualdades e do dinheiro no bolso dos indivíduos (sic) de bem.

nenhum deles representa um perímetro maior que o próprio umbigo. talvez, e digo sem muita convicção, sejam capazes de estender algum apreço a familiares e uns poucos semelhantes, pelo puro louvor conferido à família e à propriedade, ambas instituições tão intimamente conectadas. compartilham regras, egoísmos e convenções.

campo minado! acabaram nossos montes, direi. poderia ser – a crise já se estende por tanto tempo que mal é possível morar na cidade, e então lembramos de tantos problemas interestaduais e tão mais antigos: a polícia militar.

(militar é um órgão capaz de eliminar todos os outros, e, por isso mesmo, deve ter sua existência sumariamente questionada)

e então os bondes, as cores. os trios elétricos que se não estivessem cercados de tantos políciais (e nunca entenderemos tantos policiais) seriam carnavalescos, polivalentes quaisquer-uns com tanto orgulho de enfim existir. sua manifestação nada mais é que uma afirmação da própria existência. decidem ter voz. depois de tanto tempo que não se sabe ao certo de crença forçação velada em crer num sistema de números, morfemas, eixos temáticos e não se sabe ao certo e nunca em quem votar – requisito infame de uma política de delegações.

hannah arendt diz que quando há autoridade, não há ação política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou pequeno grupo que governa. pois então expliquemos, para fazer frente os confusos, gente que confunde totalitarismo com revolução (soa surpreendente, mas vive-se num mundo de disfarces, e nem é tão nova a ideia)

desacredita no sistema em ritmo contagiante de alienação // os espaços abertos são ricos em propostas e experimentos // há aqueles (e são muitos) que procuram lideranças/desejam lideranças/querem depor o lugar // me pergunto se precisamos de lideranças em qualquer lugar // o plural é importante // não se trata de verde e amarelo // bandeiras vermelhas representam grandes articulações coletivas por direitos sociais, nunca se esqueça disso // mídia golpista, que termo sensacional // veja, minhas máscaras foram usadas por outrem // ela foi às ruas e não sabia porquê // os discursos mudaram e continuou seguindo a marcha // mudaram o rumo e alguém ficou?

aqueles que pintam de branco são aqueles mesmos que desejarão eliminar todos os que não puderem se vestir da mesma cor.

você quer ser eliminado? ou espera obter uma fatia do bolo?

política de recortes, de cartas marcadas, de confusão. publicidade, política de imagens, vote no cara legal! os códigos binários e seus comandantes esperam somente respostas de sim-ou-não, são surdos de formação. no ministério das cartas altas, há interfaces e intermeios, ideias que protegem outras, surtações sim, mas muita blindagem, tanto de gentes quanto de informação. as curvas se contaminam, se misturam, não existe pureza no sistema: política de disputas, muita gana, fica um lembrete: a política é dura, mas é negociação. é perigo quando não se definem os temas, fica azul de imensidão

(sabe, aquele que preenche as arestas, cega no horizonte e se deixa engolir no sifão)

baderna é nossa aliada mais vasta, sim, posto que: vândalos são os policiais e seus mandantes. mas se nos chamam todos vândalos, se inserem vândalos entre nós, se vandalismo é a última moda da passeata multicolor da esquina, se qualquer passante é um vândalo em potencial, se o opressor é quem tem razão, se dão vazão às armas, tratam rua de cartazes como batalha campal, em suma, se nos bloqueiam, e atacam, seja nas ruas, em casa, em todo lugar, se não pode tanta coisa, se a fifa pode, se os donos podem, se a tevê pode, se o jornal quer convencer a sua mãe do nosso vandalismo, então sim, somos todos vândalos, vândalos venceremos, vândalismo vão de caminhar na rua, correr do gás, cair no chão..

curioso notar que as bandeiras do começo eram pelo pleno direito de circular – de andar! pois se cortam as pernas e cobram caro pelas próteses, cobrem tudo de cimento e aqui só passa carro blindado!

que espaço é esse forjado sobre tanta argamassa de minérios e gente que veio porque acredita que precisa trabalhar, que não come se não tiver sangue pra derramar, massa de manobra e ahhh.

faltam dores cores palavras pra dizer o porque dos tormentos, a coisa é tudo menos plana, vigente mas cheia dos interstícios estelares e sem muitas rotas de fuga (antes houvesse – a rota maior pede uma passagem de volta, pagamento no cartão, endividamento)

roda de chão sem voltagem, rebobina tudo, eu não quero levar porrada de policial.

acordar com helicóptero, quintal de casa como campo de batalha.

celebridades felizes na televisão, todos canarinhos.

esporte é travestimento de exploração.

 vocabpol em 03122014 Copa, entradas, expressão, fala, manifestações, vocábulo

Transdução

– ou “Guia para orientar-se na multidão”

// por Pedro B. Mendes e Fernanda Kutwak (1)

Que peut un homme pour autant qu’il n’est pas seul?
[O que pode um homem uma vez que ele não está só?]
– Muriel Combes

 

Toda relação é, por princípio, trans

Diálogo

Se relacionar-se é por-se às voltas com o mundo do outro, e sobretudo de outrem – aqueles que não estando presentes se fazem efetivos na ausência, implicados que são na relação contrastiva necessária à nossa própria singularidade – é preciso afirmar algumas condições ao diálogo:

1) a existência de uma mesma língua, longe de nos igualar, faz emergir as diferenças, torna palpáveis as distâncias entre nós que, de outra forma, passariam desapercebidas; cada fonema, palavra ou fórmula linguística apela à nossa experiência de vida, a nossas preferências, nossos hábitos e cegueiras, cuja combinação é tão múltipla quanto o é nossa vida – e as línguas como parte constituinte delas. Sozinhos em nossos mundos-modos somos capazes de perceber as coisas apenas de acordo com nosso próprio ponto de vista, nossa própria singularidade. Se isto não é suficiente para nos colocar em contato com a diferença, não em termos radicais como exige nosso presente, deveria bastar para nos fazer perceber a singularidade de nosso próprio caso. Em outras palavras, esse ponto de vista só pode existir por que há outros que dele se diferenciam. É em contraste com outrem que nossas vidas são possíveis.

2) Todo diálogo é coextensivo à produção de um mapa experimental (complexidade) e instável que deve nos dar, a cada momento, os aclives e declives de uma relação, suas possibilidades, suas entradas e contornos, sem os quais toda conversação caminha inevitavelmente para um fim. Lacan dizia que a boa análise consiste em construir a boa distância em relação a tudo aquilo que nos afeta. O contraste entre as singularidades é um processo dinâmico de diferenciação, em que as distâncias vão aumentando ou diminuindo, em todo caso variando, construindo erraticamente aquilo que, por falta de imaginação, convencionou-se atribuir a uma hipotética “primeira pessoa” pura, do singular ou do plural, pouco importa.

3) O melhor mapa, ou antes, o único mapa possível de nós mesmos é aquele traçado pelos outros. A autoimagem é na verdade um patchwork constituído de imagens outras, imagens que os outros vão pintando de nós nos diversos encontros que entretecemos durante a vida. Aquilo que atribuímos ao “eu” e ao “nós” nada mais é que o recorte precário e cambiante – um espectro – dos vários atravessamentos que somos convocados a viver. (hidrosolidariedade) Portanto, se queremos saber como vamos ou (re)agimos em uma determinada situação, nada melhor que observar a sombra que fazemos nas luminosidades alheias, e vice-versa, a luz que projetamos sobre os corpos dos outros.

4) A palavra portuguesa “nós” dá conta da ambiguidade sutil de nossa condição. O “nós”, primeira pessoa do plural, contém a multiplicidade de relações que se esconde dentro do sujeito que age. Mas mais que conter, os “nós” da rede de pessoas que somos libera a diferença subsumida em uma suposta unidade da ação. Somos diferentes em relação a cada situação. Diferimos todo o tempo de nós mesmos. O jogo daquilo que resta e do que avança a cada encontro é exatamente o que tentamos conter precariamente com as pessoas verbais e o que torna possível que, sendo nós mesmos, sejamos tantos outros a cada momento. Nós: pontos em que convergem vias de comunicação.

5) Da mesma forma, cada combinação que traçamos ou de que fazemos parte tem possibilidades distintas, de acordo com os actantes-ingredientes relacionados e com as variações a que nos expomos e a que somos submetidos. Portanto, sem entrar em questões relacionadas à nossa importância no mundo – muito diminuta, é sempre provável – convém nos atermos às impressões que literalmente deixamos por onde quer que passemos. Nossos ideais são louváveis, nossas utopias parecem perfeitas, mas são nossas pegadas que deixamos por onde passamos. Elas são o rastro concreto de um mundo em construção: são os efeitos de nossas ações (e inações) que permitem avaliar as soluções que damos aos problemas. É em termos de efeitos que convém a tudo i n t e r p r e t a r.

6) Nem falante, nem ouvinte. Nem parte, nem todo. O mais importante em um diálogo é a relação que une e principalmente faz oscilar a posição de sujeito e objeto de acordo com as inflexões do momento. A expressão de uma diferença, um instante de surpresa e a palavra vai como o vento: são os intercessores que nos fazem mudar de rumo – e de forma, de natureza, de intensidade. É graças a eles que nos engajamos em movimentos outros, ora acelerando com o impulso inesperado de uma parceria, ora freando diante de um encontro pouco ou nada promissor; mas sempre oscilando de direção e de sentido ao sabor dos ventos e das correntes. Cada intercessor um encontro possível, cada encontro uma surpresa, cada surpresa uma diferença.

7) Last and maybe least. Um verdadeiro encontro, um diálogo honesto, não tem regras preconcebidas. Apenas duas leis, tão óbvias quanto necessárias, cada uma apontando para uma polaridade e um risco extremos: a primeira diz respeito ao esvaziamento da diferença e à colocação do outro numa posição de subalternidade, em que qualquer surpresa possível é sempre atenuada mediante uma explicação bem ou mal-intencionada – portanto, não apagar, não silenciar, não desqualificar uma fala. A segunda está ligada ao microfascismo que nos habita a todos, e ao qual é preciso aprender a resistir juntos; é sempre tentador suprimir a diferença incômoda, a posição dissonante, numa dinâmica cujo limite são a violência física e o assassinato – logo, não agredir e principalmente não permitir que se agridam as pessoas. A democracia exige esse compromisso básico.

Entrar em diálogo é inevitavelmente se transformar (escuta) e, assim, implica em correr riscos. Se as pessoas não se afetam, pode ser qualquer coisa, menos um diálogo!

— xxx —

Tradução

Na introdução à edição da Brasiliense de Satyricon, de Petrônio, Paulo Leminski aborda o ofício do tradutor-poeta em sua condição trágica: manter uma fidelidade essencial ao jogo estilístico tecido no original e assim perder parte do encanto proporcionado pelo conteúdo do texto; ou perseguir o rigor semântico e abrir mão da riqueza da forma poética. Diante da antinomia apresentada, cara a todas as boas traduções de obras consagradas, Leminski propõe um saída inusitada: se é para correr riscos, que seja com a arte dos equilibristas na corda bamba. Em outras palavras, a opção pelas duas vias e por nenhuma delas em especial – trair a ambas e ser fiel, na medida do impossível, também a ambas. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém. Questão de dignidade, não de fidedignidade.

Equilibrando-se na transcriação do texto, o poeta-tradutor ora segue o caminho trilhado pelo autor, com seus valores de oralidade e naturalidade dos diálogos, ora se afasta dele para se embrenhar pelas veredas da linguagem em um arriscado corpo a corpo de fim imprevisível. Ora ainda abandona toda etiqueta e se permite incorporar, baixar mesmo, num download espiritual, a materialidade do sensível e literalmente percorrer – em pessoa! – o caminho impossível do autor, com o compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo.

Como ocorre com Pierre Menard, autor do Quixote, de Borges. Pierre não é aquele que vai repetir Cervantes, mas alguém que busca viver uma outra vida até o extremo em que sua vida e seus deslocamentos vão assumir uma indiscernibilidade em relação às opções e à história do autor “original”: não se trata de copiar ou mesmo de reescrever a obra-prima da literatura ocidental, mas de se engajar numa relação absoluta com autor e obra; em que o absoluto não corresponde a qualquer totalidade, segundo a qual ainda estaríamos no horizonte da cópia e da imitação – mas ao germe que altera a própria vida que contagia a ponto de tornar as duas indissociáveis, não iguais! Pierre Menard deseja viver ao extremo as condições que levaram Cervantes a criar Quixote para que possa, também ele, dar vida, não a um Quixote, mas ao Quixote.

Em sua busca por criar algo que já existe – o que, nesse sentido, torna sua missão impossível – o desvairado autor se torna ainda outra coisa, pois que passa a seguir os passos (e os pensamentos) do próprio Cervantes. Que Borges tenha feito da história uma ode à identidade não apaga o feito – muito pelo contrário! – de que, em seu cerne, na suposta equivalência entre os dois Quixotes, e entre Pierre Menard e Miguel de Cervantes esteja o devir, que foge – e faz fugir – tanto mais quanto mais se tenta contê-lo. A história narrada por Borges, o fictício, não o escritor, tramada para encerrar duas vidas em uma mesma épica, acaba por mostrar a relação indissociável e imanente que existe entre univocidade do ser e multiplicidade ontológica.
Esse conceito radical de tradução como afetação / contágio faz eco à definição que alguns antropólogos dão de uma simetria das relações entre coletividades distintas: trata-se de comparar, de colocar em relação, bananas e maçãs, humanos e não-humanos sim, por que não? Somos todos diferentes, uns mais outros menos, temos todos desejos e construções divergentes, às vezes mesmo incompatíveis, que se encontram na base da própria vida.

Dialogo & tradução. O que eu falo é verdade, o que você escuta é mentira. Há um lapso entre o que eu digo e o que você escuta. Falo a partir do mundo, o meu mundo, você escuta a partir de suas referências. Um processo de tradução é necessário. De diálogo entre mundos.

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Transdução (I)

Um hospedeiro contém um vírus.

O vírus, por sua vez, carrega o material genético daqueles com quem entra em relação, ou seja, ele também é, de certa forma, um hospedeiro; enquanto tal, o hospedeiro carrega um vírus que, por sua vez, carrega o germe de outra coisa.

Ao investir contra seu alvo, o vírus se apropria [por cópia] de um trecho do código genético deste. Ele replica o código, mas apenas parcialmente e o carrega consigo em suas futuras mutações.

A partir desse momento, de todo momento da vida do vírus, ele se torna a combinação de seu próprio código genético e de outros com os quais entra em relação durante a vida.

Não apenas o vírus se torna uma combinação única de códigos genéticos, algo como uma impressão digital genética e recombinante, por mais “familiar” que seja o ambiente em que circula(m), como as relações de contágio que ele estabelece se tornam também elas singulares.

A relação estabelecida depende do contexto em que corpo infectado e vírus se encontram e sobretudo da relação de força entre as defesas do primeiro e a capacidade de contágio do segundo. O jogo agonístico entre eles nunca é o mesmo e nunca se decide antes do encontro propriamente dito, e ao corpo infectado sempre é possível resistir à infecção.

Enquanto o corpo pode ou não resistir à investida do vírus, que nunca é um, mas uma multidão, a infecção se caracteriza por uma relação de indistinção entre ambos, que passam a se relacionar numa espiral de criação e destruição, de vida e de morte.

Se o corpo se torna perigosamente infectado, isto é, se torna mais e mais como o vírus, a ponto de reproduzi-lo e de se deixar infestar pelo agente patógeno, o vírus se torna outra coisa antes de seguir (ou não) sua trajetória contagiante. De toda forma, o encontro transforma a ambos de modo marcante.

Estima-se que um corpo humano adulto e saudável contenha dez vezes mais micróbios dentro de si que células humanas, todos vivendo em perfeita desarmonia. Não fosse esta relação, simétrica e em desequilíbrio dinâmico, e não teríamos passado da “pré-história”. Da mesma maneira, estima-se que este corpo abrigue exemplares de todos os vírus com os quais entrou em contato durante a vida, constituindo um bioarquivo de dados que lhe servirá de defesa pelo resto da vida e que, em uma situação de fraqueza, pode levar a novas infecções.

No entanto, a relação entre corpo e vírus é tudo menos previsível. A doença, por exemplo, epítome do sofrimento físico e psíquico, é naturalmente compreendida como resultando de um jogo de soma zero que, quando fora de equilíbrio, coloca em risco a saúde dos corpos. Por outro lado, é possível que ela seja apenas um dentre os vários desfechos possíveis que acaba por determinar nossa própria percepção – trágica – deste encontro. E não nos referimos aqui ao fato da doença ou do adoecer, mas à necessária reorganização de sua economia em relação à saúde e à vida.

Outras modalidades de relação que não a doença apenas são vistas cada vez mais como determinantes para a existência e o modo como a vida de corpos e vírus se desenrola em paralelo, na relação.

Cientistas e biólogos avaliam que essa evolução cruzada, não linear e interespecífica, seria uma das principais responsáveis pela variação das espécies, dando um colorido todo especial ao desenvolvimento destas; num limite extremo, ela seria suficiente, se confirmada, para reescrever radicalmente “a seleção natural”, teoria hegemônica nas ciências da vida, com suas séries específicas em uma luta renhida de todos contra todos pela sobrevivência, em favor de uma recombinação global contínua, cujo desenlace não pré-existe à relação.

São a qualidade e intensidade do encontro – em outras palavras, as possibilidades de afetação mútua – que vão determinar se a partir dele se produzirá vida ou morte, e em que condições.

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Transdução (II)

Informação é aquilo que desequilibra, aporte de energia em um sistema dinâmico. Uma ideia, uma prática, um corte. Não se trata de uma causa em sentido clássico. Ou teremos que reconhecer que existem muitas causas, que causar é um atributo de tudo o que existe e difere. Assim sendo, a individuação vem primeiro: a relação que desorganiza institui tanto sujeito, quanto objeto. Meio e população se confundem. É apenas em relação à relação que podemos agir.

De onde vem a potência que chamamos ‘nossa’? Daquilo que, vindo de fora, nos afeta? Ou da apropriação mais ou menos involuntária que dele fazemos? Algo, talvez o que haja de mais importante, se passa em outro lugar, nem fora nem dentro. O agenciamento no qual tomamos parte não se presta a coordenadas estanques. Cabe-nos ficar atentos aos sinais que nos revela nossa intuição e desenvolver uma ética da alegria baseada no prazer de fazer juntos.

O problema da democracia (o quê fazer?) aponta para a democracia como problema (como fazer?). As soluções para quaisquer eventos são muitas e díspares. E é bom que sejam assim. O desafio é construir um problema que esteja à altura daquilo que vivemos, em comum. Fica combinado assim: problemas são para ser construídos; soluções para ser avaliadas.

Temos nos ocupado do que podem as vidas – e a vida como tal. Melhor seria se nos concentrássemos em disparar acontecimentos. O encontro é o verdadeiro fato social: não uma ontogênese como produção controlada de vida, mas a própria produtividade intensiva e caótica do agenciamento.

Toda criação, toda transformação provém de uma técnica. Mesmo aquilo que é fortuito só faz sentido no contexto de uma máquina social. Experimentação não significa voluntarismo. É preciso construir dispositivos de ação política. E testá-los, e aprimorá-los, e pô-los à prova para que eles continuem funcionando.

Nada, na luta, nos pertence. Nada que nos identifique, que nos aprisione ou nos imobilize. A angústia e a solidão são irmãs da partida. E é preciso partir sempre: abandonar a zona de conforto para sair e chegar a qualquer lugar. A desindividuação, processo necessariamente social, é condição para novas individuações.

O compartilhamento é a melhor arma contra a droga da unanimidade. Vive-se algo, criam-se coisas, e isso torna os espaços ocupados, vivos. Não o contrário. É a realidade da luta – as práticas, a percepção, o cotidiano – que produz o espaço e o tempo da diferença, sem os quais não existem nem a arte nem a política.

Questionar os automatismos sempre. Das técnicas de luta, quando experimentais, devêm magia. E podem ser eficazes para produzir efeitos de mobilização e de organização, ou não. As técnicas são boas para perseguir efeitos e estes dependem mais dos agenciamentos que elas ensejam do que de indivíduos determinados ou de nossa vontade imediata.

Ação simbólica é aquela que faz pensar, obriga a pensar. Quando algo acontece que ninguém sabe como reagir, é por ali que devemos ir. Mas atenção: pensar é ação coletiva. Ninguém decide o significado de um acontecimento sozinho, por decreto. Quando parcelas da população – coletivos, conhecidos, a mídia – começam a reagir de modo sincronizado e previsível, provavelmente é hora de levantar acampamento. É hora de encontrar outros intercessores.

 

Indicações de leitura

Gilles Deleuze e Felix Guattari. Os Mil-Platôs.
Eduardo Viveiros de Castro. Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca.
Isabelle Stengers. Résister à Simondon?
Jorge Luis Borges. Pierre Menard, autor do Quixote. Ficções.
Paulo Leminski. Pré- e posfácio. Satyricon (Petrônio).

 

 

 vocabpol em 22112014 ação, entradas, escuta, fala, metodologia, transformação