Excesso

// por Cristina Ribas

São muitas anotações. São anotações que vão caindo pelas bordas do papel. Dos papéis colados na parede. Das ideias que se repetem, e que só na repetição com conjunções temporais tomam consistência. Aprendem umas com as outras, as ideias, e vão me avisando desse eu constituído entre elas. Processual, incompleto, excessivo. Esse eu constituído entre elas nem é um eu, é um intento de mergulho no excesso, no puro excesso que as concatena, as ideias, os eventos, as anotações. Intento intensivo. Sentido.

Produzimos por excesso. Por um fluxo aberto, ar-atmosférico, que vai elencando e anotando e sobrepondo e repetindo. E diferindo as coisas, o tudo mais, os restos. Vida é coisa em excesso, vida é coisa que só existe por meio de um excesso.

Não excesso como coisa secretada, expelida do aperto de outra coisa, estruturada. Não tanto resto, como em Jean Baudrillard, quando fala de um resto secretado por uma máquina (*). Sobre o excesso, que ele chama de resto, ele diz: “É sobre esse resto que a máquina social se relança e encontra uma nova energia.” Entre o excesso que eu quero falar o resto de Baudrillard pode não haver, portanto, muito desencontro.

Mas e que restos são esses? Perseguidos pela máquina social, produtiva? Na dinâmica que persegue as sobras, as minorias, a pequena gente, a mulher a parir (depois de espremida no saguão do hospital, provavelmente, ela tem que voltar  a trabalhar num curtíssimo espaço de tempo), os restos seriam também aquilo tudo que pode ser novamente quantificado e reformatado na ordem de uma normalidade. Baudrillard de novo: “o resíduo pode ser à dimensão total do real. Quando um sistema absorveu tudo, quando se adicionou tudo, quando não resta nada, a soma toda reverte para o resto e torna-se resto.”  Mas pode ser que hoje já nem haja mais resto, diz ele, “pelo fato de se estar em toda a parte.”

Nesse sentido o resto se torna o próprio excesso. O resto pode então reverter. (Reversibilidade que faz rir, diz ele.) E o excesso, assim como esse outro resto, pode ser que se faça na lógica da produção desejante, de um produzir que não pode passar pelo medir. Da efetuação de um desejo, de um produzir que se faz ele mesmo pelo desejo desmedido. O excesso é então aquela parte sempre acometida de um não, de um escape. De já se foi.

O excesso é assim acometido de outros sim. O excesso é assim autonomização pura da ficção, artificialidade pura, coisa secreta ela mesma (por si própria, para si própria), nem deixa rastros? Natureza pura do movimento, natureza pura de um fazer. Gozo incessante, manutenção do gozo, testosterona, cheiro de gente.

O excesso talvez não tenha estrutura, e tudo e qualquer coisa que se faça seja só coisa expressa pelos excessos. Excessos contudo disponíveis às neuroses, às medidas, às apropriações, fazendo que o mundo seja puro excesso, ao mesmo tempo que seja o mundo puro excesso medido, regulamentado, registrado, cortado, apropriado.

O excesso duvida da determinação que vem de fora, fazendo dela coisa cabisbaixa. Do que fazemos sabe o excesso de uma certa soberania, mas também de uma extrema vulgaridade. O excesso que deriva parece nos cercar. Ou será que somos, na verdade, feitos vulgares do excesso?

Há uma incongruência em arriscar dizer que há excessos improdutivos, visto que só há excessos produtivos, que são eles mesmos a coisa toda a fazer virar a atenção. A sintetização do excesso é nada mais que a natureza do controle, fazendo do controle uma estratégia estúpida que vem para codificar ou trilhar o que está se movimentando. Mas é que para mostrar o excesso, sem que sejamos engolidos por ele, precisamos do fragmento. Me parece que fragmentos produtivos são aqueles que carregam a intensidade do excesso em si, sem começo, e sem fim. Excesso como puro meio.

O excesso é, então, uma espécie de sublime, um sem bordas,
espaçoso, meio em descontrole, ao mesmo tempo pura ficção, e natureza pura

(*) Jean Baudrillard, “O resto”, Em Simulacros e simulação (1981) Lisboa: Antropos

Etnoempoderamento

// por Jeferson Andrade

etno-  
(grego  éthnos,  -eos,  grupo  de  pessoas  que  vive  em  conjunto,  povo)
elemento de composição
Exprime  a  noção  de  povo  ou  de  etnia  (ex.:  etnodesenvolvimento).

Empoderar
Significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. (1)

Durante o processo de convivência na residência Capecete, no bairro da glória, onde diversos termos foram colados a prova, num redemoinho de exercício semântico para a criação de um “vocabulário político para processos estéticos”. È claro que em situações como essas nada é simplesmente, do almoço até a ultima palavra pronunciada, nós devoramo-nos uns aos outros numa espécie de fagia coletiva. E como alimentar tem capacidades de empoderar, seja o corpo ou a mente, o que me deixava mais interessado era como empoderar a postura? Quais elementos tornam a existência uma potencialidade?
Uma caminhada inicial no complexo de favelas da Maré me trouxe alguns pontos importantes sobre uma analise das potencialidades. Numa conversa despretensiosa com o Sr. Olympio no centro comunitário do Parque Maré. Entre palavra perdidas e olhares distantes, entendi que a memória senil e fragmentada possui características especificas para a indicação da produção de desejo, o que coloca o Sr. Olympio não somente no lugar da velhice, mas da desmemoria como fronteira. Sentado sobre uma cadeira de rodas, um rosto enrugado, sem alguns dentes, ele me conta sobre muitas vidas em paralelo às minhas perguntas sobre a intervenção militar na Maré. Seu sonhos com viagens longas, a lugares desérticos. Num outro ponto eqüidistante vejo uma placa:

(imagem 1)

A fim de produzir uma metodologia para uma pesquisa sobre as subjetividades em situação de poesia, desenvolvi por meio de rolés pessoais, uma estrutura para experimentação do diário  de campo ampliado, propondo uma análise fragmentada por epifanias da minha desmemória. É importante imaginar o texto a seguir como um percurso, onde coexistem diversos personagens que cruzam os meus caminhos pela cidade, através de um destrinchamento analítico de dados adquiridos nos rolés para evidenciar a proposta de etnoemporamento como equação não linear  de causa e efeito de uma endociência .
Rachaduras e Sabotagens
Deitei na cama estreita, meu quarto é simples, só uma cama e um criado-mudo. Sempre achei interessante conviver com a decadência. No meu quarto existem duas rachaduras, uma bem no centro que já esta se expandindo para mostrar melhor o osso do teto. É meio circular, vai se apoderando como uma mancha. A segunda é fina e sinuosa, serpenteia pelo espaço quase invisível.
Rachaduras são feitas por trepidações, desgaste natural da estrutura. Aparecem na primeira camada como linhas, protuberâncias, como um corpo que envelhece e se cansa. Daí a primeira camada que é só massa e tinta começam a sair, dando lugar ao osso (cimento). Como de costume, a qualquer sinal de decadência, os donos do lugar iniciam uma reforma.
Trepidar significa pequeno abalo, como a terra que está sempre em constante movimento, o que torna possível a existência da poeira, é em seu conteúdo vestígios de um ruir das estruturas. Rachaduras vão aumentando com o tempo, pois acumulam tempo.
No meu quarto as rachaduras vivem, expandem-se. Eu cultivo-as  para que todos possam entender a não-reforma,  a relação às vezes triste do fim reflexivo da estrutura.
(imagem2)
O Fracassado
Eu fracasso todos os dias
Fracasso como amigo
Fracasso como amante
Fracasso militante
Como nação

Eu desejei o melhor que podia haver em mim
Mas ninguém ira chorar pela minha vértebra
Fracassei como ícone.
Fracassei como torcida.
Os meus gritos aqui fracassam.

Outro dia perdi algumas pessoas.
Fracassei com elas.
Seja pelo meu intento, seja pela minha frustração.
É difícil desejar no outro tudo aquilo que dói em você

O fracassado é orgulhoso,
Luta pelo outro fracassado.
Caminha delirante consumindo felicidade na lata.
Bate no outro fracassado, querendo bater em si.
Sabotador natural, sempre auxilia no fracasso.
Para que vencer? Para que trabalho?
No fracasso o avanço esta no que desejo e não no que devo.

O fracasso tem um papel importante a cumprir.
Fracasso no texto que não rima que não encanta.
Fracasso como política de auto-reconhecimento.
No trópicos o fracasso nos une.
(imagem3)
Devir passarinho
A aproximação com os povos ditos índios não pareceu muito difícil, todos estão num momento de unir forças, seja de que lado for. Houve relatos muito fortes sobre a perseguição indígena pelos ruralistas. Há também um esforço político para a conquista da juventude e um chamado para os ancestrais perdidos no mundo urbano. O aprendiz de Pajé Ache, criou um curso, chamado Cosmologia da Floresta, que envolve um reconhecimento simbólico da fogueira como lugar central da discussão política e historia oral. Há muitos rituais com falas e discussão política da terra ancestral, junto ao que Ache chama de beijo do beija-flor, que são pequenas doses de ayáwaskha (1) e em alguns momentos cheirar o rapé para ajudar na limpeza.
As cenas eram incríveis, pois no meio da discussão alguns vomitavam e se sentiam bem com isso, pois se assemelhava a vomitar toda porcaria ideológica ocidental na qual estamos imersos. Ache acredita que só haverá mudança no trato com a população indígena através de trocas interculturais com auxilio da atitude performática para ritualizar a política e torná-la parte de nossa existência.
Agora, de fato, com essas experiências, tenho a idéia mais clara de como pensar a estrada como um trato à terra ancestral, criar com o que temos uma conexão tribalizante. Ritualizar por uma nova política.
(imagem4)
Praças e encruzas
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(2) DG -1
Hoje o dia acordou cinza, fui pego por uma angústia que eu nem mesmo sabia identificar. Mas como não se angustiar pelo vazio que existe entre eu e a vítima. Nunca gostei da noção de vítima ou vitimização, os pretos também têm direito ao erro, à preguiça, à raiva. Digo como preto e suburbano, daqueles que vivem na beira entre o abismo e o Brasil, para aqueles que possam entender que em toda alma de um negro existe um pouco de desterro. O exílio para além dos golpes, sobrevivendo à vertigem colonial de um povo que nunca desembarcou. A deriva negra, tão solitária e triste, sem língua, sem voz, corpo transeunte de uso expropriado, alimenta um sonho ancestral. A condição negra, a condição favelada, negar o outro para negar a sim mesmo. Cordeiros de Nanã, descendente de homens livres, de sorrisos sinceros, um princípio de esperança no deserto.
(imagem)
Banana Mon Amour
Todos são problemas histórico. A questão social deve ser levar em consideração manobras econômicas e sociais, mas racismo parte de um problema de etnocentrismo. O que seria dos povos outros se o ocidente tivesse acolhido a subjetividade como princípio de existência? É uma pergunta que não chega a ser uma utopia, mas um posicionamento crítico para pensar novas formas de lidar com o mundo. O Mundo não tem um problema de evolucionismo, mas sim de imagem. Ninguém estuda de fato Darwinismo, mas se conforta com imagens abstratas de ancestrais primatas, seqüenciados pedagogicamente num linha evolutiva que nunca existiu. Como o equívoco dos Índios serem Indianos e Negros, expõe-se um elo perdido da humanidade branca.
Alicerces de um ponto de vista míope de homens cansados de si mesmos pela descoberta do outro. Alterações de um ego cada vez maior, cada vez mais só. Pensamos num tempo linear, cronometramos nossa vida, fazemos aniversário numa contagem sempre apocalíptica.
A única política vigente para as humanidades de alteridade é uma participação econômica numa cosmologia capitalista de produtos de consumo cada vez mais contaminados pelo cinismo escravocrata de países que lutam por um lugar na economia mundial, transformando os degredados desmemoriados dos trópicos numa fábrica de auto-eliminação. Operações absurdas de planejamentos celulares de campos de extermínio, construção de perímetros não abolidos, venda de uma liberdade de existência falseada pela participação infantilizada, militarização de corpos livres, banana eu como com aveia e mel, muito mel!
(imagem)
“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus.”
(Oswald de Andrade)
Notas
(1)    Fonte http://www.dicionarioinformal.com.br
(2)    DG era um ator e cantor morador do complexo Pavão-Pavãozinho. Ele foi torturado e assassinado por policiais da UPP do Pavão Pavãozinho nos dias em que estávamos reunidos no projeto do Vocabulinário. “DG – 1” dialoga com as camisetas de futebol que foram produzidas pelos diversos movimentos do #NãovaiterCopa.
(3) ayáwaskha: ‘cipó do morto’ ou ‘cipó do espírito’; de aya, ‘morto, defunto, espírito’, e waska, ‘cipó’; também chamada hoasca, daime, iagê ou mariri. Fonte: Wikipedia
 

 

Diagrama

// Tatiana Roque

“O diagrama é este formigamento de gestos virtuais  : apontar, fechar, prolongar, estriar o contínuo. Uma simples linha, um pedaço de flecha e o diagrama salta por cima das figuras e constrange a criar novos indivíduos. O diagrama ignora de modo soberbo todas as velhas oposições abstrato-concreto, local-global, real-possível. Ele guarda como reserva a plenitude e todos os segredos dos fundos e dos horizontes”.

Gilles Châtelet, Les Enjeux du Mobile

 

Como inventar uma política autônoma, novas formas de organização, práticas capazes de manter uma assimetria, como condição para uma política anti-capitalista?
Uma máquina expressiva, criação de signos que resistam à divisão entre significante e significado, entre expressão e conteúdo. Uma gramática, mas também uma semântica corporal das lutas.
Cada enunciado se relaciona a uma situação micropolítica específica, que não conhecemos sem mergulhar na situação na qual o enunciado se produz.  A escolha das palavras não é anódina, nem seu significado. A diagramática é uma recusa de rebater a enunciação sobre os enunciados, em um mundo povoado de palavras de ordem.

E opor à axiomática do capital é escapar de seus mecanismos de articulação, de mediação, de tradução de códigos. Sempre houve códigos, mas agora é preciso que todos se equivalham.
As minorias também são codificadas, apropriadas por identidades fixas, e podem se tornar reféns dos mecanismos de captura. Para Deleuze, há duas maneiras pelas quais o capitalismo codifica as formações sociais, e que são interiorizadas pelas minorias: o corte nacional/extranacional, que torna toda minoria composta de estrangeiros, ainda que estrangeiros de dentro; o corte individual/coletivo. A minoria se constitui na impossibilidade de interiorizar essa última divisão, pois tudo que parece emergir do individual (familiar, conjugal, psíquico) se liga a outras questões nada individuais (étnicas, raciais, sexuais, estéticas), com uma relevância que é imediatamente coletiva e social.

Uma das maneiras pelas quais o capitalismo codifica as formações sociais, para integrá-las em sua própria dinâmica, é a da comunitarização, ou seja, o isolamento produzido pela fixação de uma identidade. O que leva alguns grupos a enxergarem suas reivindicações como parte da esfera interna, como problemas que só concernem àquela comunidade, o que estamos chamando de problemas nacionais. Pode-se até tolerar a dimensão coletiva e política das questões que preocupam uma minoria, contanto que ele não se conecte a outras minorias, a coordenadas internacionais, transversais, ou seja a lutas estrangeiras.

Por isso, não dá pra combater o cinismo capitalista entrando no gueto, falando uma língua particular. Por outro lado, também não mobilizamos nenhuma força subjetiva renunciando à singularidade de cada grupo social. É sim, usando muito do gueto, de sua sensibilidade e seu dialetos próprios, mas para conectá-los, conjugá-los a outras lutas. Assim, podemos inventar um devir autônomo imprevisível, que passa por conexões transversais entre atores diferentes, lutas transnacionais. Talvez possamos falar de uma nova internacional.
Os momentos de maior potência dos movimentos são aqueles em que diferentes lutas se encontraram, produzindo mobilizações imprevisíveis.

Precisamos urgente de novos parâmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizações desse ponto de vista. Que se liga aos modos de existência que elas propõem, seu estilo, os problemas que coloca, as reivindicações que traz e seu potencial de conexão. O critério dessa avaliação é a aptidão que a gente tem para se articular com outras lutas, conectar nossos problemas com os problemas de outros, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades. Falar outra língua. Nunca só a nossa.
Tal é a função de uma política diagramática: operar por relações transversais entre problemas distintos e se opor à automação dos axiomas capitalistas.

 vocabpol em 16122014 diagrama, expressão, política, transformação

Mulheres-violência

//  Juliana Dorneles

Pós Pornô e Feminismo
A pornografia era vista com desconfiança no vocabulário feminista (assim como toda a indústria da prostituição), considerada como signo de sujeição e reiteração da mulher como objeto sexual – única e exclusivamente para o prazer masculino. A mulher mesmo, ficava fora desse gozo.

Além disso, as imagens criam e mantém o imaginário sobre um tipo de comportamento sexual desejável. O apelo erótico do pornô invade nosso imaginário e a imagem pornográfica se conecta e alimenta nosso desejo. Isso é bem grave em se tratando de uma revolução dos costumes, que justamente quer se livrar dos padrões colonizados desse imaginário.

Mas não é negando o pornô que se muda o pornô. É fazendo o pornô que se gosta. Então, pernas abertas para o fluxo sangüíneo das atitudes divertidas.

O pós pornô é uma atitude a partir da constatação da colonização do imaginário sexual pelos padrões da dominação masculina. Se existe uma representação colonizada da sexualidade que não favorece a alegria e o imaginário das mulheres, a alternativa para isso é criar outros imaginários, dar chance de estabelecer outros mundos para a sexualidade, onde as fronteiras entre os gêneros se borram e os papéis clássicos homem/mulher ficam difusos.

Há histórias quentes, inversão dos papéis, cenas de mutilação, sexo hardcore entre mulheres, skirt, crossdressing, sexualidade queer e tantas outras cenas que surgem para encantar, chocar, ou divertir, mirando a invasão da nossa cultura sexual.

Sim, se trata de uma outra cultura sexual, de um desejo esta cada vez mais múltiplo; e cada vez encontrando mais fontes de ampliação onde nem mais os órgãos genitais são uma fronteira. Gozar pode ser uma experiência mais ampla, pode incluir a natureza, pode incluir um corpo andrógino e machucado, pode incluir carros (J. G. Ballard) ou paisagens sonoras. Tudo é sexo, mais escancarado ou menos, criando suas alianças e derivas em imagens, performances, relacionamentos. Sexualidade como criação artística.

Vertente crítica-criativa; que remete a uma crise da sexualidade normativa; e uma necessidade de encontrar novos corpos e imagens para outros corpos e mundos. Sua violência e virulência, alguns abordam, poderia ser lida como a violência necessária para a escuta daquilo que até então (até a irrupção deste ato estrondoso/performático) não existia no imaginário do mundo. Violência do grito que quebra as taças de cristal. Faz alguma coisa girar. Quebra padrões do imaginário – quebra que nem sempre acontece sem dor.

Violentas são as esperas, as crenças, o condeno no otimismo do triunfo, a prisão no armário fundo do eu.

Uma bofetada é bem mais importante do que dez lições, compreende-se muito mais rápido, sobretudo quando é uma mãozinha macia da mulher que nos dá a lição.

(Severino/Gregório. A Vênus das Peles)

 

Violentas
Este vocábulo poderia ser também poderosas, escandalosas e incômodas.
Palavra de ostentação do poder.
Mas fiquemos com violentas.
Porque existe um escândalo violento do poder. Mesmo nos velados, a portas fechadas, por tras dos muros. Nem sempre as coisas precisam se dar a ver para serem escandalosas. E se a primeira vista qualificar a violência como escandalosa poderia parecer um juízo comum (que ruim que é ser brabo, furioso, violento); veremos como, na operação inversa, este escândalo está diretamente ligado a força da violência.
Existe uma força na violência, uma energia. A que quebra um osso e a que quebra um padrão. O que salva a violência é que ela é um limite, um esgotamento, um desabafo. Tem nela um sem palavras, são atos, manifesto daquilo que é insuportável. E se faz entender assim, na marra. Parece feio ou estranho, machuca. mas é ela lá gritando como Rosalyn no deserto (a personagem de Marylin Monroe no filme “Os Desajustados” -1960- de Arthur Miller).
Sim, falamos dessa violência que irrompe, do incontrolável e incômodo; ao mesmo tempo completamente necessário. Faz alguma coisa mexer, um escândalo da raiva que realiza e expressa, criando uma brecha no espaço-tempo repressor e omisso. É um tipo mulher de poder: a violência uterina, tão sedutora quanto avessa a razão. Escândalo do poder feminino.

Pensemos neste filme e nesta cena específica. São três homens – a possessão masculina (dinheiro, força física, audácia). Violência primária como modo de lidar com o selvagem. E a mulher, corpo todo compaixão e angústia, incômodo. Onde não há mais palavras possíveis, advém o urro das entranhas. Longe, num solo assistido por estes tres homens mortos, Rosalyn lança uma maldição. O grito onde não há mais negociação possível. Elas são todas loucas, diz o mais triste deles. Loucas, furiosas, e poderosas; de palavras ingratas aos concílios e conciliações. Um poder da fúria se emege contra a própria violência, se diria. Um levante das entranhas em estado de miséria, dissecadas pela angústia das restrições (impostas ou auto impostas). Levante da arma do corpo berrante, o insuportável. Que madeixas poderiam ficar no lugar? Se o selvagem da natureza é domesticado e transformado em carne morta de cavalo, aparece uma mulher que instiga a horda masculina pelos instintos (reprodução! Reprodução!) e ganha a cumplicidade dos audaciosos. É o terceiro homem – do tipo que não gosta de ver a carne morta, pois admira seus adversários.
Que forças loucas e sensuais são necessárias para fazer sair o torpor do estabelecido. O incômodo.

É a violência crua e contratual de algumas práticas masoquistas; é a violência cruel do sádico, para colocar algo em movimento. Tudo sempre ligado a uma boa dose de sedução. A crueza é muito mais misteriosamente sedutora; ao contrário da maquiagem, que envaidece o jogo do poder.

A esses cabem os arregaços, de boca aberta, entrante. Mas também na boca fechada, miudeza, não se regram essas partes. Lugares sem senão, pouco acolhedores do consolo do eu. Um desfazer, numa espécie de geração açoitada na carne, violenta, vivificada pelas cicatrizes cravadas no lugar das angústias malvadas, pequenizantes, solícitas por restrição. De pequenices nos enche o pesadelo de restrições. De apavorados imploramos um perdão que já bem sabemos não existe. E por que se insiste?

Violentas são as esperas, as esperanças, as crenças, o otimismo do triunfo, da condenação da prisão no armário escuro do indivíduo. Violento é o sentimento de idiotice. Seja lá por que trevas for. E de noite dormido ia para o colchão de molas soltas que pertencia ao: vovô, papai, mamãe, professor, chefe, proprietário, todos cheios de respeitáveis.

Mas a carne viva não se apequena. Tem nela um corpo do exposto, atuado. Esse sim da fantasia, do se engraçar de um teatro erótico, angustiado, cômico tal como a morte comendo o cu da insensatez.

E lá no longe se viam cinzas, enchamadas, proclamadas de autonomia no céu, visitantes mais próxima de Deus. Vai lá a cinza, anaeróbica, virótica, realidade sem ar. Daí começamos a balbuciar, a boca solta, osso quebrado cambaleante, sem firmeza qualquer, se minhocando, sem se colunar. Matéria de dentes frouxos que morde um suspiro – se vai; gargareja uma canção … oh como fui besta, pra que cantar se o som não se propaga sem ar?

Os afetos de domínio tem queixo duro, mas não há nada que se necessite dominar.

Nunca se precisa de calma, se precisa de volatilidade.

 

// Beatriz Preciado

Nós dizemos revolução

“ (…) Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do abatedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais…”

Acesse o texto completo aqui

 vocabpol em 30112014 entradas, mulheres, oficina, política, trans, transformação