Escuta

// por André Mesquita

Em Rhythmanalysis (1992), Henri Lefebvre situa a figura do “ritmanalista” como alguém atento não apenas à informação, mas dedicado a ouvir o mundo com todos os seus ruídos, as coisas sem significado, os vazios e os silêncios. Primeiro, o ritmanalista mergulha na escuta interna de seu corpo (a respiração, o coração, os músculos e os membros). Depois, percebe os ritmos externos – odores também marcam ritmos. O corpo do ritmanalista, diz Lefebvre, é um metrônomo.

O ritmanalista solicita todos os seus sentidos. Ele baseia sua respiração, a circulação de seu sangue, as batidas de seu coração e a pronúncia de seu discurso como pontos de referência. Sem privilegiar qualquer uma dessas sensações, criadas por ele na percepção dos ritmos em detrimento de outros. Ele pensa com seu corpo, não de forma abstrata, mas na temporalidade vivida. (1)

O ritmanalista não se coloca em posição superior, ou como produtor de uma disciplina especializada. Ao contrário, todas as pessoas produzem seus próprios ritmos integrando o interior e o exterior, chegando ao concreto por meio da experiência. O corpo que dança, o corpo que se movimenta pela rua, o corpo que luta, o corpo que colide com outro corpo. Todos esses corpos criam ritmos, são focos de experiência e de sons: a escuta e a execução de diferentes partituras.

As pessoas deveriam ouvir mais as outras pessoas. Artistas deveriam escutar mais. Artistas falam em “diálogo com um público mais amplo”, mas até que ponto suas respostas já não estão prontas? Artistas falam em colaborar com a comunidade, mas quantas vezes a voz do outro é diminuída ou não considerada? Projetos colaborativos propõem-se a trocar ideias e experiências, a produzir discursos através das diferenças. Um espaço de convívio mútuo não garante um lugar democrático onde os conflitos são apagados – como propõe o modismo de um conceito como “estética relacional”, atrelado ao confinamento do mundo da arte e da cultura empresarial em atividades com a inclusão do “outro social”. Esse tipo de prática domestica situações de encontro para encenar “micro-utopias” falsamente democráticas e exploradas no espaço protegido das instituições. Quando a própria voz da colaboração com a comunidade não é ouvida ou abafada, o “outro” transforma-se em “coadjuvante” e o artista/coletivo passa a valorizar apenas a sua própria agenda de interesses, êxitos e méritos. Sem aumentar a sua capacidade de escuta coletiva, o artista pode assumir um papel paternalista de falar em nome do outro considerado “desprivilegiado”. Ou realizar uma forma de “turismo”, para o qual uma comunidade serve como um lugar que precisa ser “melhorado” por suas ações – o artista/coletivo age como um Robin Hood às avessas. Escutar requer um momento crítico de abertura, de não-ação como aprendizado, produzindo consensos mas também dissonâncias. (2) Ouvidos em tensão. O processo é a soma de diferentes ritmos e pulsações.

Notas

1. LEFEBVRE, Henri. Rhythmanalysis: Space, Time and Everyday Life. New York: Continuum, 2004. p. 21.

2. Ultra-red. Five Protocols for Organized Listening, 2012. Disponível em: <http://www.ultrared.org/uploads/2012-Five_Protocols.pdf>.

 

 

//  (((caos-complexidade-escuta))) *

V1: Queria trazer um pouco pra nós aqui as noções de caos e complexidade. O que é um possível caos das coisas, e o que é uma complexidade que a gente possa construir. Pensando que há uma relação entre caos e complexidade, podemos propor uma complexidade temporal, fragmentária, que funciona como uma imagem protótipa, que abre o contexto de uma situação com a qual queremos lidar, por exemplo. Não quero totalizar a definição da complexidade como sendo complexa por si e impossível de criar uma entrada. Quando eu falo complexidade eu quero me endereçar a uma coisa mais possivelmente material, real, que é no nosso caso aqui um assunto comum, o terreno comum das manifestações no Brasil que se intensificam a partir de Maio/Junho de 2013. A ideia de complexidade poderia servir de um modo se a gente quisesse dar conta da maior quantidade de assuntos e temas e expressões que surgem no contexto das manifestações, é óbvio que a gente não vai (conseguir) fazer isso, a gente não aqui nesse pouco tempo/espaço. Proponho que a gente pense aqui a questão da complexidade como sendo assim um arranjo, um arranjo temporal em que algumas coisas se articulam e que a gente pode visualizar o que é que tá acontecendo a partir de pontos de vista diferentes em um mesmo contexto. Uma maneira de operar que não pretende totalizar o assunto, mas por meio da qual  conseguimos visualizar alguns pontos que identificamos como básicos, e seus contrapontos. Assim podemos, num primeiro momento, trazer alguns pontos que nos parecem importantes abordar no aspecto das manifestações no Brasil como um momento importante de produção estético-política; e num segundo momento partir para uma conversa que coloca em tensão os pontos que foram trazidos, relacionando assuntos, sujeitos, relatos, perspectivas.

Para produzir via construção de uma complexidade a partir de um coletivo temporal, contingente, eu vejo o exercício de trabalho coletivo como sendo um exercício de escuta. A escuta pode ser pensada como uma ferramenta que qualifica os intercâmbios, nos processos coletivos, sociais, comunicativos e etc. Há vários modos de pensar e praticar a escuta, e todos dependem claro da capacidade auditiva e da atenção relacionadas. Um deles que pode ser interessante de trazer aqui é a noção de escuta como sendo uma escuta atenta que permite que …eu… por alguns segundos, …eu… meio que esqueça um pouco das minhas certezas e me deixe permear um pouco por aquilo que está sendo trazido pela outra pessoa. Então a escuta seria em uma instância o exercício de um escuta não preconceituosa, seria uma escuta desmontada de pré-concepções, que aceita o que vem sendo dito, e que claro, mientras tanto analisa, …não que eu vá abraçar imediatamente o que o outro está me dizendo, claro, mas pelo menos eu esteja num estado de latência um pouquinho mais aberto que me deixa ouvir mais do que eu pudesse estar ouvindo.

V2: Mas é possível isso?

V1: É isso que estou dizendo, não quer dizer agente vá se incorporar ao modo de vida do outro, é só escuta. No sentido de que o ouvido tá aberto e de que há uma escuta, uma escuta da diferença. Repensar a escuta pode servir para quebrar a ideia da escuta como algo natural, algo que acontece mesmo que eu não queira, a ideia de que “meu ouvido tá sempre aberto”. Pode servir para incorporar a observação da operação cognitiva da escuta, pensar o processo da análise ou da atenção que vem junto com a escuta. Porque a gente tem filtros, que estão sempre operando quando a gente tá escutando tudo ao redor. E esses filtros são nossa garantia ética também, claro, que provocam distinções naquilo que estamos ouvindo.  Acredito que nossa escuta fica ainda mais “armada” quando a gente está numa situação pública, coletiva, sei lá, numa palestra por exemplo, numa conversa de um determinado assunto, em uma reunião de movimentos com modos de operar e referências diferentes. A gente até usa o termo “policiando” (!!) para pensar em como estamos “policiando discursos”, para descrever essa condição da atenção!

V3: Se antecipando…

V1: Antecipando… o discurso do outro. Que pode ser em vários sentidos, né?

V2: Mas ao mesmo tempo também você está ali com algumas lacunas abertas que você quer preencher. Então eu acho que até quando você descobre um termo, as vezes é porque você tem questões ao redor dele. Imagina, você tá precisando acessar melhor alguma questão mas você não tem um termo, daí você ouve “gentrificação”, ufa!, entrou né! Tipo, preencheu aquilo que você andava ao redor. E você já começa a usar. Vejo que é muito isso assim. E ao mesmo tempo você também rejeita, no sentido de que você pode rejeitar um vocabulário que já é, já não expande mais nada. Tipo tem discursos que já não movem mais coisa alguma e as pessoas persistem nele porque meio que elas se sustentam assim.

V1: É que a subjetividade se constrói muito pelos discursos, né. “Eu sou assim, eu penso assim. Eu me movo assim no mundo…”

V4: Não necessariamente da mesma forma o tempo inteiro…

V1: Não, não. Claro… às vezes a gente percebe uma mudança de posição, e isso é bem interessante. É até uma escuta de si, será?

Com essa coisa da escuta, de escuta da diferença tem mais dois pontos. Um que eu tava trazendo pra gente pensar era essa noção de pontos de vista diferentes. Que na nossa oficina seria a gente pelo menos passear por isso, passear pelas nossas conversas, percebendo o que é que a gente pode aprender. Então antes de pensar em incorporar o discurso do outro, há algo na sua fala e na sua experiência que pode nos ensinar algo, será?… Se bem que aqui a gente tá num processo super curtinho assim, são dois dias de oficina, né. Na oficina da semana passada, que foi de uma semana, foram acontecendo várias coisas interessantes que mostravam que a gente tava um pouco mais permeável um ao outro. e que havia possibilidade de estar pensando algumas possibilidades assim. E nem tanto de um-pra-um, tipo “eu aprendi aquilo com ele/ela pra mim”, mas de criação juntos… Então outro aspecto da escuta, que tem a ver com essa escuta que vai além da escuta como coisa natural e dada, e que podemos seguir conversando é a escuta de elementos não discursivos, que estão além da literalidade do que vem sendo dito. E essa é mais complicada por que ela depende de um misto de atenção e análise mas de colaboração, criação, e ainda… não de julgamento do outro.
* Transcrição de conversa da Oficina na Aldeia Gentil, Abril/2014

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