Assembleias

As assembleias populares na luta pela liberdade no Rio de  Janeiro
// Fernando Monteiro

Durante o ano de 2013,  as lutas populares  avançaram  na cidade do Rio de Janeiro. Lutas que ganharam corpo  no movimento  contra o aumento das passagens e que  geraram  um debate mais amplo sobre o sistema de transportes coletivos  do  estado e  dos municípios.  Rapidamente,  a tomada das ruas pelas multidões gerou uma variedade muito maior de pautas, incluindo  o direito  à  moradia,  o questionamento da  estrutura  representativa dos movimentos tradicionais  –  especialmente  com a atuação ambígua do SEPE na  luta dos profissionais da educação  -, a invisibilidade das camadas marginalizadas e periféricas da sociedade,  a opressão racial e de gênero,  os altos gastos públicos com a Copa do Mundo FIFA  etc. As mobilizações massivas  abriram  a caixa de pandora  das  mazelas sociais brasileiras. Os cariocas se olharam no espelho e não gostaram do que viram, muitos abandonaram as ruas sob diversos pretextos que iam desde a suposta violência dos Black Blocs ao risco de cooptação pela direita. Uns bradavam a ameaça de golpe fascista, outros se assustavam e retraiam-se diante do o golpe fascista que já foi dado:  a extrema violência policial  sob os auspícios de governos. As justificativas para o esvaziamento das ruas  foram tão heterogêneas quanto a multidão. Contudo,  este esvaziamento não  significou o fim das mobilizações, pelo contrário, elas  se espalharam pelo  o espaço geográfico da cidade  e mantiveram uma frequência de  Junho a  Dezembro,  sendo renovadas  no começo do  corrente  ano.
A  complexidade de conjuntura das ruas e dos diversos grupos, coletivos e indivíduos que constroem as manifestações e criam resistências através de discursos e ações  supera qualquer  breve  contextualização.  O que apresentamos aqui é  um voo sobre a superfície do que é construído através de organismos políticos de deliberação.  Num primeiro momento, as mobilizações mantiveram um caráter estudantil, seguindo  as tradicionais formas de deliberação que os estudantes  organizados  utilizam  historicamente  nesta cidade. Contudo,  a  centralização das decisões  produzida pelos  métodos típicos dos  partidos políticos e seus braços estudantis  logo produziram dissidências nos fóruns. O que se tem hoje é um desejo profundo de horizontalidade na estrutura de deliberação e construção da luta, portanto,  nada mais  coerente  do que  se viu no Rio: a sequência entre  esvaziamento de fóruns  centralizados e proliferação  de assembleias horizontais. Esse processo foi notado ainda em 2013 com o aparecimento de assembleias populares como a do Largo de São Francisco (desdobramento  imediato  do desapontamento com o fórum de lutas contra o aumento das passagens), a assembleia da câmara (inicialmente ligada à ocupação da câmara dos vereadores, mas que mantém suas atividades mesmo após as  desocupações da câmara  municipal  e da praça em frente) e assembleias regionais ou de bairro como a do Méier, Tijuca, da Fronteira e Zona Oeste.
Além das assembleias nas ruas,  foram experimentadas outras formas de organização e discussão através das redes  sociais digitais, mas, o acesso desigual à internet ainda restringe o alcance e a eficácia dessas iniciativas.  Por isso, as ruas e praças ainda são – e parecem estar longe de deixar de ser – os melhores espaços para construção dos processos de resistência popular, de relações anti e pós-capitalistas e para o  debate do  direito  à  cidade ou qualquer outra questão que clame por práticas  plenamente  democráticas, portanto, libertárias. Em outras palavras,  construímos  a cidade  ao transformamos  sua ocupação em prática cotidiana.  É nas ruas e praças que alinhamos nossos desejos, construímos consensos e trabalhamos os dissensos, e este é  o momento de avançar na expansão e construção de novas assembleias e no fortalecimento das que já foram construídas, promover o LIVRE DIÁLOGO entre elas e criar as pautas da cidade através das contingências urgentes geradas pelas interseções geográficas, afinidades e aproximações metodológicas de cada organismo autônomo.
Através do fortalecimento dessas práticas podemos gerar uma estrutura  eficaz  para a continuidade e o fortalecimento das lutas vivas na cidade do Rio de Janeiro.  É  o desejo de  multiplicidade de métodos, táticas e espaços de deliberação  se somando, mas não se restringindo aos fóruns universitários. Parece bem  evidente  que,  a partir das assembleias regionais e de bairro,  o povo pode exercitar a democracia e  aliar o âmbito político  ao  econômico  nas práticas que levarão as mudanças que desejamos.  Acusarão de utopia a produção de  uma estrutura política  distribuída,  livre e democrática para a gestão de nossa cidade. Desacreditarão  que  com essas  práticas políticas  possam surgir  estruturas econômicas alternativas às vigentes.  Mas a  efetivação  da  emancipação popular e da  liberdade  é possível!
O que se viu até hoje na história foram vanguardas “iluminadas” tentando conduzir  revoluções e  logo se convertendo  nas mais conservadoras elites. O que se vê é a invisibilidade proposital e um cruel apagamento dos registros históricos das práticas de conselhos de trabalho, assembleias regionais e de bairros durante tais processos revolucionários.  Precisamos  de mais  análises  críticas  para entender o papel desses organismos espontâneos e populares que se criam em momentos de efervescência política.  Eles  surgem da necessidade de ruptura com os métodos em vias de serem superados e  com  os espaços que já não mais correspondem às necessidades organizativas. Organismos quase sempre destruídos pelo centralismo das velhas instituições partidárias que almejam controlar as estruturas do Estado, ignorando (ou não) que não será através dos espaços institucionais  capitalistas  que se criará uma ordem social justa e liberta.
Este é um apelo para que todos nós, coletivos e indivíduos, organizações e mentes livres, depositemos mais de nossos esforços na construção dessas estruturas horizontais, para que possibilitemos os encontros entre os corpos que lutam. Deles  poderão surgir  os métodos e estruturas adequadas para as necessidades de qualquer conjuntura. Encontraremos um ou mais caminhos através da prática e  do  exercício cotidiano da micropolítica pulverizada por todos os espaços possíveis.
Saudações Libertárias

 

Texto publicado originalmente em
Coletivo Das Lutas

 vocabpol em 25122014 ação, manifestações

Escuta

// por André Mesquita

Em Rhythmanalysis (1992), Henri Lefebvre situa a figura do “ritmanalista” como alguém atento não apenas à informação, mas dedicado a ouvir o mundo com todos os seus ruídos, as coisas sem significado, os vazios e os silêncios. Primeiro, o ritmanalista mergulha na escuta interna de seu corpo (a respiração, o coração, os músculos e os membros). Depois, percebe os ritmos externos – odores também marcam ritmos. O corpo do ritmanalista, diz Lefebvre, é um metrônomo.

O ritmanalista solicita todos os seus sentidos. Ele baseia sua respiração, a circulação de seu sangue, as batidas de seu coração e a pronúncia de seu discurso como pontos de referência. Sem privilegiar qualquer uma dessas sensações, criadas por ele na percepção dos ritmos em detrimento de outros. Ele pensa com seu corpo, não de forma abstrata, mas na temporalidade vivida. (1)

O ritmanalista não se coloca em posição superior, ou como produtor de uma disciplina especializada. Ao contrário, todas as pessoas produzem seus próprios ritmos integrando o interior e o exterior, chegando ao concreto por meio da experiência. O corpo que dança, o corpo que se movimenta pela rua, o corpo que luta, o corpo que colide com outro corpo. Todos esses corpos criam ritmos, são focos de experiência e de sons: a escuta e a execução de diferentes partituras.

As pessoas deveriam ouvir mais as outras pessoas. Artistas deveriam escutar mais. Artistas falam em “diálogo com um público mais amplo”, mas até que ponto suas respostas já não estão prontas? Artistas falam em colaborar com a comunidade, mas quantas vezes a voz do outro é diminuída ou não considerada? Projetos colaborativos propõem-se a trocar ideias e experiências, a produzir discursos através das diferenças. Um espaço de convívio mútuo não garante um lugar democrático onde os conflitos são apagados – como propõe o modismo de um conceito como “estética relacional”, atrelado ao confinamento do mundo da arte e da cultura empresarial em atividades com a inclusão do “outro social”. Esse tipo de prática domestica situações de encontro para encenar “micro-utopias” falsamente democráticas e exploradas no espaço protegido das instituições. Quando a própria voz da colaboração com a comunidade não é ouvida ou abafada, o “outro” transforma-se em “coadjuvante” e o artista/coletivo passa a valorizar apenas a sua própria agenda de interesses, êxitos e méritos. Sem aumentar a sua capacidade de escuta coletiva, o artista pode assumir um papel paternalista de falar em nome do outro considerado “desprivilegiado”. Ou realizar uma forma de “turismo”, para o qual uma comunidade serve como um lugar que precisa ser “melhorado” por suas ações – o artista/coletivo age como um Robin Hood às avessas. Escutar requer um momento crítico de abertura, de não-ação como aprendizado, produzindo consensos mas também dissonâncias. (2) Ouvidos em tensão. O processo é a soma de diferentes ritmos e pulsações.

Notas

1. LEFEBVRE, Henri. Rhythmanalysis: Space, Time and Everyday Life. New York: Continuum, 2004. p. 21.

2. Ultra-red. Five Protocols for Organized Listening, 2012. Disponível em: <http://www.ultrared.org/uploads/2012-Five_Protocols.pdf>.

 

 

//  (((caos-complexidade-escuta))) *

V1: Queria trazer um pouco pra nós aqui as noções de caos e complexidade. O que é um possível caos das coisas, e o que é uma complexidade que a gente possa construir. Pensando que há uma relação entre caos e complexidade, podemos propor uma complexidade temporal, fragmentária, que funciona como uma imagem protótipa, que abre o contexto de uma situação com a qual queremos lidar, por exemplo. Não quero totalizar a definição da complexidade como sendo complexa por si e impossível de criar uma entrada. Quando eu falo complexidade eu quero me endereçar a uma coisa mais possivelmente material, real, que é no nosso caso aqui um assunto comum, o terreno comum das manifestações no Brasil que se intensificam a partir de Maio/Junho de 2013. A ideia de complexidade poderia servir de um modo se a gente quisesse dar conta da maior quantidade de assuntos e temas e expressões que surgem no contexto das manifestações, é óbvio que a gente não vai (conseguir) fazer isso, a gente não aqui nesse pouco tempo/espaço. Proponho que a gente pense aqui a questão da complexidade como sendo assim um arranjo, um arranjo temporal em que algumas coisas se articulam e que a gente pode visualizar o que é que tá acontecendo a partir de pontos de vista diferentes em um mesmo contexto. Uma maneira de operar que não pretende totalizar o assunto, mas por meio da qual  conseguimos visualizar alguns pontos que identificamos como básicos, e seus contrapontos. Assim podemos, num primeiro momento, trazer alguns pontos que nos parecem importantes abordar no aspecto das manifestações no Brasil como um momento importante de produção estético-política; e num segundo momento partir para uma conversa que coloca em tensão os pontos que foram trazidos, relacionando assuntos, sujeitos, relatos, perspectivas.

Para produzir via construção de uma complexidade a partir de um coletivo temporal, contingente, eu vejo o exercício de trabalho coletivo como sendo um exercício de escuta. A escuta pode ser pensada como uma ferramenta que qualifica os intercâmbios, nos processos coletivos, sociais, comunicativos e etc. Há vários modos de pensar e praticar a escuta, e todos dependem claro da capacidade auditiva e da atenção relacionadas. Um deles que pode ser interessante de trazer aqui é a noção de escuta como sendo uma escuta atenta que permite que …eu… por alguns segundos, …eu… meio que esqueça um pouco das minhas certezas e me deixe permear um pouco por aquilo que está sendo trazido pela outra pessoa. Então a escuta seria em uma instância o exercício de um escuta não preconceituosa, seria uma escuta desmontada de pré-concepções, que aceita o que vem sendo dito, e que claro, mientras tanto analisa, …não que eu vá abraçar imediatamente o que o outro está me dizendo, claro, mas pelo menos eu esteja num estado de latência um pouquinho mais aberto que me deixa ouvir mais do que eu pudesse estar ouvindo.

V2: Mas é possível isso?

V1: É isso que estou dizendo, não quer dizer agente vá se incorporar ao modo de vida do outro, é só escuta. No sentido de que o ouvido tá aberto e de que há uma escuta, uma escuta da diferença. Repensar a escuta pode servir para quebrar a ideia da escuta como algo natural, algo que acontece mesmo que eu não queira, a ideia de que “meu ouvido tá sempre aberto”. Pode servir para incorporar a observação da operação cognitiva da escuta, pensar o processo da análise ou da atenção que vem junto com a escuta. Porque a gente tem filtros, que estão sempre operando quando a gente tá escutando tudo ao redor. E esses filtros são nossa garantia ética também, claro, que provocam distinções naquilo que estamos ouvindo.  Acredito que nossa escuta fica ainda mais “armada” quando a gente está numa situação pública, coletiva, sei lá, numa palestra por exemplo, numa conversa de um determinado assunto, em uma reunião de movimentos com modos de operar e referências diferentes. A gente até usa o termo “policiando” (!!) para pensar em como estamos “policiando discursos”, para descrever essa condição da atenção!

V3: Se antecipando…

V1: Antecipando… o discurso do outro. Que pode ser em vários sentidos, né?

V2: Mas ao mesmo tempo também você está ali com algumas lacunas abertas que você quer preencher. Então eu acho que até quando você descobre um termo, as vezes é porque você tem questões ao redor dele. Imagina, você tá precisando acessar melhor alguma questão mas você não tem um termo, daí você ouve “gentrificação”, ufa!, entrou né! Tipo, preencheu aquilo que você andava ao redor. E você já começa a usar. Vejo que é muito isso assim. E ao mesmo tempo você também rejeita, no sentido de que você pode rejeitar um vocabulário que já é, já não expande mais nada. Tipo tem discursos que já não movem mais coisa alguma e as pessoas persistem nele porque meio que elas se sustentam assim.

V1: É que a subjetividade se constrói muito pelos discursos, né. “Eu sou assim, eu penso assim. Eu me movo assim no mundo…”

V4: Não necessariamente da mesma forma o tempo inteiro…

V1: Não, não. Claro… às vezes a gente percebe uma mudança de posição, e isso é bem interessante. É até uma escuta de si, será?

Com essa coisa da escuta, de escuta da diferença tem mais dois pontos. Um que eu tava trazendo pra gente pensar era essa noção de pontos de vista diferentes. Que na nossa oficina seria a gente pelo menos passear por isso, passear pelas nossas conversas, percebendo o que é que a gente pode aprender. Então antes de pensar em incorporar o discurso do outro, há algo na sua fala e na sua experiência que pode nos ensinar algo, será?… Se bem que aqui a gente tá num processo super curtinho assim, são dois dias de oficina, né. Na oficina da semana passada, que foi de uma semana, foram acontecendo várias coisas interessantes que mostravam que a gente tava um pouco mais permeável um ao outro. e que havia possibilidade de estar pensando algumas possibilidades assim. E nem tanto de um-pra-um, tipo “eu aprendi aquilo com ele/ela pra mim”, mas de criação juntos… Então outro aspecto da escuta, que tem a ver com essa escuta que vai além da escuta como coisa natural e dada, e que podemos seguir conversando é a escuta de elementos não discursivos, que estão além da literalidade do que vem sendo dito. E essa é mais complicada por que ela depende de um misto de atenção e análise mas de colaboração, criação, e ainda… não de julgamento do outro.
* Transcrição de conversa da Oficina na Aldeia Gentil, Abril/2014

 vocabpol em 14122014 ação, entradas, índice, metodologia

Experiência

// por Breno Silva

Uma questão de não saber. Limitações de linguagens. Bocas espumantes. De um visco que engasga e engrossa quanto mais se quer dizer. Transbordamentos. Não se confunde com a interioridade do acúmulo vivido nem tampouco se contenta com as definições em geral. A experiência é avessa à representação. Olhos virados. Apontados entre o fora e o interior num grau de coincidência com o sol escaldante. Olhos fritos. Riscos de aparição. Lampejos neons no escuro forçando as vistas. Intuições vagas. Disposição ao perigo numa travessia perigosa. Aderências elétricas epidérmicas. Já estava ali, mas não se sabia da situação. Coincidia com disposições desenquadradas. Quando se menos espera, abalos. Deslizamentos dos rostos por insurreição das montanhas sobre a domesticação daquelas esculturas modelos em Rushmore. Perder a cabeça. Acontecimentos silenciosos. Ceder sem querer. Uma avalanche em achatamento temporal. Fervilham outros. Alterações em movimento. As insubordinações de outrora assumem tantas formas movediças. Intensidades lançando a garantia do sujeito ao limite de sua exterioridade. Violências elementares. Fora de si, uma coincidência com vários outros, inclusive com aqueles que o dilaceram. Desprendimentos. Radical livre: alter. Em alteração, uma estranha “comunidade” emerge da fervilha. Tentativa frágil de se agarrar na avalanche. A paisagem já era. As ações, as pessoas, seres diversos, objetos, fluxos de pensamentos e desejos, inomináveis, dançam sem coreografia. Num instante fulgurante, a vida nas diferenças em excessos de presentes atualizando sua nudez. Furos à brasa na realidade. Aberrações à vista. Derivam arranjos de sociabilidades improváveis. Escapes para rearranjos políticos obscuros? Dobras entre línguas úmidas. Gostosas aberturas. Para quem experimenta, tais arranjos até fazem algum sentido em expressão poética. Tudo mais simples que essa escrita. Sensações de tufões.  Horror e maravilhamento. Enterrando o sublime. Uma comunicação fraca sibila ao redor. Algo não identificado, porém, risível. Comunicação da experiência. Para quem viu de fora, escutou ou leu depois, aquilo parecia um êxtase inexplicável, algo imperceptível, um escândalo. Um mistério instantâneo. Pregnâncias. Um fio tênue de duração cindindo para outras experiências.

 vocabpol em 11122014 ação, atelier, encontro, entradas, índice

Tarifa Zero

//  Graziela Kunsch

O que a Tarifa Zero, os bancos e as concessionárias de automóveis poderiam ter em comum mas ainda não têm

 

Colaborou Daniel Guimarães

A contribuição que eu havia pensado originalmente para o Vocabulário Político era contar, desde a minha experiência, como vi a expressão “Tarifa Zero” no transporte coletivo aparecer, ser debatida (inclusive negada) e se transformar ao longo dos últimos nove anos. Eu queria contar da emoção que eu e pessoas de luta próximas como Lúcio Gregori (criador do projeto Tarifa Zero nos anos 1990) e Daniel Guimarães (criador do website TarifaZero.org em 2009) sentimos hoje toda vez que uma multidão de rua grita “Tarifa Zero”, porque foi um longo processo até essa expressão ter sido assumida por todos os coletivos do Movimento Passe Livre e, pouco a pouco – com muito trabalho de base em escolas e comunidades, além dos materiais impressos e das manifestações de rua -, ser apropriada por tantas pessoas. Não cheguei a redigir esse texto e, no processo de organização desta publicação, acabei escrevendo e publicando um outro texto relacionado ao tema, objetivando contribuir diretamente em um processo político, mais que em processos estéticos. A Cris perguntou se eu não teria vontade de publicar este texto também aqui no Vocabulário e, inicialmente, achei que não fazia muito sentido. Ao voltar ao texto, lembrei que seu objetivo principal era trazer para o debate público a Tarifa Zero, no momento em que a grande imprensa escolheu ofuscá-la, colaborando no processo de criminalização das lutas por mudanças sociais e espaciais. E o que é este Vocabulário, senão tornar visíveis certos termos e contextualizá-los?

Não sei se o texto que segue irá colaborar em processos estéticos – espero que sim -, mas estou muito contente de contribuir na publicação desde os movimentos políticos.

Grazi

Originalmente publicado no TarifaZero.org, em 26/6/2014

 

Escrevo este texto a partir da experiência da manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre no dia 19 de junho de 2014 em São Paulo e a sua repercussão na imprensa. Esclareço desde já que o texto é assinado por mim individualmente e que não falo em nome de ninguém. Busco apenas contribuir como pessoa que estava presente no ato e que ainda se choca com as distorções desleais feitas por alguns jornalistas dos veículos de imprensa hegemônicos, que estavam igualmente presentes. Farei uma reflexão sobre o que o ataque a agências bancárias e concessionárias de automóveis poderia ter a ver com a luta pela gratuidade no transporte, mas que no ato do dia 19 não teve; além de uma crítica à criminalização dos movimentos sociais. Escolhi me posicionar diante do que considero uma tática equivocada para o nosso momento atual, mas tenho a clareza de que a verdadeira violência é promovida pelo Estado, tanto pela sua polícia como pelas suas políticas públicas distorcidas, que servem mais a interesses privados.

Começo comentando o título dado pelo Movimento Passe Livre ao evento. No lugar do mote “Não vai ter copa”, limitado ao momento específico que estamos vivendo, o MPL propôs “Não vai ter tarifa”, que expressa a luta de mais de nove anos de existência do movimento e dos anos futuros. Eu tendo a não gostar muito desses títulos que operam pela negativa; acho que funciona mais ser propositivo (algo como “Vai ter Tarifa Zero”). Ao filmar o ato eu tinha que fazer um certo esforço para enquadrar a faixa “Não vai ter tarifa” inteira. Se algumas pessoas se posicionassem na frente do “Não”, lia-se “vai ter tarifa”, e talvez esta parte da frase fique impregnada no nosso inconsciente. Ainda assim considerei a escolha do movimento pertinente, pois se a Copa no Brasil em breve irá terminar, outros tantos problemas (incluindo aqueles causados pela FIFA) permanecerão por aqui (1). Além de se solidarizar com quem é contra a FIFA e contra o mau uso do dinheiro público – o “Não vai ter copa” está implícito no “Não vai ter tarifa”, é a origem do novo nome -, o movimento sugere um foco mais específico. E faz todo sentido pautar o transporte coletivo no contexto da Copa, porque a maior parte dos investimentos do governo para a Copa foram, supostamente, em mobilidade urbana. Digo supostamente porque as obras realizadas (ou planejadas, muitas não chegaram a ser construídas ou finalizadas) não necessariamente implicaram em uma maior mobilidade das pessoas pelas cidades (2).

Havia também outro contexto para o acontecimento da última quinta-feira em São Paulo: a comemoração de um ano na revogação do aumento de vinte centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trem, em 19 de junho de 2013, acompanhada pela redução de tarifas no transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras. Vez ou outra vejo pessoas dizendo que as revoltas de junho não tinham objetivos claros ou que não tiveram conquistas concretas, que “não deu em nada”. A redução no preço das tarifas do transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras é uma conquista concreta e tanto, que faz uma enorme diferença na vida de muita gente (3). Apenas é insuficiente, e esta insuficiência foi expressa no subtítulo que o MPL deu ao ato, tanto no cartaz de convocação como no panfleto distribuído: “Agora só faltam 3 reais” (4).

Falta mais que três reais, alguns vão dizer, assim como, no ano passado, disseram que não era por vinte centavos. Mas aqui irei me deter nas reivindicações específicas do Movimento Passe Livre, que é um movimento de transporte. Para o MPL, o transporte é um direito essencial, que tem o potencial de articular espaços urbanos e outros direitos. Só existirá educação pública de verdade – acessível a todas as pessoas – se o transporte também for público de verdade; do mesmo modo que hospitais, parques e espaços culturais gratuitos só serão economicamente acessíveis a todas as pessoas se não houver mais tantas catracas no meio do caminho (as catracas dos ônibus, dos terminais e das estações de trem e metrô) (5). Lutar pela gratuidade no transporte não é pouca coisa e é importante os leitores deste texto terem isto no horizonte. Esta luta não exclui a necessidade de outras tantas lutas por mudanças sociais e transformações urbanas, mas exige foco e adensamento para ser bem feita.

Os objetivos do ato do dia 19 foram publicamente declarados desde o início do ato, durante a leitura coletiva de um manifesto, amplificada na forma de jogral por quase todos os presentes. Entre outras frases, o jogral afirmava que “Se a Copa é dos ricos” – e um jogo começava no Itaquerão naquele exato momento -, “a cidade é nossa!” (6). Estávamos ali pela comemoração de um ano da revolta popular que barrou o aumento nas tarifas; pela readmissão de 42 metroviários injustamente demitidos; e, principalmente, por Tarifa Zero. Digo principalmente porque a maior parte dos cartazes, das faixas e das ações realizadas tinham como foco a gratuidade no transporte coletivo (7).

A primeira ação do dia, completamente ignorada pela imprensa hegemônica, na Praça do Ciclista, foi a coleta de assinaturas para o projeto de lei de Tarifa Zero de iniciativa popular. Para um projeto de lei municipal ser apresentado pelas pessoas comuns (e não por vereadores) são necessários dados e assinaturas de 5% do eleitorado. Em São Paulo este número equivale a aproximadamente 500 mil pessoas – um número bastante alto, sendo que não valem assinaturas virtuais, como acontece nas petições online. O trabalho de conversa e coleta de assinatura na escala um-pra-um vem acontecendo desde 2011, e quem se interessar por conhecer o texto do projeto de lei e em colaborar nesse processo pode acessar a página da campanha (8)

Uma das últimas ações do ato, que desceu toda a Av. Rebouças e ocupou a Marginal Pinheiros, foi a queima de diversas catracas simbólicas, de papelão, seguida da leitura coletiva de um novo manifesto, com um “recado bem claro”, direcionado principalmente aos empresários que lucram com o deslocamento dos paulistanos: “Agora é o povo que vai mandar no transporte” (9).

Após a queima de catracas, os organizadores do ato puseram música para tocar (um carro com aparelhagem de som foi posicionado na via) e um pequeno campo de futebol foi desenhado no asfalto. Os presentes pularam as catracas ainda em chamas, dançaram e jogaram futebol em plena Marginal (os manifestantes são contra a Copa elitista e higienista da FIFA, não contra o futebol). Bandeirinhas juninas e uma grande bandeira com a expressão “Passe Livre” foram penduradas em postes e na ponte Eusébio Matoso.

A beleza de se realizar uma festa em plena Marginal foi ofuscada na imprensa hegemônica pela ação isolada de uns poucos presentes, que haviam quebrado vidraças de agências bancárias ao longo da Av. Rebouças e, ao final do ato, vidraças e automóveis de uma concessionária da Mercedes Benz. Essas ações foram claramente uma espécie de protesto paralelo, ao ponto de militantes do Movimento Passe Livre terem se posicionado de braços dados diante de agências bancárias da Rebouças, buscando dialogar com quem queria quebrar símbolos do capitalismo (no caso, bancos e concessionárias), explicando que o objetivo do ato não era quebrar nada, mas realizar uma festa popular – em contraposição à festa da elite dentro dos estádios caríssimos – por Tarifa Zero.

Esses militantes orientavam as pessoas a seguir para a Marginal e a grande maioria de manifestantes fez côro com eles, gritando para o ato seguir até a Marginal, de acordo com o planejado e publicamente divulgado (com o conhecimento da imprensa e da polícia). Surpreendentemente, uma repórter do jornal O Globo interpretou que “seguir para a Marginal” significava “não vamos quebrar nada na Rebouças, somente na Marginal”. Só posso pensar que se trata de desonestidade ou de um erro grave de interpretação, pois qualquer pessoa presente sabia que seguir até a Marginal significava tão somente não dar atenção para esse protesto paralelo e seguir o curso planejado para a manifestação.

Em nota divulgada no dia 21 de junho (10), o Movimento Passe Livre se recusa a julgar o que estou chamando de protesto paralelo, afirmando que não cabe ao movimento legitimar ou deslegitimar impulsos de indivíduos revoltados, mas deixa claro que essas ações não estavam entre os objetivos do ato organizado. O movimento critica o uso do termo “mascarados” pela imprensa, lembrando que todas as pessoas têm o direito de preservar a sua identidade (a manifestação foi amplamente fotografada e filmada) e se proteger de uma eventual perseguição e criminalização por parte da polícia (o que não é uma remota possibilidade, mas um fato recorrente). Historicamente, o uso de panos para cobrir os rostos tem também outro sentido, muito lindo: os zapatistas cobrem seus rostos com lenços com a intenção de configurarem um só rosto; uma forma de dizer “Agora não sou mais eu, somos nós”.

Nem todas as pessoas que tinham seus rostos cobertos no dia 19 se envolveram em depredações, concentrando seus esforços coletivos (e não seus impulsos individuais) em uma ação que pode ser considerada muito mais radical e inovadora que quebrar coisas: bloquear uma das maiores vias para automóveis da cidade com uma festa. Uma festa pública, com a presença de milhares de pessoas (11).

Quebrar bancos e concessionárias não necessariamente chama a atenção dos governos – a não ser para mobilizar seu lado mais autoritário e mais repressor -, e não gera melhores serviços públicos (estou supondo que estas eram algumas das intenções dos meninos que realizaram essas ações, pois foi o que declararam para a TV Folha) (12). Também não quebra o capitalismo. Alguém poderia argumentar que essas ações possuem potencial força simbólica, mas só teriam força de fato se refletissem uma revolta ou um desejo coletivos, o que não foi o caso do dia 19. O que vimos ali foi um espetáculo repetitivo, construído junto com a imprensa e com a polícia. Havia fotógrafos e cinegrafistas posicionados diante de agências bancárias antes mesmo de a manifestação passar por esses pontos e uma total ausência de policiais – a não ser nas duas extremidades do ato (Praça Mal. Cordeiro de Farias – perto do túnel da Av. Dr. Arnaldo – e Marginal) e, possivelmente, na presença de policiais à paisana ao longo do trajeto.

A polícia alega que o movimento se declarou responsável pela segurança do ato, mas a preocupação do movimento, segundo a mesma nota anteriormente citada, era tão somente que se evitasse uma presença ostensiva da polícia militar em um ato que se propunha a ser uma comemoração, uma festa; pois normalmente a presença da polícia e a atitude de alguns policiais contribui para que ações como essas aconteçam. Isso é parte do espetáculo midiático, que inclusive sempre coloca jovens vestindo moletom e atirando pedras em igualdade de forças com policiais fortemente armados e com seus corpos totalmente protegidos. Outra preocupação expressa pelo movimento na imprensa era que o ato fosse reprimido antes mesmo de começar, como havia acontecido, uma semana antes, no protesto contra a Copa nos arredores do Itaquerão, entre outros protestos recentes violentamente reprimidos. Além disso, quem coordena a polícia é a Secretaria de Segurança Pública/o governo do Estado, não o movimento social. É desonesto a polícia se colocar numa posição passiva, culpabilizando o movimento por sua omissão. Ao que parece, tudo isso foi construído com o objetivo de reavivar o inquérito policial nº 1/2013 do DEIC, que investiga manifestantes e é considerado ilegal pelos advogados e integrantes do movimento, uma vez que não apura crimes, mas persegue e criminaliza pessoas (13).

De todo modo, o que me motivou a escrever este texto foi discorrer um pouco mais sobre a ineficiência de se quebrar agências bancárias e concessionárias como forma de superar o capitalismo e levar a discussão pública para o verdadeiro foco do ato do dia 19. As vidraças, os caixas eletrônicos e os automóveis quebrados já devem ter sido repostos, ou serão repostos muito em breve. Esses espaços provavelmente possuem seguro, de modo que os quebra-quebras sequer implicam em altos prejuízos aos seus donos. Por que será que a imprensa hegemônica escolhe sempre dar ênfase às depredações feitas por bem poucas pessoas (no dia 19 devem ter sido, aproximadamente, 10 entre 2.000 pessoas – 0,5 % dos manifestantes), ao invés de noticiar as ideias que são verdadeiramente perigosas? A proposta de Tarifa Zero do Movimento Passe Livre tem o potencial de atacar o capital de um modo muito mais interessante: a taxação dos mais ricos, aí incluídos os donos de bancos e de concessionárias de automóveis.

A expressão “Tarifa Zero” foi proposta pelo engenheiro e músico Lúcio Gregori no começo dos anos 1990, quando ele foi secretário de Transportes em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, primeira prefeitura do Partido dos Trabalhadores nesta cidade. O projeto de ônibus Tarifa Zero previa um pequeno aumento no IPTU – o imposto progressivo sobre propriedade – como forma de financiamento (14). Por questões políticas o projeto não chegou a ser votado e foi desqualificado pela imprensa, apesar de pesquisas feitas com a população terem demonstrado que uma imensa maioria era favorável à Tarifa Zero, mesmo com o conhecimento de que ela implicaria em um aumento no IPTU.

Quase vinte anos depois a expressão foi recuperada pelo Movimento Passe Livre e, durante as revoltas de junho de 2013, podia ser ouvida nos mais diferentes espaços de São Paulo, dita por pessoas as mais diferentes. Ainda que, nesta cidade, as grandes manifestações de junho tenham sido pela revogação dos vinte centavos de aumento nas tarifas de ônibus, trem e metrô, a luta de longo prazo do movimento – contra a própria existência dessas tarifas – ficou em evidência e se tornou mais popular.

Uma coisa que tanto Lúcio Gregori como o movimento sempre deixaram clara é que a Tarifa Zero não significa “ônibus de graça”. O transporte tem custos, é claro. Gasolina, manutenção, salário dos trabalhadores etc. Assim como é necessário o governo pagar salários de professores e demais funcionários nas escolas públicas e comprar mesas, cadeiras, lousas, giz, e alimentos para as mesmas, entre outras coisas. Mas tudo isso, no caso das escolas, é pago por todos nós, indiretamente, através de impostos. Não existem catracas na entrada das escolas para cobrar os custos da educação diretamente dos alunos, a cada vez que eles usam esse serviço público; e seria um absurdo se isso fosse sequer cogitado.

O problema é que, no Brasil, quem mais paga impostos, se calcularmos o valor dos impostos embutidos em produtos de consumo proporcionalmente à renda do indivíduo, são os mais pobres. As pessoas mais ricas questionam mais o pagamento de impostos que os pobres porque têm mais consciência de quanto pagam, pois normalmente seus impostos são sobre propriedades e vêm na forma de boletos, são visíveis. Os mais pobres não possuem propriedades e pagam impostos invisíveis, que representam boa parte da sua renda, sem ideia de quantos % de impostos estão pagando, ou mesmo que estão pagando (15). É necessária uma inversão na cobrança de impostos; quem tem mais dinheiro precisa pagar mais, proporcionalmente à sua riqueza.

O financiamento do transporte precisa acontecer de maneira indireta, como já acontece nas escolas e nos hospitais públicos, mas através da criação de um fundo específico para o transporte, cuja receita deve vir fundamentalmente da cobrança de impostos progressivos, entre outras possíveis arrecadações. Imposto progressivo é aquele cujo percentual aumenta de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. No caso do IPTU, por exemplo, proprietários de casas pequenas são isentos do pagamento e proprietários de casas médias e grandes pagam um valor proporcional ao tamanho/valor dos imóveis. Desde os primeiros anos de existência do Movimento Passe Livre (não somente em São Paulo, mas em diversas cidades brasileiras), os panfletos sugerem que a arrecadação venha de uma maior cobrança de impostos de proprietários e/ou grandes acionistas de bancos, multinacionais, resorts, shopping centers, mansões e automóveis de luxo (16).

A taxação da riqueza é necessária para haver distribuição de renda e diminuição da desigualdade social. Além disso, é a elite quem mais se beneficia do deslocamento de milhões de trabalhadores diariamente.

No dia 10 de junho, o jornal reproduziu uma notícia do Financial Times que informa que a riqueza privada global, concentrada em 1,1% de toda a população mundial, atingiu o recorde de 152 trilhões de dólares (17). Este número é tão somente o excedente de riqueza de famílias muito ricas. O dinheiro que fica no banco se reproduzindo/se multiplicando, gerando novos excedentes tanto para essas famílias como mais lucros para os bancos. Com esses recursos seria possível atender a uma série de demandas sociais (talvez todas) não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.

Em fevereiro deste ano, o portal G1 divulgou uma notícia informando que o lucro de quatro bancos brasileiros no ano de 2013 somado supera o PIB (Produto Interno Bruto) de 83 países (18). O Banco do Brasil registrou lucro líquido de 15,75 bilhões de reais, o Itaú Unibanco de 15,696 bilhões, o Bradesco de 12 bilhões e o Santander de 5,7 bilhões. Para se ter a dimensão desses valores, todos que somos contra o mau uso do dinheiro público nos estádios “padrão FIFA” estamos criticando o uso de aproximadamente meio bilhão a um bilhão por estádio. Se questionamos quantas escolas poderiam ter sido construídas ou melhoradas com o valor investido em cada estádio, imaginem quantas coisas poderiam ser feitas se esses bancos fossem mais taxados e essa riqueza acumulada socialmente distribuída.

A proposta de financiamento da Tarifa Zero através de uma reforma tributária que implique em um aumento proporcional de impostos dos muito ricos significa que quem tem mais dinheiro irá contribuir com mais, quem tem menos irá contribuir com menos, e quem não tem dinheiro não precisará contribuir com nada. E todos, sem exceção, poderão usar o transporte coletivo, tornado “público” de verdade.

As cidades pelo mundo que adotaram a Tarifa Zero no transporte experimentaram uma drástica redução no uso de automóveis particulares. Na cidade de Hasselt, Bélgica, que por mais de dez anos teve uma política de gratuidade no transporte coletivo, a utilização do transporte público aumentou mais de doze vezes (de 360.000 passageiros o sistema passou a acolher 4.614.844 passageiros) (19). Nos Estados Unidos, algumas cidades adotam a Tarifa Zero em horários específicos, por exemplo durante o almoço, estimulando pessoas que trabalham no mundo corporativo e que usam automóveis como meio de circulação a usar o transporte coletivo para ir almoçar e retornar ao trabalho.

Ainda que os custos de um sistema Tarifa Zero em uma cidade grande como São Paulo sejam altos, exigindo altos investimentos públicos, é preciso se ter em mente que a Tarifa Zero tem o potencial de gerar toda uma economia sistêmica. No caso da saúde pública, por exemplo, os maiores gastos por internação nos hospitais são 1. por problemas respiratórios, advindos da poluição do ar pelo excesso de automóveis particulares em circulação; e 2. acidentes de trânsito, em sua maioria causados por automóveis particulares (20).

A criação de um sistema Tarifa Zero no transporte coletivo não supera o capitalismo, mas pode enfraquecer os paradigmas onde os bancos e as concessionárias de automóveis atuam. E melhorar a vida da maioria da população.

Quebrar vidros para a imprensa fotografar não está construindo a necessária força social para experimentarmos mudanças na nossa vida cotidiana. Quem se lembra da alegria que foi ver as telinhas das catracas dos ônibus, trens e metrôs voltar a marcar “3,00” reais no lugar de “3,20”, após termos barrado esse aumento, nas ruas? As manifestações de junho incluíram depredações, reconheço, mas como expressão de uma revolta coletiva, incontrolável, e, principalmente, como reação à forte repressão policial (apesar de a grande imprensa ter o costume de inverter essa ordem; sempre sugerindo que quem começa a violência são os manifestantes).

No ato do dia 19, as depredações aconteceram à revelia da enorme maioria de manifestantes presentes, sendo consideradas inclusive autoritárias, infantis e machistas por muitos de nós. É importante que se respeite aquilo que é combinado coletivamente, de modo que outras pessoas – como mulheres grávidas, crianças e pessoas idosas – também possam participar da festa (21).

A repressão policial ao final do ato do dia 19 caiu sobre todos os presentes, de modo que a vida de todas essas pessoas estava em risco, exposta a bombas de gás, spray de pimenta (22), balas de borracha, pancadas de cassetetes e prisões arbitrárias. Eu já participei de diversos protestos sem depredações que foram igualmente ou mais reprimidos, reconheço novamente, mas neste dia as pessoas já estavam voltando para casa ou caminhando até o Largo da Batata, onde o ato seria concluído, quando a concessionária da Marginal começou a ser quebrada. Não foi nada legal tantas pessoas terem sido atacadas e perseguidas pela polícia, tornadas reféns da ação de poucos que estavam dispostos a esse enfrentamento (bem poucos mesmo; no registro da TV Folha referenciado anteriormente contei três meninos dentro da concessionária, em meio a diversos jornalistas, e entre quatro e cinco na agência bancária, não dá para saber ao certo). Quebrar vidros é diferente de ferir a integridade física e jurídica de pessoas, mas, neste dia – ainda que eu não aceite isto como justificativa, a polícia precisa deixar de existir desta forma -, o ataque contra vidros praticado pelos meninos foi usado como desculpa para uma violência generalizada contra as pessoas, pela polícia. Não somente contra manifestantes, mas contra qualquer pessoa que tenha dado o azar de estar na região do Largo da Batata naquele momento. Mais gravemente, essas ações isoladas estão agora sendo usadas para o Estado seguir criminalizando as lutas sociais, instalando um estado policial que remete à ditadura militar (23). Tudo isso limita, propositadamente, a capacidade de atuação dos movimentos, que precisam dedicar todos ou quase todos os seus esforços para responder a essa criminalização.

Apropriando-me das palavras de um amigo de amigos em seu mural público de Facebook, eu “não condeno a tática [Black Bloc], mas apenas dizer que não a defendo não é mais suficiente. Precisamos dizer que não concordamos e que isso está atrapalhando a luta social que pretende colocar interesses públicos na frente dos interesses privados que historicamente governam a sociedade. A confusão entre uma tática que busca o apoio popular massivo para as suas ideias e outra que pouco se importa com a opinião pública só fortalece quem contra ambas está” (24).

A Tarifa Zero precisa do apoio popular das massas, pois é as massas que irá beneficiar. O esforço dos militantes do MPL, que há quase uma década fazem discussões sobre mobilidade urbana e direito à cidade em escolas e em comunidades/bairros que possuem diversas carências no transporte coletivo, sempre foi de agregar pessoas e, mais que isso, estimular sua auto-organização. Não podemos reduzir a Tarifa Zero a uma compreensão burocrática da luta. A liberdade de nos movimentarmos pelas cidades sem restrições econômicas é uma ideia nova e radical. Para ser acessível a todas as pessoas, precisa existir como direito e política pública, pois nem todos possuem disposição ou condição física para pular catracas e para sustentar enfrentamentos com a polícia.

É só imaginar muitos ônibus sem catraca circulando para perceber a força dessa ideia. Imaginar que a gente pode entrar e sair por qualquer porta dos ônibus, sem precisar se esmagar até a porta de saída. Que a gente pode traçar qualquer percurso pela cidade, parando para fazer coisas ao longo do caminho. Que pessoas que estão excluídas da cidade por não poderem pagar as tarifas do transporte vão passar a ser incluídas. Que vão passar a chegar a lugares onde atualmente não chegam. A poder frequentar os espaços culturais gratuitos, as escolas e os hospitais. A visitar seus amigos e familiares com maior facilidade. A ficar mais próximas umas das outras, tornando a cidade, ao mesmo tempo, grande e pequena.

Lembro de um dia pós-junho de 2013 em que eu saí do metrô República e, ao caminhar pela praça, olhei para trás e tive a certeza de que um dia as pessoas acharão absurdo imaginar que no passado era necessário pagar para usar o transporte público. Quero muito estar viva para me movimentar nessa cidade Tarifa Zero e para conhecer a geração que vai crescer sem catracas no meio do caminho. Assim como hoje estudantes e suas famílias se beneficiam do meio-passe escolar graças aos esforços de pessoas que lutaram por ele décadas atrás, nós vamos poder dizer que colaboramos nesse processo coletivo e ensinar a luta para nossos filhos. Precisamos de experiências vitoriosas para as pessoas continuarem lutando. Quebrar vidro não cumpre esse papel. Pode cumprir alguns papéis táticos, mas, consistentemente, não muda a vida cotidiana das pessoas.

 

Notas

(1) O que não deslegitima, de modo algum, a importância dos protestos contra a FIFA ou contra as remoções de famílias pobres de suas casas durante todos os anos de preparação da Copa, o valor absurdo de recursos públicos investidos na reforma ou na construção de estádios, a morte de operários da construção civil, o turismo sexual etc. Os que quiserem conhecer melhor todas as motivações das pessoas que foram às ruas contra a FIFA, contra algumas implicações do evento na vida de pessoas pobres e contra determinadas ações dos governos brasileiros, podem ler o conjunto de reportagens realizadas pela Agência Pública, publicadas na seção “Copa pública”: http://apublica.org/category/copa-publica/. Também recomendo a seção “Não tem dinheiro pra Tarifa Zero?”, do portal TarifaZero.org, que compartilha notícias sobre altos investimentos dos governos como crítica ao mau uso de dinheiro público, sugerindo a necessidade de novas prioridades: http://tarifazero.org/category/uncategorized/naotemdinheiro/ . Neste contexto, destaco uma notícia que compartilhamos sobre a Arena da Amazônia, que custou 669,5 milhões de reais e que foi construída para sediar quatro jogos da Copa e nada mais: http://tarifazero.org/2014/03/09/manaus-apos-mortes-e-r-6695-mi-arena-da-amazonia-sera-aberta-neste-domingo/ . Três trabalhadores morreram na construção deste estádio e não existe demanda dos times e das torcidas locais que justifique uma arena de enormes proporções. Alguns usos vêm sendo cogitados para o estádio após a Copa, mas, seja qual for esse uso, certamente não poderia ter sido priorizado no lugar de demandas sociais urgentes que devem existir na cidade de Manaus. Finalmente, recomendo a leitura do número atual da excelente revista Retrato do Brasil (n. 83, junho de 2014), que traz uma matéria sobre que tipo de legado a Arena Corinthians (o “Itaquerão”) deixará para a Zona Leste de São Paulo e uma reportagem sobre os faturamentos da FIFA e de seus parceiros na Copa do Brasil.

(2) Ver “A cereja sem bolo”, reportagem de Thiago Domenici na revista Retrato do Brasil n. 73, agosto de 2013. Apenas saliento que as vaias à Dilma a que Thiago se refere no texto são dos acontecimentos do ano passado, em sua maioria por razões diferentes dos xingamentos feitos por convidados vips na abertura da Copa no Itaquerão. PDF da revista disponível em https://dl.dropboxusercontent.com/u/27221790/Retrato%20do%20Brasil/RB73.1-17.pdf.

(3) No Brasil aproximadamente 37 milhões de pessoas não podem pagar as tarifas do transporte “público”, e a cada vez que essas tarifas aumentam essa exclusão aumenta também. O panfleto distribuído no dia 19/6 pode ser lido em http://tarifazero.org/2014/06/19/nao-vai-ter-tarifa-panfleto-do-mpl-sao-paulo-para-o-ato-de-hoje-dia-19/.

(4) Preço atual das tarifas de ônibus, trem e metrô na cidade de São Paulo.

(5) Ouvir a Canção para o Movimento Passe Livre, de Rodolfo Valente (2006): http://tarifazero.org/2013/06/17/sao-paulo-cancao-para-o-movimento-passe-livre/.

(6) Texto do jogral: “Pessoal / Pessoal / Estamos aqui hoje / Para lutar / Por um transporte público de verdade / Enquanto os governos / Gastam bilhões com a Copa / E com o transporte individual / Somos humilhados todos os dias / Nos ônibus e trens lotados / E quem tenta resistir / É criminalizado / Motoristas, cobradores e metroviários / São demitidos por fazer greve / E quem tenta se manifestar / É reprimido pela Polícia Militar / Mas nós sabemos / Que só com a união de todos os trabalhadores / Os que viajam no transporte / E os que trabalham no transporte / É que derrotaremos / Os empresários e seus governos / Que todos os dias / Nos exploram nas catracas / Por isso hoje / Saímos às ruas para dizer: / Se a copa é dos ricos / A cidade vai ser nossa / Tarifa Zero quando? / Tarifa Zero já!”.

(7) No pequeno vídeo que realizei sobre o ato, intitulado “Túnel Av. Paulista – Dr. Arnaldo”, é possível visualizar as faixas “NÃO VAI TER TARIFA” e “TARIFA ZERO PAGA PELOS RICOS”: https://vimeo.com/98782301.

(9) Texto do segundo jogral: “Pessoal / Pessoal / Marchamos desde a Av. Paulista / Até aqui, a Marginal Pinheiros / Para mostrar que / Quem constrói essa cidade todo dia / Quase não pode usar a cidade / Mostramos que / Não vamos parar de lutar / Até a tarifa acabar / Até não existir mais catracas / Até todos os trabalhadores grevistas / Serem readmitidos / Até os donos do transporte / Pararem de lucrar / Com o nosso sufoco! / Vamos ocupar a Marginal / Vamos ficar na Marginal / E realizar uma grande festa popular / Que deixe bem claro / Que não aceitamos mais essa cidade segregada / Onde passavam carros de luxo / Vão ficar catracas em chamas / Para deixar um recado bem claro / Agora é o povo que vai mandar no transporte!”.

(11) A polícia militar contou 1.300 manifestantes. O movimento estimou que havia muito mais gente, em torno de 3.000 pessoas. A imprensa divulgou, como sempre, o número dado pela PM, com raras exceções. Cito um comentário de Pablo Ortellado após as primeiras notícias divulgadas, publicado em seu mural público de Facebook: “Acho incrível a falta de coerência da imprensa no uso dos dados da polícia militar para estimar manifestantes. O protesto é contra o Estado, o Estado dá número subestimado de manifestantes e a imprensa usa esse número e só esse número sem o menor pudor – sem notar que essa opção por si só já compromete o princípio do equilíbrio jornalístico”.

(12) Logo no início do vídeo editado pela TV Folha um menino diz: “Quebrar tudo. Só assim que o governo ouve, irmão”. Aos 27 segundos outro diz: “Eu quero meu direito, eu quero escola, eu quero hospital. Foda-se a Copa”. O prólogo desta vídeo-reportagem mostra exclusivamente ações de depredação e repressão policial, anunciando a escolha editorial que estará presente ao longo de todo o vídeo, em detrimento de outras possibilidades, mais fiéis ao que se passou na maior parte do tempo da manifestação: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/06/1473409-mpl-tenta-mas-nao-consegue-evitar-vandalismo-em-ato-veja-imagens.shtml .

(13) Segundo a nota “Mais uma vez, não vamos ao DEIC e denunciamos o inquérito ilegal”, de 23/6/2014, o MPL informa que no dia seguinte ao ato, sexta-feira, 20 de junho, “a policía esteve novamente nas casas de militantes, intimando-os pela quinta vez para depor no DEIC e ameaçando seus familiares” (ver http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/23/mais-uma-vez-nao-vamos-ao-deic-e-denunciamos-o-inquerito-ilegal/). Ver também os manifestos publicados anteriormente: “Porque não vamos depor no DEIC”, de 24/1/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/01/24/porque-nao-vamos-depor-no-deic/) e “Pelo trancamento do inquérito nº 1/2013 do DEIC”, de 9/6/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/09/pelo-trancamento-do-inquerito-ilegal-no-12013-do-deic/).

(14) Segundo Lúcio Gregori, em troca de emails comigo, “esses recursos viriam de uma reforma tributária, sendo que 33% dos imóveis, com menos de 60 metros quadrados, eram isentos de IPTU e, portanto, teriam somente ganhos com a gratuidade dos transportes. Outros 44,7% dos imóveis teriam IPTU entre Cr$ 1,00 até Cr$ 1990,00 cruzeiros mensais da época. No caso dos moradores desses 44,7 % imóveis, que teriam o reajuste até Cr$1990,00, como ficaria? A tarifa dos ônibus era de Cr$ 35,00. Numa estimativa conservadora, duas pessoas que morassem num desses imóveis, gastariam Cr$140,00/dia x 22dias = Cr$ 3080,00 somente para deslocamento residência/trabalho/residência em 22 dias úteis. Assim teriam uma vantagem, na pior das hipóteses, de Cr$(3080,00 – 1990,00) = Cr$1090,00 por mês, devido à gratuidade nos transportes. Então, 33% + 44,7% = 77,7% das residências da cidade e, portanto, seus moradores, ganhariam com a gratuidade vinculada à reforma tributária”. Outra informação relevante é que na gestão de Lúcio como secretário de Transportes a frota de ônibus de São Paulo aumentou de 7.600 ônibus para 9.600 ônibus e o projeto de Tarifa Zero previa novo aumento da frota, de mais 50% (mais 4.800 ônibus), para atender a demanda que seria gerada pela gratuidade. Lúcio recomenda a leitura do texto “Procurando entender a Tarifa Zero”, de Chico Whitaker (1990): http://tarifazero.org/2011/08/25/procurando-entender-a-tarifa-zero/.

(15) Recomendo a leitura da entrevista com o economista Marcio Pochmann no jornal Brasil de Fato (20/2/2014). Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/27525.

(16) Os recursos não precisam vir do IPTU como ocorreria no projeto dos anos 1990; os técnicos podem estudar a aplicação de uma “taxa transporte” sobre atividades econômicas que se beneficiam com a mobilidade, incorporando o vale-transporte nessa taxa. Contribuição de Lúcio Gregorio.

(19) Para conhecer experiências de Tarifa Zero pelo mundo, ver a seção “Boas experiências” do portal TarifaZero.org: http://tarifazero.org/experiencias/. Destaque para Tallin (Estônia), com 420 mil habitantes, primeira capital europeia a adotar a gratuidade no transporte para todos seus habitantes.

(20) No artigo “O transporte público gratuito, uma utopia real” (coletânea Cidades rebeldes, São Paulo: Boitempo, 2013), o sociólogo e editor João Alexandre Peschanski discorre sobre outras justificativas de ordem econômica para a Tarifa Zero. Ver também seu texto “Motivos econômicos pelo transporte público gratuito”, no blog da editora Boitempo: http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/10/motivos-economicos-pelo-transporte-publico-gratuito/.

(21) Uma reflexão útil pode ser repensar as táticas usadas pela Ação Global dos Povos (que ficou mais conhecida como “movimento antiglobalização”) no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000: tudo o que seria feito no ato do grupo era decidido em assembleia. O que escapasse disso era tratado como ação de agentes infiltrados. Servia muito bem para evitar sequestros de pauta, mas funciona melhor para dizer que o movimento está disposto a decidir tudo democraticamente. Contribuição de Daniel Guimarães.

(22) O spray de pimenta é proibido em muitos países até mesmo como arma de guerra, mas no Brasil é largamente usado como arma “não letal” contra civis. O gás pode ser letal para pessoas que possuem problemas respiratórios, cardíacos e para mulheres grávidas.

(23) Pouco antes da finalização deste texto, o secretário de Segurança Pública Fernando Grella anunciou que a polícia será acionada para levar 22 militantes do Movimento Passe Livre à força para depor no DEIC. Como resposta, o movimento está convocando o secretário e integrantes de movimentos sociais para debater, publicamente, a criminalização em curso dos movimentos e exigir, novamente, o trancamento do inquérito nº1/2013. Será no dia 3 de julho, às 15h, diante do Tribunal de Justiça (Praça da Sé): https://www.facebook.com/events/663391543743365/.

(24) Pedro Ekman. Ele concluiu seu depoimento citando Sun Tzu em A arte da guerra: “Estratégia sem tática é o caminho mais longo para a vitória. Tática sem estratégia é o estrondo que se escuta antes da derrota”. Como referência histórica e aprofundamento da questão recomendo o texto “O movimento de ação direta britânico dos anos 1990”, de Leo Vinicius (2009), sobre o auge e a criminalização do movimento Reclaim the Streets, no Reino Unido: http://passapalavra.info/2009/08/11797.

 

 vocabpol em 23112014 ação, entradas, índice, manifestações, movimento, narrativa

Transdução

– ou “Guia para orientar-se na multidão”

// por Pedro B. Mendes e Fernanda Kutwak (1)

Que peut un homme pour autant qu’il n’est pas seul?
[O que pode um homem uma vez que ele não está só?]
– Muriel Combes

 

Toda relação é, por princípio, trans

Diálogo

Se relacionar-se é por-se às voltas com o mundo do outro, e sobretudo de outrem – aqueles que não estando presentes se fazem efetivos na ausência, implicados que são na relação contrastiva necessária à nossa própria singularidade – é preciso afirmar algumas condições ao diálogo:

1) a existência de uma mesma língua, longe de nos igualar, faz emergir as diferenças, torna palpáveis as distâncias entre nós que, de outra forma, passariam desapercebidas; cada fonema, palavra ou fórmula linguística apela à nossa experiência de vida, a nossas preferências, nossos hábitos e cegueiras, cuja combinação é tão múltipla quanto o é nossa vida – e as línguas como parte constituinte delas. Sozinhos em nossos mundos-modos somos capazes de perceber as coisas apenas de acordo com nosso próprio ponto de vista, nossa própria singularidade. Se isto não é suficiente para nos colocar em contato com a diferença, não em termos radicais como exige nosso presente, deveria bastar para nos fazer perceber a singularidade de nosso próprio caso. Em outras palavras, esse ponto de vista só pode existir por que há outros que dele se diferenciam. É em contraste com outrem que nossas vidas são possíveis.

2) Todo diálogo é coextensivo à produção de um mapa experimental (complexidade) e instável que deve nos dar, a cada momento, os aclives e declives de uma relação, suas possibilidades, suas entradas e contornos, sem os quais toda conversação caminha inevitavelmente para um fim. Lacan dizia que a boa análise consiste em construir a boa distância em relação a tudo aquilo que nos afeta. O contraste entre as singularidades é um processo dinâmico de diferenciação, em que as distâncias vão aumentando ou diminuindo, em todo caso variando, construindo erraticamente aquilo que, por falta de imaginação, convencionou-se atribuir a uma hipotética “primeira pessoa” pura, do singular ou do plural, pouco importa.

3) O melhor mapa, ou antes, o único mapa possível de nós mesmos é aquele traçado pelos outros. A autoimagem é na verdade um patchwork constituído de imagens outras, imagens que os outros vão pintando de nós nos diversos encontros que entretecemos durante a vida. Aquilo que atribuímos ao “eu” e ao “nós” nada mais é que o recorte precário e cambiante – um espectro – dos vários atravessamentos que somos convocados a viver. (hidrosolidariedade) Portanto, se queremos saber como vamos ou (re)agimos em uma determinada situação, nada melhor que observar a sombra que fazemos nas luminosidades alheias, e vice-versa, a luz que projetamos sobre os corpos dos outros.

4) A palavra portuguesa “nós” dá conta da ambiguidade sutil de nossa condição. O “nós”, primeira pessoa do plural, contém a multiplicidade de relações que se esconde dentro do sujeito que age. Mas mais que conter, os “nós” da rede de pessoas que somos libera a diferença subsumida em uma suposta unidade da ação. Somos diferentes em relação a cada situação. Diferimos todo o tempo de nós mesmos. O jogo daquilo que resta e do que avança a cada encontro é exatamente o que tentamos conter precariamente com as pessoas verbais e o que torna possível que, sendo nós mesmos, sejamos tantos outros a cada momento. Nós: pontos em que convergem vias de comunicação.

5) Da mesma forma, cada combinação que traçamos ou de que fazemos parte tem possibilidades distintas, de acordo com os actantes-ingredientes relacionados e com as variações a que nos expomos e a que somos submetidos. Portanto, sem entrar em questões relacionadas à nossa importância no mundo – muito diminuta, é sempre provável – convém nos atermos às impressões que literalmente deixamos por onde quer que passemos. Nossos ideais são louváveis, nossas utopias parecem perfeitas, mas são nossas pegadas que deixamos por onde passamos. Elas são o rastro concreto de um mundo em construção: são os efeitos de nossas ações (e inações) que permitem avaliar as soluções que damos aos problemas. É em termos de efeitos que convém a tudo i n t e r p r e t a r.

6) Nem falante, nem ouvinte. Nem parte, nem todo. O mais importante em um diálogo é a relação que une e principalmente faz oscilar a posição de sujeito e objeto de acordo com as inflexões do momento. A expressão de uma diferença, um instante de surpresa e a palavra vai como o vento: são os intercessores que nos fazem mudar de rumo – e de forma, de natureza, de intensidade. É graças a eles que nos engajamos em movimentos outros, ora acelerando com o impulso inesperado de uma parceria, ora freando diante de um encontro pouco ou nada promissor; mas sempre oscilando de direção e de sentido ao sabor dos ventos e das correntes. Cada intercessor um encontro possível, cada encontro uma surpresa, cada surpresa uma diferença.

7) Last and maybe least. Um verdadeiro encontro, um diálogo honesto, não tem regras preconcebidas. Apenas duas leis, tão óbvias quanto necessárias, cada uma apontando para uma polaridade e um risco extremos: a primeira diz respeito ao esvaziamento da diferença e à colocação do outro numa posição de subalternidade, em que qualquer surpresa possível é sempre atenuada mediante uma explicação bem ou mal-intencionada – portanto, não apagar, não silenciar, não desqualificar uma fala. A segunda está ligada ao microfascismo que nos habita a todos, e ao qual é preciso aprender a resistir juntos; é sempre tentador suprimir a diferença incômoda, a posição dissonante, numa dinâmica cujo limite são a violência física e o assassinato – logo, não agredir e principalmente não permitir que se agridam as pessoas. A democracia exige esse compromisso básico.

Entrar em diálogo é inevitavelmente se transformar (escuta) e, assim, implica em correr riscos. Se as pessoas não se afetam, pode ser qualquer coisa, menos um diálogo!

— xxx —

Tradução

Na introdução à edição da Brasiliense de Satyricon, de Petrônio, Paulo Leminski aborda o ofício do tradutor-poeta em sua condição trágica: manter uma fidelidade essencial ao jogo estilístico tecido no original e assim perder parte do encanto proporcionado pelo conteúdo do texto; ou perseguir o rigor semântico e abrir mão da riqueza da forma poética. Diante da antinomia apresentada, cara a todas as boas traduções de obras consagradas, Leminski propõe um saída inusitada: se é para correr riscos, que seja com a arte dos equilibristas na corda bamba. Em outras palavras, a opção pelas duas vias e por nenhuma delas em especial – trair a ambas e ser fiel, na medida do impossível, também a ambas. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém. Questão de dignidade, não de fidedignidade.

Equilibrando-se na transcriação do texto, o poeta-tradutor ora segue o caminho trilhado pelo autor, com seus valores de oralidade e naturalidade dos diálogos, ora se afasta dele para se embrenhar pelas veredas da linguagem em um arriscado corpo a corpo de fim imprevisível. Ora ainda abandona toda etiqueta e se permite incorporar, baixar mesmo, num download espiritual, a materialidade do sensível e literalmente percorrer – em pessoa! – o caminho impossível do autor, com o compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo.

Como ocorre com Pierre Menard, autor do Quixote, de Borges. Pierre não é aquele que vai repetir Cervantes, mas alguém que busca viver uma outra vida até o extremo em que sua vida e seus deslocamentos vão assumir uma indiscernibilidade em relação às opções e à história do autor “original”: não se trata de copiar ou mesmo de reescrever a obra-prima da literatura ocidental, mas de se engajar numa relação absoluta com autor e obra; em que o absoluto não corresponde a qualquer totalidade, segundo a qual ainda estaríamos no horizonte da cópia e da imitação – mas ao germe que altera a própria vida que contagia a ponto de tornar as duas indissociáveis, não iguais! Pierre Menard deseja viver ao extremo as condições que levaram Cervantes a criar Quixote para que possa, também ele, dar vida, não a um Quixote, mas ao Quixote.

Em sua busca por criar algo que já existe – o que, nesse sentido, torna sua missão impossível – o desvairado autor se torna ainda outra coisa, pois que passa a seguir os passos (e os pensamentos) do próprio Cervantes. Que Borges tenha feito da história uma ode à identidade não apaga o feito – muito pelo contrário! – de que, em seu cerne, na suposta equivalência entre os dois Quixotes, e entre Pierre Menard e Miguel de Cervantes esteja o devir, que foge – e faz fugir – tanto mais quanto mais se tenta contê-lo. A história narrada por Borges, o fictício, não o escritor, tramada para encerrar duas vidas em uma mesma épica, acaba por mostrar a relação indissociável e imanente que existe entre univocidade do ser e multiplicidade ontológica.
Esse conceito radical de tradução como afetação / contágio faz eco à definição que alguns antropólogos dão de uma simetria das relações entre coletividades distintas: trata-se de comparar, de colocar em relação, bananas e maçãs, humanos e não-humanos sim, por que não? Somos todos diferentes, uns mais outros menos, temos todos desejos e construções divergentes, às vezes mesmo incompatíveis, que se encontram na base da própria vida.

Dialogo & tradução. O que eu falo é verdade, o que você escuta é mentira. Há um lapso entre o que eu digo e o que você escuta. Falo a partir do mundo, o meu mundo, você escuta a partir de suas referências. Um processo de tradução é necessário. De diálogo entre mundos.

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Transdução (I)

Um hospedeiro contém um vírus.

O vírus, por sua vez, carrega o material genético daqueles com quem entra em relação, ou seja, ele também é, de certa forma, um hospedeiro; enquanto tal, o hospedeiro carrega um vírus que, por sua vez, carrega o germe de outra coisa.

Ao investir contra seu alvo, o vírus se apropria [por cópia] de um trecho do código genético deste. Ele replica o código, mas apenas parcialmente e o carrega consigo em suas futuras mutações.

A partir desse momento, de todo momento da vida do vírus, ele se torna a combinação de seu próprio código genético e de outros com os quais entra em relação durante a vida.

Não apenas o vírus se torna uma combinação única de códigos genéticos, algo como uma impressão digital genética e recombinante, por mais “familiar” que seja o ambiente em que circula(m), como as relações de contágio que ele estabelece se tornam também elas singulares.

A relação estabelecida depende do contexto em que corpo infectado e vírus se encontram e sobretudo da relação de força entre as defesas do primeiro e a capacidade de contágio do segundo. O jogo agonístico entre eles nunca é o mesmo e nunca se decide antes do encontro propriamente dito, e ao corpo infectado sempre é possível resistir à infecção.

Enquanto o corpo pode ou não resistir à investida do vírus, que nunca é um, mas uma multidão, a infecção se caracteriza por uma relação de indistinção entre ambos, que passam a se relacionar numa espiral de criação e destruição, de vida e de morte.

Se o corpo se torna perigosamente infectado, isto é, se torna mais e mais como o vírus, a ponto de reproduzi-lo e de se deixar infestar pelo agente patógeno, o vírus se torna outra coisa antes de seguir (ou não) sua trajetória contagiante. De toda forma, o encontro transforma a ambos de modo marcante.

Estima-se que um corpo humano adulto e saudável contenha dez vezes mais micróbios dentro de si que células humanas, todos vivendo em perfeita desarmonia. Não fosse esta relação, simétrica e em desequilíbrio dinâmico, e não teríamos passado da “pré-história”. Da mesma maneira, estima-se que este corpo abrigue exemplares de todos os vírus com os quais entrou em contato durante a vida, constituindo um bioarquivo de dados que lhe servirá de defesa pelo resto da vida e que, em uma situação de fraqueza, pode levar a novas infecções.

No entanto, a relação entre corpo e vírus é tudo menos previsível. A doença, por exemplo, epítome do sofrimento físico e psíquico, é naturalmente compreendida como resultando de um jogo de soma zero que, quando fora de equilíbrio, coloca em risco a saúde dos corpos. Por outro lado, é possível que ela seja apenas um dentre os vários desfechos possíveis que acaba por determinar nossa própria percepção – trágica – deste encontro. E não nos referimos aqui ao fato da doença ou do adoecer, mas à necessária reorganização de sua economia em relação à saúde e à vida.

Outras modalidades de relação que não a doença apenas são vistas cada vez mais como determinantes para a existência e o modo como a vida de corpos e vírus se desenrola em paralelo, na relação.

Cientistas e biólogos avaliam que essa evolução cruzada, não linear e interespecífica, seria uma das principais responsáveis pela variação das espécies, dando um colorido todo especial ao desenvolvimento destas; num limite extremo, ela seria suficiente, se confirmada, para reescrever radicalmente “a seleção natural”, teoria hegemônica nas ciências da vida, com suas séries específicas em uma luta renhida de todos contra todos pela sobrevivência, em favor de uma recombinação global contínua, cujo desenlace não pré-existe à relação.

São a qualidade e intensidade do encontro – em outras palavras, as possibilidades de afetação mútua – que vão determinar se a partir dele se produzirá vida ou morte, e em que condições.

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Transdução (II)

Informação é aquilo que desequilibra, aporte de energia em um sistema dinâmico. Uma ideia, uma prática, um corte. Não se trata de uma causa em sentido clássico. Ou teremos que reconhecer que existem muitas causas, que causar é um atributo de tudo o que existe e difere. Assim sendo, a individuação vem primeiro: a relação que desorganiza institui tanto sujeito, quanto objeto. Meio e população se confundem. É apenas em relação à relação que podemos agir.

De onde vem a potência que chamamos ‘nossa’? Daquilo que, vindo de fora, nos afeta? Ou da apropriação mais ou menos involuntária que dele fazemos? Algo, talvez o que haja de mais importante, se passa em outro lugar, nem fora nem dentro. O agenciamento no qual tomamos parte não se presta a coordenadas estanques. Cabe-nos ficar atentos aos sinais que nos revela nossa intuição e desenvolver uma ética da alegria baseada no prazer de fazer juntos.

O problema da democracia (o quê fazer?) aponta para a democracia como problema (como fazer?). As soluções para quaisquer eventos são muitas e díspares. E é bom que sejam assim. O desafio é construir um problema que esteja à altura daquilo que vivemos, em comum. Fica combinado assim: problemas são para ser construídos; soluções para ser avaliadas.

Temos nos ocupado do que podem as vidas – e a vida como tal. Melhor seria se nos concentrássemos em disparar acontecimentos. O encontro é o verdadeiro fato social: não uma ontogênese como produção controlada de vida, mas a própria produtividade intensiva e caótica do agenciamento.

Toda criação, toda transformação provém de uma técnica. Mesmo aquilo que é fortuito só faz sentido no contexto de uma máquina social. Experimentação não significa voluntarismo. É preciso construir dispositivos de ação política. E testá-los, e aprimorá-los, e pô-los à prova para que eles continuem funcionando.

Nada, na luta, nos pertence. Nada que nos identifique, que nos aprisione ou nos imobilize. A angústia e a solidão são irmãs da partida. E é preciso partir sempre: abandonar a zona de conforto para sair e chegar a qualquer lugar. A desindividuação, processo necessariamente social, é condição para novas individuações.

O compartilhamento é a melhor arma contra a droga da unanimidade. Vive-se algo, criam-se coisas, e isso torna os espaços ocupados, vivos. Não o contrário. É a realidade da luta – as práticas, a percepção, o cotidiano – que produz o espaço e o tempo da diferença, sem os quais não existem nem a arte nem a política.

Questionar os automatismos sempre. Das técnicas de luta, quando experimentais, devêm magia. E podem ser eficazes para produzir efeitos de mobilização e de organização, ou não. As técnicas são boas para perseguir efeitos e estes dependem mais dos agenciamentos que elas ensejam do que de indivíduos determinados ou de nossa vontade imediata.

Ação simbólica é aquela que faz pensar, obriga a pensar. Quando algo acontece que ninguém sabe como reagir, é por ali que devemos ir. Mas atenção: pensar é ação coletiva. Ninguém decide o significado de um acontecimento sozinho, por decreto. Quando parcelas da população – coletivos, conhecidos, a mídia – começam a reagir de modo sincronizado e previsível, provavelmente é hora de levantar acampamento. É hora de encontrar outros intercessores.

 

Indicações de leitura

Gilles Deleuze e Felix Guattari. Os Mil-Platôs.
Eduardo Viveiros de Castro. Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca.
Isabelle Stengers. Résister à Simondon?
Jorge Luis Borges. Pierre Menard, autor do Quixote. Ficções.
Paulo Leminski. Pré- e posfácio. Satyricon (Petrônio).

 

 

 vocabpol em 22112014 ação, entradas, escuta, fala, metodologia, transformação