Forense capenga

// Raphi Soifer

pensando o capenga forensicamente (em voz alta e sotaqueada)

(conversa entre Raphi Soifer e Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento

A linguagem socializa e racionaliza o pensamento.

o que é capenga é pensado e socialmente inserido, mas não consegue se racionalizar.  o capenga age sobre o pensamento de uma maneira um pouco torta; desracionaliza, enselvagereia.

A linguagem literária tem 4 qualidades essenciais:

concisão
    clareza
    precisão
    pureza

o capenga não sabe lidar precisa ou puramente, não busca clareza e nem concisão; na real, nem sabe que devia estar buscando.  mesmo assim, é efetivo, acaba funcionando (mais ou menos).  mas ele não apenas funciona, ele existe, se enuncia na própria falta dessas qualidades essenciais, se mostrando possível.

o capenga sabe mais:  sabe que toda qualidade que se diz essencial é capenga por si só, guarda algo torto na sua base, no cerne da sua proposta de ser definitiva.  uma tortura, porque articular uma linguagem que se diz forense requer excluir tantas outras cuja efetividade reside no afeto, requer expulsar tantas gírias queridas e acertações poéticas tidas como erradas.  se a língua forense racionaliza, o capenga sente. e toca, e atinge.

O verbo ATINGIR é transitivo direto, isto é, rege objeto direto – sem a preposição A – no sentido físico de “tocar”, “chegar a”, “alcançar”, ou noutro de “compreender”, “perceber”, “dizer a respeito”.

se é que exista uma linguagem forense para explicar o capenga, ela é a gambiarra que consegue atingir o pensamento sem se socializar, sem exatidão, mas sempre funcionando.  e aqui sou eu na maior gambiarrice, atingindo a cidade sem clareza nem concisão e sem a preposição A.  eu mergulho estrangeiristicamente no rio de janeiro.  eu me situo por aqui, funciono, alcance com um toque capenga.

voltando de uma primavera fria na gringolândia de onde venho, atinjo o rio de janeiro com toda a força do meu estrangeirismo.  alguns dias depois, a polícia “pacificadora” do morro dos macacos consegue atingir um menino de 8 anos com uma bala na cabeça.  mesmo acostumado com esse tipo de notícia (algumas semanas antes, logo depois de invadir a maré, militares mataram uma criança de 4 anos e uma avó de 67 em poucos dias) sinto-me mais pessoalmente atingido pelo acontecimento no morro dos macacos.  conheço algumas crianças de lá, que descem de vez em quanto para jogar capoeira com o grupo onde eu treino (capengamente e sem nenhum equilíbrio). não sei responder, não faço nada diretamente sobre o acontecimento além de escrever algumas poucas linhas que não mostro para ninguém.

a violência também é capenga, mas nem por isso deixa de ser eficaz. o forense responde tentando enquadrar a violência dentro de um regime claro, conciso, puro e preciso. por isso mesmo, o forense é violento por si só:  representa uma invasão definitiva e decisiva à base de palavras quase inevitáveis.

É impossível rejeitar uma palavra estrangeiro; quando vem denominando um objeto novo, uma invenção, uma idéia.  Neste caso, o recomendável é aportuguesar a palavra, como temos feitos com boné, turismo, uísque, Nova Iorque, etc.

o estrangeirismo que persiste sendo falado também é eficaz e tão essencial, quase inevitável, que não pode ser substituído. dizem que não dá para traduzir a palavra “saudades”.  nem a palavra “capenga”, e nem “gambiarra”.

não é o caso de eu me sentir à vontade aqui por achar o brasil um país capenga, mas talvez seja por eu não ter que essencializar ou traduzir o que eu tenho de capenga. talvez seja que minha vontade venha por eu sentir uma permissividade de ser uma figura capenga por aqui.  talvez eu estaria meio torto em qualquer lugar, mas é bom saber que o que eu mais tenho de capenga seriam justamente meus estrangeirismos:  meu sotaque, modo de andar, uma certa falta de esperteza (ou talvez de malandragem).

sou gambiarrista, ou de repente gambiarreiro, e diariamente capenga. (o capenga forense seria tanto o protocolo de prorrogação do meu visto de estudante quanto as minhas constantes tentativas de convencer novos conhecidos que eu sou de brasília, ou do acre). o estrangeirismo sempre será uma gambiarra, uma identidade bricolada que, na falta de uma ferramenta mais oficialmente estruturada e capaz, serve para juntar línguas, pensamentos identitários e ritmos de se conduzir no mundo.

(eu soube por facebook que a melhor tradução entre 2 línguas é o beijo. e de fato, não me lembro de alguma vez ter gostado de um beijo forense.)

A crase representa essa construção:

    a – preposição – palavra invariável

    a – artigo feminino – palavra invariável

a crase se encontra quase presa, pré-determinada pela construção de relações entre palavras invariáveis.

a crase só consegue fugir desta inevitabilidade através do estrangeirismo, que nem no próprio nome do Edmundo Dantès Nascimento.

ou seja, a crase só se liberta da preposição A, só consegue atingir diretamente quando sai das determinações invariáveis para se jogar em colocações minimamente exóticas e potencialmente capengas.

(ou seja, o capenga propõe sempre alguma saída.)

Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento: revisão Ana Maria de Noronha Nascimento. 10 ed. atual e ampl., 7a tiragem. São Paulo:Saraiva, 1999.  p. 3, 15, 32, 113.

 vocabpol em 26052016 escrita, livro, oficina, trans, transformação, verbete

Excesso

// por Cristina Ribas

São muitas anotações. São anotações que vão caindo pelas bordas do papel. Dos papéis colados na parede. Das ideias que se repetem, e que só na repetição com conjunções temporais tomam consistência. Aprendem umas com as outras, as ideias, e vão me avisando desse eu constituído entre elas. Processual, incompleto, excessivo. Esse eu constituído entre elas nem é um eu, é um intento de mergulho no excesso, no puro excesso que as concatena, as ideias, os eventos, as anotações. Intento intensivo. Sentido.

Produzimos por excesso. Por um fluxo aberto, ar-atmosférico, que vai elencando e anotando e sobrepondo e repetindo. E diferindo as coisas, o tudo mais, os restos. Vida é coisa em excesso, vida é coisa que só existe por meio de um excesso.

Não excesso como coisa secretada, expelida do aperto de outra coisa, estruturada. Não tanto resto, como em Jean Baudrillard, quando fala de um resto secretado por uma máquina (*). Sobre o excesso, que ele chama de resto, ele diz: “É sobre esse resto que a máquina social se relança e encontra uma nova energia.” Entre o excesso que eu quero falar o resto de Baudrillard pode não haver, portanto, muito desencontro.

Mas e que restos são esses? Perseguidos pela máquina social, produtiva? Na dinâmica que persegue as sobras, as minorias, a pequena gente, a mulher a parir (depois de espremida no saguão do hospital, provavelmente, ela tem que voltar  a trabalhar num curtíssimo espaço de tempo), os restos seriam também aquilo tudo que pode ser novamente quantificado e reformatado na ordem de uma normalidade. Baudrillard de novo: “o resíduo pode ser à dimensão total do real. Quando um sistema absorveu tudo, quando se adicionou tudo, quando não resta nada, a soma toda reverte para o resto e torna-se resto.”  Mas pode ser que hoje já nem haja mais resto, diz ele, “pelo fato de se estar em toda a parte.”

Nesse sentido o resto se torna o próprio excesso. O resto pode então reverter. (Reversibilidade que faz rir, diz ele.) E o excesso, assim como esse outro resto, pode ser que se faça na lógica da produção desejante, de um produzir que não pode passar pelo medir. Da efetuação de um desejo, de um produzir que se faz ele mesmo pelo desejo desmedido. O excesso é então aquela parte sempre acometida de um não, de um escape. De já se foi.

O excesso é assim acometido de outros sim. O excesso é assim autonomização pura da ficção, artificialidade pura, coisa secreta ela mesma (por si própria, para si própria), nem deixa rastros? Natureza pura do movimento, natureza pura de um fazer. Gozo incessante, manutenção do gozo, testosterona, cheiro de gente.

O excesso talvez não tenha estrutura, e tudo e qualquer coisa que se faça seja só coisa expressa pelos excessos. Excessos contudo disponíveis às neuroses, às medidas, às apropriações, fazendo que o mundo seja puro excesso, ao mesmo tempo que seja o mundo puro excesso medido, regulamentado, registrado, cortado, apropriado.

O excesso duvida da determinação que vem de fora, fazendo dela coisa cabisbaixa. Do que fazemos sabe o excesso de uma certa soberania, mas também de uma extrema vulgaridade. O excesso que deriva parece nos cercar. Ou será que somos, na verdade, feitos vulgares do excesso?

Há uma incongruência em arriscar dizer que há excessos improdutivos, visto que só há excessos produtivos, que são eles mesmos a coisa toda a fazer virar a atenção. A sintetização do excesso é nada mais que a natureza do controle, fazendo do controle uma estratégia estúpida que vem para codificar ou trilhar o que está se movimentando. Mas é que para mostrar o excesso, sem que sejamos engolidos por ele, precisamos do fragmento. Me parece que fragmentos produtivos são aqueles que carregam a intensidade do excesso em si, sem começo, e sem fim. Excesso como puro meio.

O excesso é, então, uma espécie de sublime, um sem bordas,
espaçoso, meio em descontrole, ao mesmo tempo pura ficção, e natureza pura

(*) Jean Baudrillard, “O resto”, Em Simulacros e simulação (1981) Lisboa: Antropos

Diagrama

// Tatiana Roque

“O diagrama é este formigamento de gestos virtuais  : apontar, fechar, prolongar, estriar o contínuo. Uma simples linha, um pedaço de flecha e o diagrama salta por cima das figuras e constrange a criar novos indivíduos. O diagrama ignora de modo soberbo todas as velhas oposições abstrato-concreto, local-global, real-possível. Ele guarda como reserva a plenitude e todos os segredos dos fundos e dos horizontes”.

Gilles Châtelet, Les Enjeux du Mobile

 

Como inventar uma política autônoma, novas formas de organização, práticas capazes de manter uma assimetria, como condição para uma política anti-capitalista?
Uma máquina expressiva, criação de signos que resistam à divisão entre significante e significado, entre expressão e conteúdo. Uma gramática, mas também uma semântica corporal das lutas.
Cada enunciado se relaciona a uma situação micropolítica específica, que não conhecemos sem mergulhar na situação na qual o enunciado se produz.  A escolha das palavras não é anódina, nem seu significado. A diagramática é uma recusa de rebater a enunciação sobre os enunciados, em um mundo povoado de palavras de ordem.

E opor à axiomática do capital é escapar de seus mecanismos de articulação, de mediação, de tradução de códigos. Sempre houve códigos, mas agora é preciso que todos se equivalham.
As minorias também são codificadas, apropriadas por identidades fixas, e podem se tornar reféns dos mecanismos de captura. Para Deleuze, há duas maneiras pelas quais o capitalismo codifica as formações sociais, e que são interiorizadas pelas minorias: o corte nacional/extranacional, que torna toda minoria composta de estrangeiros, ainda que estrangeiros de dentro; o corte individual/coletivo. A minoria se constitui na impossibilidade de interiorizar essa última divisão, pois tudo que parece emergir do individual (familiar, conjugal, psíquico) se liga a outras questões nada individuais (étnicas, raciais, sexuais, estéticas), com uma relevância que é imediatamente coletiva e social.

Uma das maneiras pelas quais o capitalismo codifica as formações sociais, para integrá-las em sua própria dinâmica, é a da comunitarização, ou seja, o isolamento produzido pela fixação de uma identidade. O que leva alguns grupos a enxergarem suas reivindicações como parte da esfera interna, como problemas que só concernem àquela comunidade, o que estamos chamando de problemas nacionais. Pode-se até tolerar a dimensão coletiva e política das questões que preocupam uma minoria, contanto que ele não se conecte a outras minorias, a coordenadas internacionais, transversais, ou seja a lutas estrangeiras.

Por isso, não dá pra combater o cinismo capitalista entrando no gueto, falando uma língua particular. Por outro lado, também não mobilizamos nenhuma força subjetiva renunciando à singularidade de cada grupo social. É sim, usando muito do gueto, de sua sensibilidade e seu dialetos próprios, mas para conectá-los, conjugá-los a outras lutas. Assim, podemos inventar um devir autônomo imprevisível, que passa por conexões transversais entre atores diferentes, lutas transnacionais. Talvez possamos falar de uma nova internacional.
Os momentos de maior potência dos movimentos são aqueles em que diferentes lutas se encontraram, produzindo mobilizações imprevisíveis.

Precisamos urgente de novos parâmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizações desse ponto de vista. Que se liga aos modos de existência que elas propõem, seu estilo, os problemas que coloca, as reivindicações que traz e seu potencial de conexão. O critério dessa avaliação é a aptidão que a gente tem para se articular com outras lutas, conectar nossos problemas com os problemas de outros, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades. Falar outra língua. Nunca só a nossa.
Tal é a função de uma política diagramática: operar por relações transversais entre problemas distintos e se opor à automação dos axiomas capitalistas.

 vocabpol em 16122014 diagrama, expressão, política, transformação

Hidrosolidariedade

// por Giseli Vasconcelos

Neol. 1) Solidariedade solúvel: a) Oportunidade de sistematizar as ações realizadas e apresentar o resultado daquilo que pensamos e executamos b) Processo de colaborações e associações entre artistas ou agitadores culturais c) Encontros d) Parcerias e) Envolvimento. (1)

 

Localizado no extremo norte do país, entre os estados do Pará e Amapá, o delta recebe águas de centenas de rios menores transbordando o Rio Amazonas em direção ao oceano Atlântico. É nessa desembocadura que se encontra o fenômeno da POROROCA (o tupi “poro’rog” = ‘estrondar’), quando as águas oceânicas se elevam e invadem a foz do rio num confronto que promove o surgimento de grandes ondas, mais evidente nas mudanças de fase da lua, principalmente Lua Cheia e Nova.

A solidariedade solúvel

A produção da rede aparelho aconteceu entre encontros que por vezes chamamos de reuniões e que transbordavam em ações de rua. Para cada ação proposta se constituía uma pequena rede de relações afetivas que se relacionavam às redes maiores, através dos meios digitais ou não, como: associação de bairro, terreiros, botecos, rádios comunitárias, listas de discussão e quilombos. Ao longo do tempo, espalhados entre tantos esporos, fomos coletivizando pela cidade debates em torno da liberdade de criação, expressão e ação como direito comum e público. Os assuntos amplificados discorreram sobre a pirataria, economia informal, a autonomia na produção artística e cultural e principalmente, cultura livre. Num devir impregnado pelo mote “o que ocorrer…”, experimentávamos uma composição poética política que tentava reunir fragmentos de tudo e todos entre textos, resenhas, música, vinhetas, entrevistas e cineclubismo de maneira fluida e atemporal. Estávamos na intercessão com os nascidos e crescidos ao Norte e entre viajantes, convivendo nesse tempo-espaço de comunhão em meio ao Delta do Amazonas – esse imenso grandes lábios molhados pelos rios Amazonas e Tocantins-Araguaia. Durante todo o tempo em que estivemos juntos, a hidrosolidariedade foi incorporada de modo orgânico à nossa fala, entre notas e trocas de e-mails sem muito se preocupar com as origens ou contextualização do termo.

Há-braços

Arthur Leandro (2) que traz do Rés-do-chão (3) o conceito de hidrosolidariedade para dentro do [aparelho]-:. Em maio de 2009, respondendo a uma entrevista proposta por Denis Burgierman e encaminhada para a lista de discussão CORO, Arthur sinaliza exatamente quando o termo se incorpora às nossas ações:

Re: [CORO] Re: entrevista coletiva com um coletivo de coletivos – pergunta 1
https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/corocoletivo/conversations/messages/11280
Date: Fri, 1 May 2009

Por que “coletivo”? O que esse tipo de organização permite que o trabalho individual ou os grupos tradicionais – empresa, cooperativa, ong – não permitem? Enfim, o que vocês querem com esse negócio de coletivo, diabos?

Eu vejo diferenças entre hierarquia e liderança, mas a identificação das lideranças pelas relações sociais que nos circundam – e não conseguem nos circunscrever na hierarquia de poder…, como desejam -, faz com que nos identifiquem com palavras como “coordenador”, ‘chefe’, ‘manda-chuva’… Nós resolvemos por aqui com a auto-identificação como ‘agitadores’…, adjetivo também usado pelos que nos olham ‘de fora’, mas com a multiplicidade de interpretação que nos interessa.

daí o ‘agitador chefe’ vai depender muito de qual é o universo e de onde vem a identificação, por exemplo, no micro-universo do campus do Guamá da UFPA… Para a faculdade artes o chefe sou eu, mas nos bloco de ciências humanas já foram Luis e Angelo e hoje talvez seja a Bruna… No micro universo das culturas afro-amazônidas: nas comunidades de terreiro sou eu…, no hip-hop é a Yá Maré ou Perna, e no tec nobrega é a Giseli… Na comunicação comunitária é o Angelo, pros artistas de rua é o Rodrigo, na ilha de Colares e na baía do sol é o Fernando, pro pessoal das cênicas talvez já seja o Pedro… e por aí vai… é rede de relações… quem é o coordenador/chefe?

pra mim interessam as trocas, eu também atuo em outros coletivos e/ou grupos de outras cidades onde morei, como o Urucum em Macapá; e em outras formas de des-organização como o Rés do Chão, no RJ, ou em grupos virtuais como este coro que diverge tanto que nem faz coro…. Dai aqui na rede [aparelho]-: sou eu que trago do Rés o conceito da hidrosolidariedade…. E nossa primeira ação realmente coletiva e colaborativa se chamava “Potoca free-style, ou cineclube hidrosolidário, ou projeção de filmes para Yemanjá no dia 2 de fevereiro, ou esperando um novo nome pra batizar…”; também sou eu quem impregna a rede de informações das artes visuais…, mas eu não sabia (ou não sei) n ada de só-fi-tu-ér livre, e aprendo muito disso com a proximidade com a Yá Maré, como de edição de som com o Angelo, de Mônadas com a Bruna e por ai vai, é rede de relações….

ELEMENTOS DE UM RIO
fluência, afluência, confluência, leito, margem, montante, nascente, foz.

Com o passar do tempo, na tentativa em rescrever esses processos, percebemos um conjunto de significações potentes por detrás desse vocábulo que vai muito além da nossa micropolítica: a palavra desvela intrinsecamente nosso comportamento grupal, tribal e tropical-amazônico carregados de uma alegoria fundada num horizonte plano, infinito e líquido – somos sinônimos de água procedente de qualquer secreção corporal (o suor, as lágrimas, a baba…), do suco das frutas, do líquido que escorre das árvores, da bebedeira e do rastros espumantes das embarcações. A palavra também simbolicamente remete nossa história entre hidrovias, furos e recortes de rios, elaborados por gente em civilizações provavelmente antes da descoberta da América. E ainda, esses fluxos de passagem, relatados entre tantas viagens, desvelaram um imaginário de olhares mais de longe que de perto exauridos entre agonia e empatia.

Oxum

Oxum: orixá feminino que reina o amor, a intimidade, a beleza, a riqueza e a diplomacia sobre a água doce dos rios.

Proposta de com-viver

Em 2005, Arthur Leandro apresenta os Reslatim, uma série de relatos de viagem que culminaram nos registros de um ritual-de-passagem durante sua residência ao sul da França. Estávamos trabalhando juntos na seleção de parte desse diário (compartilhado pela lista de discussão do Rés-do-chão) para a publicação Digitofagia (4). Os Reslatim expõem caprichosamente a tensão de uma experiência individual de um amazônida diante da adversidade e desentendimento travados noutra cultura. O norte hemisférico, pautado na homogeneização de valores e comunicação padronizando conduta, sentimento, imaginação e linguagem.

O autor contrariado com o comportamento europeu, se desdobra por vezes na reflexão sobre o uso comum da expressão “desolee” (o que no português diríamos “sinto” e no inglês é o equivalente ao “sorry”) para discorrer sobre um modo coletivo ausente de solidariedade para com o outro: “O desolee é um vazio semântico, é o contrário de guerra que lança a palavra e seu significado ao encontro de novas circunstâncias, vejo o desoles como a atitude da muralha de comunicação. é muralha do eu para com a comunidade com que se com-vive.

Diante da nossa compreensão amazônida, o outro é afluente de vida. O outro é o que corre ao teu lado, atravessa e trespassa e cruza, como um rio. Nossos redários se formam por fruição, experimentando um curso de água, e desvendando as tecnologias possíveis como fora a canoa para a cabanagem e o regatão, para o jornal e televisão. E assim também, como na pororoca, a sobrevivência é um encontro estrondoso de movimento brusco que provoca na diversidade, as ideias, os desentendimentos, as redescobertas e outras linguagens.

Nesse diário de memórias, carregado de um comportamento tropical-úmido percebemos o clamor por trocas solidárias, fluidas e frouxas desmensurável, quase análogo ao nascimento de um rio buscando seu curso: (…) e talvez eu seja muito radical, mas quero continuar a viver na hidrosolidariedade e na hidrogenerosidade que faz a gente trabalhar junto por um projeto coletivo que ninguém sabe o que é. como a liberdade, mas que tem a participação de toda comunidade, com liberdade. Juntos!!!

Portanto, esse relacionar-se íntimo presente nessa terra do meio tropical, espelha-se num tempo que pára com as chuvas, que segue entre o aguaceiro penetrando nos solos para assim encontrar espaços vazios entres brechas e furos até chegar a um outro corpo d’água. E como num movimento solidário, um rio maior precisa se hidratar recebendo águas de rios menores, e então estes se tornam seus afluentes num fluir que compartilha o que não fica, que vai e escorre.

Estrela do Norte

PARÁ = RIO GRANDE. Do Brasil, sentinela do Norte.

Esse rio é minha rua

A imagem que se tem a respeito da Amazônia é formada por um imaginário por vezes edênico e satânico representada arbitrariamente por quem a olha de fora. Esta representação perpetuada pelas mídias, também mimetiza esse imaginário entre os fatos, denominando como único o que é diverso, e impondo uma identidade única a uma pluralidade de culturas, de naturezas e de sociedades.

A imaginação que normalmente se tem da região é, quase sempre, “mais uma imagem SOBRE a região do que DA região” como produto resultante de um contexto marcado por relações de poder. De uma geografia diversa, da nascente do extenso Rio Amazonas até a sua foz, a visão que temos do extremo norte é um rio de horizonte-infinito de onde muito de nossa poesia se referencia. De Belém vive-se conflitos de uma cidade cosmopolita que não sabe se é uma pequena metrópole ou uma grande província. Belém é um constelário de ilhas que representam 69% da superfície da cidade, nasceu por assim dizer sob o signo insular. É uma cidade portuária que recebe pessoas de todo o mundo sendo um ponto de partida de riquezas ancestrais. É onde o arcaico e moderno coabitam o mesmo espaço, a vanguarda e retaguarda com-vivem, o sagrado e o profano não se separam.

Di-versos

“Quanto a este mundo de águas é o que não se imagina. A gente pode ler toda a literatura provocada por ele e ver todas as fotografias que ele revelou, se não viu, não pode perceber o que é.” (5)
Enquanto reunia notas para este verbete deparei-me com um pequeno artigo “um grau ao sul” de Maria Christina que rememora a carta de Mário de Andrade encaminhada a Manoel Bandeira datada em junho de 1927. Esta carta denominada deliciosamente “Por esse mundo de águas” discorre sobre desejo sexual e arrebatamento em torno de suas experiências em Belém do Pará. Ela faz parte de uma série de registros entre fotografias, cartas e notas que Mário de Andrade manteve durante sua viagem à Amazônia, que dizia ser um diário despretensioso do que foi a viagem mais importante na vida do autor.

Neste relato que Mário denominou de “O turista aprendiz: viagens pelo Amazonas até o Peru pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega!” se percebe numa espécie de adesão à civilização tropical, descoberta sentimental intelectual de sua interpretação de um Brasil numa concepção plural de civilização mais sincrética que sintética. A viagem começa no início de maio e termina em meados de agosto de 1927. Já nos 10 primeiros dias o autor anuncia o espanto do seu olhar europeizado diante da desmesura e singularidade do mundo amazônico: “Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintarão que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjinho que ainda tenho dentro de mim (…)”.

A experiência de viagem de Mário de Andrade na região mesmo que curta for fundamental para sua meditação sobre uma civilização tropical. É durante esta viagem que o autor complementa as notas para versão de Macunaíma (redigido um ano antes mas totalmente aberto para inserções e colagem, lançado no ano seguinte), esboça a narrativa Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, além de experimentar a fotografia moderna.

Assim como nos Reslatim, as cartas e notas de Mário sobre a Amazônia sempre marcam de modo contumaz e por vezes irônico a ótica européia tecnicista, marcada pela hegemonia de um pensamento sintético e científico. Mesmo em tempo espaço diferentes, dum campo de visão deslocado (um amazônida na Europa versus um paulista europeu na Amazônia), esses relatos vem carregados de uma tensão que misturam a paisagem com estados afetivos que direcionam a escrita e o pensamento, propondo quase uma oração mental que nos ajuda a seguir profundamente sobre esse horizonte fluido.

Discorrer sobre um vocábulo que confirma-nos em ação é trazer à margem um translado de raízes e rotas que nos representam traduzindo signos e significados que nos semeiam. A hidrosolidariedade não deixa de ser uma utopia amazônica – quando pretendemos seguir um caminho solidário, frouxo e volúvel seguindo a natureza do comportamento das águas, desconsiderando o contágio e a assimilação como caminho único de civilização em direção ao progresso, sucesso e desenvolvimento. A hidrosolidariedade é a intenção – quando muitos juntos se dispõem como fluidos – correndo como a água, vagando a trocar experiências e conteúdos por uma re-produção, distribuição e reciclagem de tudo, aos VIVOS.

Ursa Maior

Ursa Maior

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci… Não é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e traçando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. (Macunaíma – Capítulo XVII: Ursa Maior)
Notas:

(1) Hidrosolidariedade faz parte do glossário sugerido para o projeto de pesquisa [Nu]-: aparelho: Relatos sobre coletivos, arte e colaboração baseado em entrevistas e ações envolvendo agitadores da rede aparelho, em Belém do Pará. A definição é proposta por Bruna Suelen, em sua tese de mestrado em artes na Universidade Federal do Pará.

(2) Arthur Leandro ou Etetuba (homem-forte) é pai-de-santo, guerrilheiro-artista, amigo-amado, pensador e professor na Universidade Federal do Pará.

(3) Rés-do-chão, foi um espaço autônomo na casa do artista Edson Barrus que promovia vivências, criação e discussão em arte. O Rés produziu uma série de publicações independentes além de experimentações entre performances e vídeos, compartilhada entre listas de discussã o, transmissão online, exibições etc.

(4) ROSAS, Ricardo; VASCONCELOS, Giseli (Org.). Net_Cultura 1.0: Digitofagia. São Paulo: Radical Livros, 2006.

(5) ANDRADE, Mário de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

(6) Relato crítico de Maria Christina para 31ª Bienal de São Paulo, acesso disponível em: http://www.31bienal.org.br/pt/post/634

 vocabpol em 07122014 conceito, entradas, índice, movimento, transformação

Lugar

// por Inês Nin

1. se existe alto e baixo, direito e esquerdo, frente e verso, existe um lugar. 2. se onde havia uma coisa e existe agora uma outra, existe um lugar. 3. se há um corpo, há um lugar. 4. se cada corpo está situado em um lugar próprio, existe um lugar.

[sim, aristóteles. recorrer às bases, mesmo que as sobrescreva depois.]

artefato. povo construído. lugar errante.

de imensidão só lhe restam as botas, de tantas viagens por aí que gastas as lembranças fico, paro com o intuito de me recompor.

imaginar um terreno que não seja matéria de composição mas desastre, atraso, atalhos mesmos que furtivos só guardo em memória. as técnicas de sobrevivência variam tanto. o lido com os lugares, o tratamento, o embate cotidiano e as danças.

é de madeira o chão, telhado inclinado, construído com as próprias mãos. prever o mínimo de interferência no ambiente, de verdade. floresta quando penetra a casa e transforma ela mesma em um labiríntico desafio que traz conforto, diverte. põe para secar ao sol o que sobrou de antemão, enche de água o que se quer cultivar. observa.

para os estoicos, o problema do lugar está ligado ao problema do movimento. um lugar é concebido pela transição dos corpos que por ele passam. tal como em aristóteles.

( )

delimitações. um lugar é um intervalo? uma posição.

 

territorialistas dirão, este é o meu lugar. distinção por entraves, catracas, limites desenvolvidos arbitrariamente, gerando a noção de propriedade. lugar tem dono?

diria a terra. um pedaço de terra, um lugar. matéria pura, compreendida em consonância com o que há em volta. música. estrutura, movimentos sistêmicos que cumprem rotas em variação, caminhos, danos, elevação. cíclicas voltagens, antes mesmo de construir.

do limite surge o referencial. talvez, de um terreno preciso. para ele são traçadas rotas, mapas, são criados mitos, memórias. formam-se famílias, redes e articulações organizadas por sistemas de parentesco, continuidades. talvez então isso: ao invés de cercas, noções de assimilação em grupo. contiguidades, modos de fazer e habitar.

um dia, emitem um protocolo, pisam em qualquer noção de hábito, mesmo cuidados. alheios são aqueles, os que não decidem os rumos do lugar. montantes outorgam demolição do terreno, inventam de substituir as construções. dizem: “é a modernidade!”. despropositadas ferraduras, racham o chão.

os sem medo, enfrentam. “é por uma noção de pertencimento, pelo direito que chutam a pontapés. e onde construir, então?” umas vidas. uns sossegos. uns hábitos, que elétricos, flutuam. atravessam paredes, rompem territórios, emanando flores por onde passam.

 vocabpol em 04122014 entradas, escrita, livro, transformação, verbete, vocábulo

Mulheres-violência

//  Juliana Dorneles

Pós Pornô e Feminismo
A pornografia era vista com desconfiança no vocabulário feminista (assim como toda a indústria da prostituição), considerada como signo de sujeição e reiteração da mulher como objeto sexual – única e exclusivamente para o prazer masculino. A mulher mesmo, ficava fora desse gozo.

Além disso, as imagens criam e mantém o imaginário sobre um tipo de comportamento sexual desejável. O apelo erótico do pornô invade nosso imaginário e a imagem pornográfica se conecta e alimenta nosso desejo. Isso é bem grave em se tratando de uma revolução dos costumes, que justamente quer se livrar dos padrões colonizados desse imaginário.

Mas não é negando o pornô que se muda o pornô. É fazendo o pornô que se gosta. Então, pernas abertas para o fluxo sangüíneo das atitudes divertidas.

O pós pornô é uma atitude a partir da constatação da colonização do imaginário sexual pelos padrões da dominação masculina. Se existe uma representação colonizada da sexualidade que não favorece a alegria e o imaginário das mulheres, a alternativa para isso é criar outros imaginários, dar chance de estabelecer outros mundos para a sexualidade, onde as fronteiras entre os gêneros se borram e os papéis clássicos homem/mulher ficam difusos.

Há histórias quentes, inversão dos papéis, cenas de mutilação, sexo hardcore entre mulheres, skirt, crossdressing, sexualidade queer e tantas outras cenas que surgem para encantar, chocar, ou divertir, mirando a invasão da nossa cultura sexual.

Sim, se trata de uma outra cultura sexual, de um desejo esta cada vez mais múltiplo; e cada vez encontrando mais fontes de ampliação onde nem mais os órgãos genitais são uma fronteira. Gozar pode ser uma experiência mais ampla, pode incluir a natureza, pode incluir um corpo andrógino e machucado, pode incluir carros (J. G. Ballard) ou paisagens sonoras. Tudo é sexo, mais escancarado ou menos, criando suas alianças e derivas em imagens, performances, relacionamentos. Sexualidade como criação artística.

Vertente crítica-criativa; que remete a uma crise da sexualidade normativa; e uma necessidade de encontrar novos corpos e imagens para outros corpos e mundos. Sua violência e virulência, alguns abordam, poderia ser lida como a violência necessária para a escuta daquilo que até então (até a irrupção deste ato estrondoso/performático) não existia no imaginário do mundo. Violência do grito que quebra as taças de cristal. Faz alguma coisa girar. Quebra padrões do imaginário – quebra que nem sempre acontece sem dor.

Violentas são as esperas, as crenças, o condeno no otimismo do triunfo, a prisão no armário fundo do eu.

Uma bofetada é bem mais importante do que dez lições, compreende-se muito mais rápido, sobretudo quando é uma mãozinha macia da mulher que nos dá a lição.

(Severino/Gregório. A Vênus das Peles)

 

Violentas
Este vocábulo poderia ser também poderosas, escandalosas e incômodas.
Palavra de ostentação do poder.
Mas fiquemos com violentas.
Porque existe um escândalo violento do poder. Mesmo nos velados, a portas fechadas, por tras dos muros. Nem sempre as coisas precisam se dar a ver para serem escandalosas. E se a primeira vista qualificar a violência como escandalosa poderia parecer um juízo comum (que ruim que é ser brabo, furioso, violento); veremos como, na operação inversa, este escândalo está diretamente ligado a força da violência.
Existe uma força na violência, uma energia. A que quebra um osso e a que quebra um padrão. O que salva a violência é que ela é um limite, um esgotamento, um desabafo. Tem nela um sem palavras, são atos, manifesto daquilo que é insuportável. E se faz entender assim, na marra. Parece feio ou estranho, machuca. mas é ela lá gritando como Rosalyn no deserto (a personagem de Marylin Monroe no filme “Os Desajustados” -1960- de Arthur Miller).
Sim, falamos dessa violência que irrompe, do incontrolável e incômodo; ao mesmo tempo completamente necessário. Faz alguma coisa mexer, um escândalo da raiva que realiza e expressa, criando uma brecha no espaço-tempo repressor e omisso. É um tipo mulher de poder: a violência uterina, tão sedutora quanto avessa a razão. Escândalo do poder feminino.

Pensemos neste filme e nesta cena específica. São três homens – a possessão masculina (dinheiro, força física, audácia). Violência primária como modo de lidar com o selvagem. E a mulher, corpo todo compaixão e angústia, incômodo. Onde não há mais palavras possíveis, advém o urro das entranhas. Longe, num solo assistido por estes tres homens mortos, Rosalyn lança uma maldição. O grito onde não há mais negociação possível. Elas são todas loucas, diz o mais triste deles. Loucas, furiosas, e poderosas; de palavras ingratas aos concílios e conciliações. Um poder da fúria se emege contra a própria violência, se diria. Um levante das entranhas em estado de miséria, dissecadas pela angústia das restrições (impostas ou auto impostas). Levante da arma do corpo berrante, o insuportável. Que madeixas poderiam ficar no lugar? Se o selvagem da natureza é domesticado e transformado em carne morta de cavalo, aparece uma mulher que instiga a horda masculina pelos instintos (reprodução! Reprodução!) e ganha a cumplicidade dos audaciosos. É o terceiro homem – do tipo que não gosta de ver a carne morta, pois admira seus adversários.
Que forças loucas e sensuais são necessárias para fazer sair o torpor do estabelecido. O incômodo.

É a violência crua e contratual de algumas práticas masoquistas; é a violência cruel do sádico, para colocar algo em movimento. Tudo sempre ligado a uma boa dose de sedução. A crueza é muito mais misteriosamente sedutora; ao contrário da maquiagem, que envaidece o jogo do poder.

A esses cabem os arregaços, de boca aberta, entrante. Mas também na boca fechada, miudeza, não se regram essas partes. Lugares sem senão, pouco acolhedores do consolo do eu. Um desfazer, numa espécie de geração açoitada na carne, violenta, vivificada pelas cicatrizes cravadas no lugar das angústias malvadas, pequenizantes, solícitas por restrição. De pequenices nos enche o pesadelo de restrições. De apavorados imploramos um perdão que já bem sabemos não existe. E por que se insiste?

Violentas são as esperas, as esperanças, as crenças, o otimismo do triunfo, da condenação da prisão no armário escuro do indivíduo. Violento é o sentimento de idiotice. Seja lá por que trevas for. E de noite dormido ia para o colchão de molas soltas que pertencia ao: vovô, papai, mamãe, professor, chefe, proprietário, todos cheios de respeitáveis.

Mas a carne viva não se apequena. Tem nela um corpo do exposto, atuado. Esse sim da fantasia, do se engraçar de um teatro erótico, angustiado, cômico tal como a morte comendo o cu da insensatez.

E lá no longe se viam cinzas, enchamadas, proclamadas de autonomia no céu, visitantes mais próxima de Deus. Vai lá a cinza, anaeróbica, virótica, realidade sem ar. Daí começamos a balbuciar, a boca solta, osso quebrado cambaleante, sem firmeza qualquer, se minhocando, sem se colunar. Matéria de dentes frouxos que morde um suspiro – se vai; gargareja uma canção … oh como fui besta, pra que cantar se o som não se propaga sem ar?

Os afetos de domínio tem queixo duro, mas não há nada que se necessite dominar.

Nunca se precisa de calma, se precisa de volatilidade.

 

// Beatriz Preciado

Nós dizemos revolução

“ (…) Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do abatedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais…”

Acesse o texto completo aqui

 vocabpol em 30112014 entradas, mulheres, oficina, política, trans, transformação

Sair

// por Inês Nin

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio
pro lampião
Pode me esperar Mané
Que eu já volto já
Acendi o fogão, botei a água pra esquentar
E fui pro portão
Só pra ver Inez chegar
Anoiteceu e ela não voltou
Fui pra rua feito louco
Pra saber o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital e no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inez
Voltei pra casa triste demais
O que Inez me fez não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel
Escrito assim:
– Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais

(adoniran barbosa, apaga o fogo mané, 1974)

 

baratinada, atordoada pelas constantes mudanças e transformações. ao mesmo tempo entusiasta, enxame de possibilidades geradas pelo tempo que abre uma nova camada de espaço/lugar, novos planos, desandos, perambulâncias e afazeres locais.

sair é intimamente ligado a lugar, sair como espécie de fuga premeditada, sair como vontade de sair do lugar (“mexe essa bunda da cadeira”), sair como solução aparentemente fácil (esvair-se da presença, não lidar com); sair é ir, é partir(-se em pedaços? pulverizar), algo referente a circunstância, uma necessidade, um meio.

sair como uma intenção de lugar. realocar o corpo ou um estado, o sujeito, para refazer sua potência, para entender-se de novo, para alhear (imensa necessidade de alheamento, tantas vezes se faz)

sair implica em movimento: mover-se pelas próprias pernas. tomar iniciativa de, encontrar ou procurar um rumo, pôr-se a caminho

(duros empenhos em sair do lugar)

lidar com a hipótese de fuga é de algum modo mais fácil que lidar com a ação. que precisa de tempo para compreensão, implica em processamento (de dados, de mudanças, de estados de corpo e cansaço). zerar as possibilidades é um fetiche que, diante de algo duro, se refaz constantemente.

– e se eu, simplesmente, saísse daqui?

sair como ação impensada, tomada de posição, absurda ação mesma que não se define, como se simplesmente sair se faz

(e então, estado presente que atormenta, algo a que se quer abandonar)

pontapé para o infinito, atadura. semmãos, semmedo, mmordedura. coragem, aquilo de que tanto falam os clássicos romanescos sem era, que se sobrepõem a uma realidade turva, demasiado complexa para nossos contos de fada caninos. anacronismos de infância, maus adestramentos. depois de um tempo, os embalsama todos e transforma em leituras de maniqueísmos diversos, notícias sem profusão nem densidade, as quais só se lê às partes. reitera discursos ou cria coisa alguma, mas segue algum rumo estrito que supostamente se concretiza. ou não, engole a rebelião e bate ponto no escritório, todos os dias, eis o método que seu pai lhe ensinou.

fuga estaria adoecida pela vontade de escapar, impulso dormente que não tem lugar? abstrata palavra sair, enquanto que fuga apresenta forte oposição (como fugir de – ou fuga, substantivo, algo que acontece ou se sucedeu). a fuga antecede a memória, esvazia-se em ato: simplesmente ir, fugir da coisa, sair do sistema, remodelar ou implodir tudo em fato

(esvair-se do sistema é algo absolutamente sedutor e iminente; difícil concretizar)

da vontade de sair e do semmedo da história, da fuga que tem por desejo existir, há em tudo uma propensão a um fora, um desejo de alhear disso que aqui está

(como um estado de coisas que se altera por uma ação, por mais que esta se faça em abandono)

o truncado está aí, pois se sistema nada faria para tornar fáceis as medidas, codificáveis os modos:

– e quiçá existe um fora?

ou o fora ele mesmo já está dentro? faz parte de um comum que a tudo se esquiva e penetra?

entranhas nervuras e atravessamentos, outrora solfejos, coisas que não têm lugar

permeios e sucessões esquivas irá, irá, encontrar um morcego em um lugar sem hora, sem memória, fora de linha e calado de números, talvez,

liberdade turva só acontece quando não se vê, quando alegre mentira costura sossegos onde quer que se vá.

sair, contudo, ainda é um meio que se faz.

nem que seja para alterar lugares, contaminar uns com os outros, colher um a um. e não deixar lugar.

(identitárias vontades explodiram no ar)

 vocabpol em 25112014 entradas, transformação, verbete, vocábulo

Transdução

– ou “Guia para orientar-se na multidão”

// por Pedro B. Mendes e Fernanda Kutwak (1)

Que peut un homme pour autant qu’il n’est pas seul?
[O que pode um homem uma vez que ele não está só?]
– Muriel Combes

 

Toda relação é, por princípio, trans

Diálogo

Se relacionar-se é por-se às voltas com o mundo do outro, e sobretudo de outrem – aqueles que não estando presentes se fazem efetivos na ausência, implicados que são na relação contrastiva necessária à nossa própria singularidade – é preciso afirmar algumas condições ao diálogo:

1) a existência de uma mesma língua, longe de nos igualar, faz emergir as diferenças, torna palpáveis as distâncias entre nós que, de outra forma, passariam desapercebidas; cada fonema, palavra ou fórmula linguística apela à nossa experiência de vida, a nossas preferências, nossos hábitos e cegueiras, cuja combinação é tão múltipla quanto o é nossa vida – e as línguas como parte constituinte delas. Sozinhos em nossos mundos-modos somos capazes de perceber as coisas apenas de acordo com nosso próprio ponto de vista, nossa própria singularidade. Se isto não é suficiente para nos colocar em contato com a diferença, não em termos radicais como exige nosso presente, deveria bastar para nos fazer perceber a singularidade de nosso próprio caso. Em outras palavras, esse ponto de vista só pode existir por que há outros que dele se diferenciam. É em contraste com outrem que nossas vidas são possíveis.

2) Todo diálogo é coextensivo à produção de um mapa experimental (complexidade) e instável que deve nos dar, a cada momento, os aclives e declives de uma relação, suas possibilidades, suas entradas e contornos, sem os quais toda conversação caminha inevitavelmente para um fim. Lacan dizia que a boa análise consiste em construir a boa distância em relação a tudo aquilo que nos afeta. O contraste entre as singularidades é um processo dinâmico de diferenciação, em que as distâncias vão aumentando ou diminuindo, em todo caso variando, construindo erraticamente aquilo que, por falta de imaginação, convencionou-se atribuir a uma hipotética “primeira pessoa” pura, do singular ou do plural, pouco importa.

3) O melhor mapa, ou antes, o único mapa possível de nós mesmos é aquele traçado pelos outros. A autoimagem é na verdade um patchwork constituído de imagens outras, imagens que os outros vão pintando de nós nos diversos encontros que entretecemos durante a vida. Aquilo que atribuímos ao “eu” e ao “nós” nada mais é que o recorte precário e cambiante – um espectro – dos vários atravessamentos que somos convocados a viver. (hidrosolidariedade) Portanto, se queremos saber como vamos ou (re)agimos em uma determinada situação, nada melhor que observar a sombra que fazemos nas luminosidades alheias, e vice-versa, a luz que projetamos sobre os corpos dos outros.

4) A palavra portuguesa “nós” dá conta da ambiguidade sutil de nossa condição. O “nós”, primeira pessoa do plural, contém a multiplicidade de relações que se esconde dentro do sujeito que age. Mas mais que conter, os “nós” da rede de pessoas que somos libera a diferença subsumida em uma suposta unidade da ação. Somos diferentes em relação a cada situação. Diferimos todo o tempo de nós mesmos. O jogo daquilo que resta e do que avança a cada encontro é exatamente o que tentamos conter precariamente com as pessoas verbais e o que torna possível que, sendo nós mesmos, sejamos tantos outros a cada momento. Nós: pontos em que convergem vias de comunicação.

5) Da mesma forma, cada combinação que traçamos ou de que fazemos parte tem possibilidades distintas, de acordo com os actantes-ingredientes relacionados e com as variações a que nos expomos e a que somos submetidos. Portanto, sem entrar em questões relacionadas à nossa importância no mundo – muito diminuta, é sempre provável – convém nos atermos às impressões que literalmente deixamos por onde quer que passemos. Nossos ideais são louváveis, nossas utopias parecem perfeitas, mas são nossas pegadas que deixamos por onde passamos. Elas são o rastro concreto de um mundo em construção: são os efeitos de nossas ações (e inações) que permitem avaliar as soluções que damos aos problemas. É em termos de efeitos que convém a tudo i n t e r p r e t a r.

6) Nem falante, nem ouvinte. Nem parte, nem todo. O mais importante em um diálogo é a relação que une e principalmente faz oscilar a posição de sujeito e objeto de acordo com as inflexões do momento. A expressão de uma diferença, um instante de surpresa e a palavra vai como o vento: são os intercessores que nos fazem mudar de rumo – e de forma, de natureza, de intensidade. É graças a eles que nos engajamos em movimentos outros, ora acelerando com o impulso inesperado de uma parceria, ora freando diante de um encontro pouco ou nada promissor; mas sempre oscilando de direção e de sentido ao sabor dos ventos e das correntes. Cada intercessor um encontro possível, cada encontro uma surpresa, cada surpresa uma diferença.

7) Last and maybe least. Um verdadeiro encontro, um diálogo honesto, não tem regras preconcebidas. Apenas duas leis, tão óbvias quanto necessárias, cada uma apontando para uma polaridade e um risco extremos: a primeira diz respeito ao esvaziamento da diferença e à colocação do outro numa posição de subalternidade, em que qualquer surpresa possível é sempre atenuada mediante uma explicação bem ou mal-intencionada – portanto, não apagar, não silenciar, não desqualificar uma fala. A segunda está ligada ao microfascismo que nos habita a todos, e ao qual é preciso aprender a resistir juntos; é sempre tentador suprimir a diferença incômoda, a posição dissonante, numa dinâmica cujo limite são a violência física e o assassinato – logo, não agredir e principalmente não permitir que se agridam as pessoas. A democracia exige esse compromisso básico.

Entrar em diálogo é inevitavelmente se transformar (escuta) e, assim, implica em correr riscos. Se as pessoas não se afetam, pode ser qualquer coisa, menos um diálogo!

— xxx —

Tradução

Na introdução à edição da Brasiliense de Satyricon, de Petrônio, Paulo Leminski aborda o ofício do tradutor-poeta em sua condição trágica: manter uma fidelidade essencial ao jogo estilístico tecido no original e assim perder parte do encanto proporcionado pelo conteúdo do texto; ou perseguir o rigor semântico e abrir mão da riqueza da forma poética. Diante da antinomia apresentada, cara a todas as boas traduções de obras consagradas, Leminski propõe um saída inusitada: se é para correr riscos, que seja com a arte dos equilibristas na corda bamba. Em outras palavras, a opção pelas duas vias e por nenhuma delas em especial – trair a ambas e ser fiel, na medida do impossível, também a ambas. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém. Questão de dignidade, não de fidedignidade.

Equilibrando-se na transcriação do texto, o poeta-tradutor ora segue o caminho trilhado pelo autor, com seus valores de oralidade e naturalidade dos diálogos, ora se afasta dele para se embrenhar pelas veredas da linguagem em um arriscado corpo a corpo de fim imprevisível. Ora ainda abandona toda etiqueta e se permite incorporar, baixar mesmo, num download espiritual, a materialidade do sensível e literalmente percorrer – em pessoa! – o caminho impossível do autor, com o compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo.

Como ocorre com Pierre Menard, autor do Quixote, de Borges. Pierre não é aquele que vai repetir Cervantes, mas alguém que busca viver uma outra vida até o extremo em que sua vida e seus deslocamentos vão assumir uma indiscernibilidade em relação às opções e à história do autor “original”: não se trata de copiar ou mesmo de reescrever a obra-prima da literatura ocidental, mas de se engajar numa relação absoluta com autor e obra; em que o absoluto não corresponde a qualquer totalidade, segundo a qual ainda estaríamos no horizonte da cópia e da imitação – mas ao germe que altera a própria vida que contagia a ponto de tornar as duas indissociáveis, não iguais! Pierre Menard deseja viver ao extremo as condições que levaram Cervantes a criar Quixote para que possa, também ele, dar vida, não a um Quixote, mas ao Quixote.

Em sua busca por criar algo que já existe – o que, nesse sentido, torna sua missão impossível – o desvairado autor se torna ainda outra coisa, pois que passa a seguir os passos (e os pensamentos) do próprio Cervantes. Que Borges tenha feito da história uma ode à identidade não apaga o feito – muito pelo contrário! – de que, em seu cerne, na suposta equivalência entre os dois Quixotes, e entre Pierre Menard e Miguel de Cervantes esteja o devir, que foge – e faz fugir – tanto mais quanto mais se tenta contê-lo. A história narrada por Borges, o fictício, não o escritor, tramada para encerrar duas vidas em uma mesma épica, acaba por mostrar a relação indissociável e imanente que existe entre univocidade do ser e multiplicidade ontológica.
Esse conceito radical de tradução como afetação / contágio faz eco à definição que alguns antropólogos dão de uma simetria das relações entre coletividades distintas: trata-se de comparar, de colocar em relação, bananas e maçãs, humanos e não-humanos sim, por que não? Somos todos diferentes, uns mais outros menos, temos todos desejos e construções divergentes, às vezes mesmo incompatíveis, que se encontram na base da própria vida.

Dialogo & tradução. O que eu falo é verdade, o que você escuta é mentira. Há um lapso entre o que eu digo e o que você escuta. Falo a partir do mundo, o meu mundo, você escuta a partir de suas referências. Um processo de tradução é necessário. De diálogo entre mundos.

— xxx —

Transdução (I)

Um hospedeiro contém um vírus.

O vírus, por sua vez, carrega o material genético daqueles com quem entra em relação, ou seja, ele também é, de certa forma, um hospedeiro; enquanto tal, o hospedeiro carrega um vírus que, por sua vez, carrega o germe de outra coisa.

Ao investir contra seu alvo, o vírus se apropria [por cópia] de um trecho do código genético deste. Ele replica o código, mas apenas parcialmente e o carrega consigo em suas futuras mutações.

A partir desse momento, de todo momento da vida do vírus, ele se torna a combinação de seu próprio código genético e de outros com os quais entra em relação durante a vida.

Não apenas o vírus se torna uma combinação única de códigos genéticos, algo como uma impressão digital genética e recombinante, por mais “familiar” que seja o ambiente em que circula(m), como as relações de contágio que ele estabelece se tornam também elas singulares.

A relação estabelecida depende do contexto em que corpo infectado e vírus se encontram e sobretudo da relação de força entre as defesas do primeiro e a capacidade de contágio do segundo. O jogo agonístico entre eles nunca é o mesmo e nunca se decide antes do encontro propriamente dito, e ao corpo infectado sempre é possível resistir à infecção.

Enquanto o corpo pode ou não resistir à investida do vírus, que nunca é um, mas uma multidão, a infecção se caracteriza por uma relação de indistinção entre ambos, que passam a se relacionar numa espiral de criação e destruição, de vida e de morte.

Se o corpo se torna perigosamente infectado, isto é, se torna mais e mais como o vírus, a ponto de reproduzi-lo e de se deixar infestar pelo agente patógeno, o vírus se torna outra coisa antes de seguir (ou não) sua trajetória contagiante. De toda forma, o encontro transforma a ambos de modo marcante.

Estima-se que um corpo humano adulto e saudável contenha dez vezes mais micróbios dentro de si que células humanas, todos vivendo em perfeita desarmonia. Não fosse esta relação, simétrica e em desequilíbrio dinâmico, e não teríamos passado da “pré-história”. Da mesma maneira, estima-se que este corpo abrigue exemplares de todos os vírus com os quais entrou em contato durante a vida, constituindo um bioarquivo de dados que lhe servirá de defesa pelo resto da vida e que, em uma situação de fraqueza, pode levar a novas infecções.

No entanto, a relação entre corpo e vírus é tudo menos previsível. A doença, por exemplo, epítome do sofrimento físico e psíquico, é naturalmente compreendida como resultando de um jogo de soma zero que, quando fora de equilíbrio, coloca em risco a saúde dos corpos. Por outro lado, é possível que ela seja apenas um dentre os vários desfechos possíveis que acaba por determinar nossa própria percepção – trágica – deste encontro. E não nos referimos aqui ao fato da doença ou do adoecer, mas à necessária reorganização de sua economia em relação à saúde e à vida.

Outras modalidades de relação que não a doença apenas são vistas cada vez mais como determinantes para a existência e o modo como a vida de corpos e vírus se desenrola em paralelo, na relação.

Cientistas e biólogos avaliam que essa evolução cruzada, não linear e interespecífica, seria uma das principais responsáveis pela variação das espécies, dando um colorido todo especial ao desenvolvimento destas; num limite extremo, ela seria suficiente, se confirmada, para reescrever radicalmente “a seleção natural”, teoria hegemônica nas ciências da vida, com suas séries específicas em uma luta renhida de todos contra todos pela sobrevivência, em favor de uma recombinação global contínua, cujo desenlace não pré-existe à relação.

São a qualidade e intensidade do encontro – em outras palavras, as possibilidades de afetação mútua – que vão determinar se a partir dele se produzirá vida ou morte, e em que condições.

— xxx —

Transdução (II)

Informação é aquilo que desequilibra, aporte de energia em um sistema dinâmico. Uma ideia, uma prática, um corte. Não se trata de uma causa em sentido clássico. Ou teremos que reconhecer que existem muitas causas, que causar é um atributo de tudo o que existe e difere. Assim sendo, a individuação vem primeiro: a relação que desorganiza institui tanto sujeito, quanto objeto. Meio e população se confundem. É apenas em relação à relação que podemos agir.

De onde vem a potência que chamamos ‘nossa’? Daquilo que, vindo de fora, nos afeta? Ou da apropriação mais ou menos involuntária que dele fazemos? Algo, talvez o que haja de mais importante, se passa em outro lugar, nem fora nem dentro. O agenciamento no qual tomamos parte não se presta a coordenadas estanques. Cabe-nos ficar atentos aos sinais que nos revela nossa intuição e desenvolver uma ética da alegria baseada no prazer de fazer juntos.

O problema da democracia (o quê fazer?) aponta para a democracia como problema (como fazer?). As soluções para quaisquer eventos são muitas e díspares. E é bom que sejam assim. O desafio é construir um problema que esteja à altura daquilo que vivemos, em comum. Fica combinado assim: problemas são para ser construídos; soluções para ser avaliadas.

Temos nos ocupado do que podem as vidas – e a vida como tal. Melhor seria se nos concentrássemos em disparar acontecimentos. O encontro é o verdadeiro fato social: não uma ontogênese como produção controlada de vida, mas a própria produtividade intensiva e caótica do agenciamento.

Toda criação, toda transformação provém de uma técnica. Mesmo aquilo que é fortuito só faz sentido no contexto de uma máquina social. Experimentação não significa voluntarismo. É preciso construir dispositivos de ação política. E testá-los, e aprimorá-los, e pô-los à prova para que eles continuem funcionando.

Nada, na luta, nos pertence. Nada que nos identifique, que nos aprisione ou nos imobilize. A angústia e a solidão são irmãs da partida. E é preciso partir sempre: abandonar a zona de conforto para sair e chegar a qualquer lugar. A desindividuação, processo necessariamente social, é condição para novas individuações.

O compartilhamento é a melhor arma contra a droga da unanimidade. Vive-se algo, criam-se coisas, e isso torna os espaços ocupados, vivos. Não o contrário. É a realidade da luta – as práticas, a percepção, o cotidiano – que produz o espaço e o tempo da diferença, sem os quais não existem nem a arte nem a política.

Questionar os automatismos sempre. Das técnicas de luta, quando experimentais, devêm magia. E podem ser eficazes para produzir efeitos de mobilização e de organização, ou não. As técnicas são boas para perseguir efeitos e estes dependem mais dos agenciamentos que elas ensejam do que de indivíduos determinados ou de nossa vontade imediata.

Ação simbólica é aquela que faz pensar, obriga a pensar. Quando algo acontece que ninguém sabe como reagir, é por ali que devemos ir. Mas atenção: pensar é ação coletiva. Ninguém decide o significado de um acontecimento sozinho, por decreto. Quando parcelas da população – coletivos, conhecidos, a mídia – começam a reagir de modo sincronizado e previsível, provavelmente é hora de levantar acampamento. É hora de encontrar outros intercessores.

 

Indicações de leitura

Gilles Deleuze e Felix Guattari. Os Mil-Platôs.
Eduardo Viveiros de Castro. Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca.
Isabelle Stengers. Résister à Simondon?
Jorge Luis Borges. Pierre Menard, autor do Quixote. Ficções.
Paulo Leminski. Pré- e posfácio. Satyricon (Petrônio).

 

 

 vocabpol em 22112014 ação, entradas, escuta, fala, metodologia, transformação