// por Raphi Soifer
Matheus 4:19
(recordações de um bagulho-intervenção de Raphi Soifer e Romário Alves
Círio de Nazaré, Belém do Pará, 14 de outubro de 2012)
fui a belém pescar lixo no círio de nazaré. não sabia, quando eu parti, que ia dar nisso, mas a cidade, a procissão e a região amazônica em geral tendem a providenciar esses tipos de revelações espirituais repentinas.
tipo romário: todo mundo em belém é bicha, o que é ótimo, mas nem todo mundo é romário, o que é uma pena. romário alves, ou wellington romário
só podia ser de belém, sua criatividade é suarenta e constante, como se fosse provocada por uma umidade bajubá, ou algo assim. a gente se conheceu e logo resolveu sair no círio de anjos lixeiros. não lembro exatamente como chegamos a essa decisão, mas sei que foi quase imediata.
fui a belém fazer bagunça, como sempre faço em qualquer lugar. eu trouxe uma performance comigo para apresentar na sede do gempac, grupo de mulheres prostitutas do estado do pará – área central. mas foi censurada quando os vizinhos começaram a reclamar que eu não estava usando roupas. uma das prostitutas explicou que a zona não era mais como antigamente.
estou demorando a aprender que bagunçar é o que eu mais tenho para contribuir. segundo os comerciais do omo, se sujar faz bem, e eu tendo a concordar. a vida é suja, e a memória é uma bagunça só, com cada vez mais cidades e imagens e pessoas e palavras jogadas uma sobre a outra no meio de uma poeira sentimental.
e qualquer performance, no fundo, deve ser entendida como uma tentativa de tirar toda a roupa. isso não implica que as performances bem-sucedidas necessariamente contariam com a nudez, mas o corpo trangressor guarda instintivamente a possibilidade de jogar fora tudo que tenta defini-lo).
fui a belém para brincar no lixo que o sagrado sempre produz, não apenas nos seus esforços de se distinguir do profano, mas em tudo o que é materialmente necessário para sua exaltação, mas que não merece veneração por si só. os copos descartáveis de que os milhões de peregrinos bebem ao longo do percurso do círio não contêm água benta, e viram um desperdício qualquer depois de jogados fora.
nosso recolhimento não era um serviço público, nem uma limpeza e muito menos uma revisão do que a cidade tinha acabado de jogar fora. era uma comemoração do lixo, de como esse passado recém-descartado produz as condições para as nossas promessas se dizerem bem realizadas. na nossa peneira (achada na rua alguns dias antes do círio) e na rede de pescar rasgada (doado por pescadores no mercado de açaí), juntamos copos de plástico, figuras de cera, tênis e chinelos abandonados, velas, restos de comida.
chegamos atrasados, por volta das 8 da manhã, mas acompanhamos o círio do primeiro quarteirão da avenida presidente vargas até a basílica da nossa senhora de nazaré, uns 2 quilômetros e tanto depois. romário fumava cigarros durante todo o percurso, e eu usava um cordão de aço com uma pingente de metralhador. algumas pessoas até me perguntaram sobre a mini-arma (é como um crucifixo moderno, eu explicava), mas ninguém parecia se incomodar tanto com os anjos descalços e barbudos, vinte e tantos anos mais velhos que os demais anjinhos do círio. já disse que belém é uma cidade bem bicha, e isso implica saber lidar com a bagunça dos outros: cada um que cumpra as suas promessas da maneira que bem entenda, desde que não atrapalhe as promessas dos outros.
(5 meses depois, no carnaval do rio, meu pingente foi roubado por um policial militar na rua frei caneca, que apontou seu revólver para mim enquanto tirou a corrente do meu pescoço e arrancou o metralhador. depois, devolveu a corrente vazia, e eu desejei a ele um feliz carnaval).
no final, romário e eu tiramos nossos figurinos de anjo e os deixamos, junto com a peneira, a rede e todo o lixo do nosso círio pessoal atrás da basílica, do outro lado da cerca de um gerador, para ser tanto uma oferenda quanto uma lembrancinha.
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