Forense capenga

// Raphi Soifer

pensando o capenga forensicamente (em voz alta e sotaqueada)

(conversa entre Raphi Soifer e Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento

A linguagem socializa e racionaliza o pensamento.

o que é capenga é pensado e socialmente inserido, mas não consegue se racionalizar.  o capenga age sobre o pensamento de uma maneira um pouco torta; desracionaliza, enselvagereia.

A linguagem literária tem 4 qualidades essenciais:

concisão
    clareza
    precisão
    pureza

o capenga não sabe lidar precisa ou puramente, não busca clareza e nem concisão; na real, nem sabe que devia estar buscando.  mesmo assim, é efetivo, acaba funcionando (mais ou menos).  mas ele não apenas funciona, ele existe, se enuncia na própria falta dessas qualidades essenciais, se mostrando possível.

o capenga sabe mais:  sabe que toda qualidade que se diz essencial é capenga por si só, guarda algo torto na sua base, no cerne da sua proposta de ser definitiva.  uma tortura, porque articular uma linguagem que se diz forense requer excluir tantas outras cuja efetividade reside no afeto, requer expulsar tantas gírias queridas e acertações poéticas tidas como erradas.  se a língua forense racionaliza, o capenga sente. e toca, e atinge.

O verbo ATINGIR é transitivo direto, isto é, rege objeto direto – sem a preposição A – no sentido físico de “tocar”, “chegar a”, “alcançar”, ou noutro de “compreender”, “perceber”, “dizer a respeito”.

se é que exista uma linguagem forense para explicar o capenga, ela é a gambiarra que consegue atingir o pensamento sem se socializar, sem exatidão, mas sempre funcionando.  e aqui sou eu na maior gambiarrice, atingindo a cidade sem clareza nem concisão e sem a preposição A.  eu mergulho estrangeiristicamente no rio de janeiro.  eu me situo por aqui, funciono, alcance com um toque capenga.

voltando de uma primavera fria na gringolândia de onde venho, atinjo o rio de janeiro com toda a força do meu estrangeirismo.  alguns dias depois, a polícia “pacificadora” do morro dos macacos consegue atingir um menino de 8 anos com uma bala na cabeça.  mesmo acostumado com esse tipo de notícia (algumas semanas antes, logo depois de invadir a maré, militares mataram uma criança de 4 anos e uma avó de 67 em poucos dias) sinto-me mais pessoalmente atingido pelo acontecimento no morro dos macacos.  conheço algumas crianças de lá, que descem de vez em quanto para jogar capoeira com o grupo onde eu treino (capengamente e sem nenhum equilíbrio). não sei responder, não faço nada diretamente sobre o acontecimento além de escrever algumas poucas linhas que não mostro para ninguém.

a violência também é capenga, mas nem por isso deixa de ser eficaz. o forense responde tentando enquadrar a violência dentro de um regime claro, conciso, puro e preciso. por isso mesmo, o forense é violento por si só:  representa uma invasão definitiva e decisiva à base de palavras quase inevitáveis.

É impossível rejeitar uma palavra estrangeiro; quando vem denominando um objeto novo, uma invenção, uma idéia.  Neste caso, o recomendável é aportuguesar a palavra, como temos feitos com boné, turismo, uísque, Nova Iorque, etc.

o estrangeirismo que persiste sendo falado também é eficaz e tão essencial, quase inevitável, que não pode ser substituído. dizem que não dá para traduzir a palavra “saudades”.  nem a palavra “capenga”, e nem “gambiarra”.

não é o caso de eu me sentir à vontade aqui por achar o brasil um país capenga, mas talvez seja por eu não ter que essencializar ou traduzir o que eu tenho de capenga. talvez seja que minha vontade venha por eu sentir uma permissividade de ser uma figura capenga por aqui.  talvez eu estaria meio torto em qualquer lugar, mas é bom saber que o que eu mais tenho de capenga seriam justamente meus estrangeirismos:  meu sotaque, modo de andar, uma certa falta de esperteza (ou talvez de malandragem).

sou gambiarrista, ou de repente gambiarreiro, e diariamente capenga. (o capenga forense seria tanto o protocolo de prorrogação do meu visto de estudante quanto as minhas constantes tentativas de convencer novos conhecidos que eu sou de brasília, ou do acre). o estrangeirismo sempre será uma gambiarra, uma identidade bricolada que, na falta de uma ferramenta mais oficialmente estruturada e capaz, serve para juntar línguas, pensamentos identitários e ritmos de se conduzir no mundo.

(eu soube por facebook que a melhor tradução entre 2 línguas é o beijo. e de fato, não me lembro de alguma vez ter gostado de um beijo forense.)

A crase representa essa construção:

    a – preposição – palavra invariável

    a – artigo feminino – palavra invariável

a crase se encontra quase presa, pré-determinada pela construção de relações entre palavras invariáveis.

a crase só consegue fugir desta inevitabilidade através do estrangeirismo, que nem no próprio nome do Edmundo Dantès Nascimento.

ou seja, a crase só se liberta da preposição A, só consegue atingir diretamente quando sai das determinações invariáveis para se jogar em colocações minimamente exóticas e potencialmente capengas.

(ou seja, o capenga propõe sempre alguma saída.)

Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento: revisão Ana Maria de Noronha Nascimento. 10 ed. atual e ampl., 7a tiragem. São Paulo:Saraiva, 1999.  p. 3, 15, 32, 113.

 vocabpol em 26052016 escrita, livro, oficina, trans, transformação, verbete

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Anti-herói anônimo
O herói anti-herói e o anti-herói anônimo / Helio Oiticica (1968)
Cartaz Cara de Cavalo / Agência Transitiva
Mundo-rua / Tatiana Roque
Anotações relacionadas ao Anti-herói anônimo

Assembleias
As Assembleias populares na luta pela liberdade do Rio de Janeiro / Fernando Monteiro

Bagunça (Performance) / Matheus 04:19 / Raphi Soifer

Brasil | brasiu | Brazis / Cristina Ribas

Carta de não participação / Beatriz Lemos
Tem artista na Maré / Conversa da oficina interna transcrita

Cavalo
Poema do Cavalo / Daniela Mattos
Cavalo / diagrama / Cristina Ribas
Cavalgar em La Borde (trecho de Caosmose) / Felix Guattari

Complexidade
Complexidade / Cristina Ribas, parêntesis de Anamalia Ribas
Cartografias da Ditadura / Tiago Régis

Conspiração / André Mesquita

Davi Marcos
Pequeno ajuntamento de postagens/pensamentos sobre um pedaço de realidade / Davi Marcos

des // dobramento // s
des//dobramento // s  / Cecília Cotrim e Daniela Mattos
Bulário // estético // político / Cecília Cotrim

Diagrama / Tatiana Roque

Escrever
Escrever / Cristina Ribas
Escrita, Daniela Mattos
7 minutos de streaming de Rio na Rua / Transcrição de Luiza Cilente e Sara Uchoa, narração de Clara Medeiros
‘De quem é a ordem?’, transcrição de um trecho da manifestação 20 de Junho de 2013 / Luiza Cilente

Escuta
Escuta / André Mesquita
Caos – complexidade – escuta / Oficina Aldeia Gentil

Estratégia / Julia Ruiz

Etnoempoderamento / Jeferson Andrade
Evento
Tarifa Zero em São Paulo / Graziela Kunsch
Evento / Rodrigo Nunes
Excerto de e-mail sobre reunião do Ocupa Alemão / Bruno Cava

Excesso / Cristina Ribas

Experiência / Breno Silva

Forense capenga / Raphi Soifer

Grupo de Educação Popular / André Bassères

Hidrosolidariedade  / Giseli Vasconcelos

Humor / Geo Abreu
Carnavandalirização / Isabela Ferreira

Infraestrutura

Maternidade / Paternidade / Economia do Cuidado / Cristina Ribas, parêntesis de Barbara Lito
Justiceiras do Capivari / Steffania Paola

Lugar / Inês Nin

Manifestações / Inês Nin
Manifestações do ciclo de Junho, repressão na favela e ditadura / Davi Marcos

Manifesto Afetivista / Brian Holmes

MARÉ
Tem favela? / Davi Marcos
Cartilha para / manifesto contra / Breno Silva, Jeferson Andrade, Lucas Rodrigues, Lucas Sargentelli, Graziela Kunsch (colab.)
Eu sou da Maré / Josinaldo Medeiros
Sobre o ataque midiático e militar ao Complexo da Maré e ao Movimento / Pedro Mendes

MUDEZ  / Annick Kleizen

Mulheres-violência
Pós pornô e feminismo / Juliana Dorneles
Violentas / Juliana Dorneles
Nós dizemos revolução (trecho) / Beatriz Preciado

Muro / Lucas Rodrigues
Muro / Juliana Dorneles

Praça de Bolso do Ciclista / Margit Leisner

RHR Glossário
Laura Lima conversando com alguns de nós sobre o Rhr  (transcrição da conversa na oficina interna)

Sair / Inês Nin
Partir / Destruir / Expulsar / Vazar /  Cristina Ribas

Tarifa Zero / O que a Tarifa Zero, os bancos e as concessionárias de automóveis poderiam ter em comum mas ainda não tem  / Graziela Kunsch

Transdução / Pedro Mendes e Fernanda Kutwak

Vizinhança / Enrico Rocha

vocabulário cruzado / Agente Laranja (Kadija de Paula)

 

#radicais


Recomendamos que você leia o texto editorial

Para ler em voz alta

 vocabpol em 05012015 entradas, livro

Lugar

// por Inês Nin

1. se existe alto e baixo, direito e esquerdo, frente e verso, existe um lugar. 2. se onde havia uma coisa e existe agora uma outra, existe um lugar. 3. se há um corpo, há um lugar. 4. se cada corpo está situado em um lugar próprio, existe um lugar.

[sim, aristóteles. recorrer às bases, mesmo que as sobrescreva depois.]

artefato. povo construído. lugar errante.

de imensidão só lhe restam as botas, de tantas viagens por aí que gastas as lembranças fico, paro com o intuito de me recompor.

imaginar um terreno que não seja matéria de composição mas desastre, atraso, atalhos mesmos que furtivos só guardo em memória. as técnicas de sobrevivência variam tanto. o lido com os lugares, o tratamento, o embate cotidiano e as danças.

é de madeira o chão, telhado inclinado, construído com as próprias mãos. prever o mínimo de interferência no ambiente, de verdade. floresta quando penetra a casa e transforma ela mesma em um labiríntico desafio que traz conforto, diverte. põe para secar ao sol o que sobrou de antemão, enche de água o que se quer cultivar. observa.

para os estoicos, o problema do lugar está ligado ao problema do movimento. um lugar é concebido pela transição dos corpos que por ele passam. tal como em aristóteles.

( )

delimitações. um lugar é um intervalo? uma posição.

 

territorialistas dirão, este é o meu lugar. distinção por entraves, catracas, limites desenvolvidos arbitrariamente, gerando a noção de propriedade. lugar tem dono?

diria a terra. um pedaço de terra, um lugar. matéria pura, compreendida em consonância com o que há em volta. música. estrutura, movimentos sistêmicos que cumprem rotas em variação, caminhos, danos, elevação. cíclicas voltagens, antes mesmo de construir.

do limite surge o referencial. talvez, de um terreno preciso. para ele são traçadas rotas, mapas, são criados mitos, memórias. formam-se famílias, redes e articulações organizadas por sistemas de parentesco, continuidades. talvez então isso: ao invés de cercas, noções de assimilação em grupo. contiguidades, modos de fazer e habitar.

um dia, emitem um protocolo, pisam em qualquer noção de hábito, mesmo cuidados. alheios são aqueles, os que não decidem os rumos do lugar. montantes outorgam demolição do terreno, inventam de substituir as construções. dizem: “é a modernidade!”. despropositadas ferraduras, racham o chão.

os sem medo, enfrentam. “é por uma noção de pertencimento, pelo direito que chutam a pontapés. e onde construir, então?” umas vidas. uns sossegos. uns hábitos, que elétricos, flutuam. atravessam paredes, rompem territórios, emanando flores por onde passam.

 vocabpol em 04122014 entradas, escrita, livro, transformação, verbete, vocábulo