Excesso

// por Cristina Ribas

São muitas anotações. São anotações que vão caindo pelas bordas do papel. Dos papéis colados na parede. Das ideias que se repetem, e que só na repetição com conjunções temporais tomam consistência. Aprendem umas com as outras, as ideias, e vão me avisando desse eu constituído entre elas. Processual, incompleto, excessivo. Esse eu constituído entre elas nem é um eu, é um intento de mergulho no excesso, no puro excesso que as concatena, as ideias, os eventos, as anotações. Intento intensivo. Sentido.

Produzimos por excesso. Por um fluxo aberto, ar-atmosférico, que vai elencando e anotando e sobrepondo e repetindo. E diferindo as coisas, o tudo mais, os restos. Vida é coisa em excesso, vida é coisa que só existe por meio de um excesso.

Não excesso como coisa secretada, expelida do aperto de outra coisa, estruturada. Não tanto resto, como em Jean Baudrillard, quando fala de um resto secretado por uma máquina (*). Sobre o excesso, que ele chama de resto, ele diz: “É sobre esse resto que a máquina social se relança e encontra uma nova energia.” Entre o excesso que eu quero falar o resto de Baudrillard pode não haver, portanto, muito desencontro.

Mas e que restos são esses? Perseguidos pela máquina social, produtiva? Na dinâmica que persegue as sobras, as minorias, a pequena gente, a mulher a parir (depois de espremida no saguão do hospital, provavelmente, ela tem que voltar  a trabalhar num curtíssimo espaço de tempo), os restos seriam também aquilo tudo que pode ser novamente quantificado e reformatado na ordem de uma normalidade. Baudrillard de novo: “o resíduo pode ser à dimensão total do real. Quando um sistema absorveu tudo, quando se adicionou tudo, quando não resta nada, a soma toda reverte para o resto e torna-se resto.”  Mas pode ser que hoje já nem haja mais resto, diz ele, “pelo fato de se estar em toda a parte.”

Nesse sentido o resto se torna o próprio excesso. O resto pode então reverter. (Reversibilidade que faz rir, diz ele.) E o excesso, assim como esse outro resto, pode ser que se faça na lógica da produção desejante, de um produzir que não pode passar pelo medir. Da efetuação de um desejo, de um produzir que se faz ele mesmo pelo desejo desmedido. O excesso é então aquela parte sempre acometida de um não, de um escape. De já se foi.

O excesso é assim acometido de outros sim. O excesso é assim autonomização pura da ficção, artificialidade pura, coisa secreta ela mesma (por si própria, para si própria), nem deixa rastros? Natureza pura do movimento, natureza pura de um fazer. Gozo incessante, manutenção do gozo, testosterona, cheiro de gente.

O excesso talvez não tenha estrutura, e tudo e qualquer coisa que se faça seja só coisa expressa pelos excessos. Excessos contudo disponíveis às neuroses, às medidas, às apropriações, fazendo que o mundo seja puro excesso, ao mesmo tempo que seja o mundo puro excesso medido, regulamentado, registrado, cortado, apropriado.

O excesso duvida da determinação que vem de fora, fazendo dela coisa cabisbaixa. Do que fazemos sabe o excesso de uma certa soberania, mas também de uma extrema vulgaridade. O excesso que deriva parece nos cercar. Ou será que somos, na verdade, feitos vulgares do excesso?

Há uma incongruência em arriscar dizer que há excessos improdutivos, visto que só há excessos produtivos, que são eles mesmos a coisa toda a fazer virar a atenção. A sintetização do excesso é nada mais que a natureza do controle, fazendo do controle uma estratégia estúpida que vem para codificar ou trilhar o que está se movimentando. Mas é que para mostrar o excesso, sem que sejamos engolidos por ele, precisamos do fragmento. Me parece que fragmentos produtivos são aqueles que carregam a intensidade do excesso em si, sem começo, e sem fim. Excesso como puro meio.

O excesso é, então, uma espécie de sublime, um sem bordas,
espaçoso, meio em descontrole, ao mesmo tempo pura ficção, e natureza pura

(*) Jean Baudrillard, “O resto”, Em Simulacros e simulação (1981) Lisboa: Antropos

Experiência

// por Breno Silva

Uma questão de não saber. Limitações de linguagens. Bocas espumantes. De um visco que engasga e engrossa quanto mais se quer dizer. Transbordamentos. Não se confunde com a interioridade do acúmulo vivido nem tampouco se contenta com as definições em geral. A experiência é avessa à representação. Olhos virados. Apontados entre o fora e o interior num grau de coincidência com o sol escaldante. Olhos fritos. Riscos de aparição. Lampejos neons no escuro forçando as vistas. Intuições vagas. Disposição ao perigo numa travessia perigosa. Aderências elétricas epidérmicas. Já estava ali, mas não se sabia da situação. Coincidia com disposições desenquadradas. Quando se menos espera, abalos. Deslizamentos dos rostos por insurreição das montanhas sobre a domesticação daquelas esculturas modelos em Rushmore. Perder a cabeça. Acontecimentos silenciosos. Ceder sem querer. Uma avalanche em achatamento temporal. Fervilham outros. Alterações em movimento. As insubordinações de outrora assumem tantas formas movediças. Intensidades lançando a garantia do sujeito ao limite de sua exterioridade. Violências elementares. Fora de si, uma coincidência com vários outros, inclusive com aqueles que o dilaceram. Desprendimentos. Radical livre: alter. Em alteração, uma estranha “comunidade” emerge da fervilha. Tentativa frágil de se agarrar na avalanche. A paisagem já era. As ações, as pessoas, seres diversos, objetos, fluxos de pensamentos e desejos, inomináveis, dançam sem coreografia. Num instante fulgurante, a vida nas diferenças em excessos de presentes atualizando sua nudez. Furos à brasa na realidade. Aberrações à vista. Derivam arranjos de sociabilidades improváveis. Escapes para rearranjos políticos obscuros? Dobras entre línguas úmidas. Gostosas aberturas. Para quem experimenta, tais arranjos até fazem algum sentido em expressão poética. Tudo mais simples que essa escrita. Sensações de tufões.  Horror e maravilhamento. Enterrando o sublime. Uma comunicação fraca sibila ao redor. Algo não identificado, porém, risível. Comunicação da experiência. Para quem viu de fora, escutou ou leu depois, aquilo parecia um êxtase inexplicável, algo imperceptível, um escândalo. Um mistério instantâneo. Pregnâncias. Um fio tênue de duração cindindo para outras experiências.

 vocabpol em 11122014 ação, atelier, encontro, entradas, índice

Manifesto Afetivista

// por Brian Holmes

 

No século XX, a arte foi julgada de acordo com o estado existente do meio. O que importava era o tipo de ruptura que fazia, os elementos formais e inesperados que surgiam, a maneira como eram deslocadas as convenções de gênero ou da tradição. A recompensa final do processo de avaliação foi um novo sentido do que a arte podia ser, um novo campo de possibilidades para a estética. Hoje tudo isto mudou definitivamente.

O pano de fundo no qual a arte agora se apresenta é um estado particular da sociedade. O que uma instalação, uma performance, um conceito ou uma imagem mediada podem fazer é marcar uma mudança possível ou real das leis, costumes, medidas, noções de civilidade ou dispositivos técnicos e organizacionais que definem como devemos nos comportar e como podemos nos relacionar com o outro num determinado momento e lugar. O que procuramos na arte é uma maneira diferente de viver, uma oportunidade nova de coexistência.

E como acontece essa oportunidade? A expressão desata o afeto, e o afeto é o que nos move. A presença, a gestualização e a fala transformam a qualidade do contato entre as pessoas, podendo as afastar e/ou unir, e as técnicas expressivas da arte podem multiplicar essa transformações em mil possibilidades, pelos caminhos da mente e dos sentidos. Um evento artístico não necessita um julgamento objetivo. Você sabe que ele aconteceu quando graças ao eco que produz agregamos algo a mais à nossa existência. O ativismo artístico é um afetivismo, ele expande territórios. Esses territórios são ocupados pela partilha de uma dupla diferença: a divisão do eu privado, onde cada pessoa foi anteriormente colocada, e da ordem social que impõe esse tipo particular de privacidade ou privação.

Quando um território de possibilidades emerge ele muda o mapa social , como uma avalanche, uma inundação ou um vulcão fazem na natureza. A maneira mais fácil da sociedade para proteger a sua forma atual de existência é a negação simples, fingindo que a mudança nunca aconteceu: e isto realmente funciona na paisagem das mentalidades. Um território afetivo desaparece se não for elaborado, construído, modulado, diferenciado e prolongado por novas descobertas e conjunções. Não adianta defender esses territórios, e até mesmo acreditar neles é apenas um simples começo. O que eles precisam urgentemente é serem desenvolvidos, com formas, ritmos, invenções, discursos, práticas, estilos, tecnologias – em suma, com os códigos culturais. Um território emergente é apenas tão bom quanto os códigos que o sustentam.

Cada movimento social, cada mudança na geografia do coração e da revolução no equilíbrio dos sentidos precisa de sua estética, sua gramática, sua ciência e sua legalidade. O que significa que cada novo território tem necessidade de artistas, técnicos, intelectuais, universidades. Porém o problema é que os órgãos especializados existentes são fortalezas que se defendem contra outras fortalezas.

O ativismo tem de enfrentar obstáculos reais: a guerra, a pobreza, opressão racial e de classes, fascismo rasteiro, neoliberalismo venenoso . Assim sendo, o que nós enfrentamos não são apenas os soldados com armas, mas também com o capital cognitivo: a sociedade do conhecimento é uma ordem terrivelmente complexa . O mais impressionante do ponto de vista afetivo é a natureza zumbi desta sociedade, seu retorno ao piloto automático, sua governança cibernética.

Uma Sociedade neoliberal é densamente regulada , fortemente sobrecodificada. Uma vez que os sistemas de controle são feitos por disciplinas com acesso estritamente calibrado para outras disciplinas, a origem de qualquer esforço nos campos do conhecimento tem que ser extradisciplinar. Começa fora da hierarquia de disciplinas e se movimenta através dela transversalmente, ganhando estilo, conteúdo, competência e vigor discursivo ao longo do caminho. Crítica extradisciplinar é o processo pelo qual as idéias afetivamente carregadas – ou artes conceituais – se tornam essenciais para a mudança social. É de vital importância manter a ligação entre a idéia infinitamente comunicável e a performance isoladamente incorporada.

A sociedade mundial é o teatro de arte afetivista, o cenário onde ele aparece e o circuito onde se produz significado. E como podemos definir essa sociedade em termos existenciais? Em primeiro lugar, esta claro que uma sociedade globalizada já existe, com as comunicações globais, redes de transporte, sistemas de ensino aferido, tecnologias padronizadas , instalações de consumo franqueadas, finanças internacionais, direito comercial e moda midiática. Essa camada de experiência é extensa, porém fina; só pode reivindicar parte do mundo vivo(ou real) . Para se envolver com arte afetivista, para criticá-la e recria-la, temos que saber não apenas onde os novos territórios de sensibilidade emergem – em que local , em que geografia histórica – mas também em que escala. A existência na sociedade mundial é experimental, ou se torna estética, como um jogo entre escalas.

Em adição ao global, existe uma escala regional ou continental, baseada na agregação de populações em blocos econômicos. Pode se ver isso claramente na Europa, mas também na América do Sul e do Norte, no Oriente Médio e na rede do Leste Asiático.

Não nos enganemos, já existem afetos nesta escala, e movimentos sociais e novas formas de usar o gesto e a linguagem, e muito mais que por vir no futuro. Depois, há a escala nacional, aparentemente familiar, a escala com os conjuntos mais ricos de instituições e os mais profundos legados históricos, onde os teatros da representação em massa são esmagadoramente estabelecidos e afundados em uma fantasmagórica inércia . Mas a escala nacional no século XXI também está em um estado febril de alerta vermelho contínuo, hotwired em excesso e por vezes até mesmo capaz de ressonância com o radicalmente novo. Depois vem a escala territorial, considerada por muito tempo a mais humana: a escala de mobilidades diárias, a cidade, a paisagem rural, onde estão as dimensões arquetípicas da sensibilidade. Esta é a morada de expressão popular, das artes plásticas tradicionais, do espaço público e da natureza tendo uma igual presença com a humanidade: a escala onde a subjetividade primeiro se expande para encontrar o desconhecido.

E assim, finalmente atingimos a escala da intimidade, da pele , dos batimentos cardíacos e sentimentos compartilhados, a escala que vai de famílias e amantes a pessoas juntas em um canto da rua, em uma sauna, uma sala de estar ou um café. Parece que a intimidade é irremediavelmente sobrecarregada em nosso tempo, sobrecarregada com dados e vigilância e sedução, esmagada com a influência determinante de todas as outras escalas. Porém a intimidade ainda é uma força imprevisível, um espaço de gestação, e portanto, uma fonte de gesto, a mola biológica onde os afetos se nutrem. Só nós podemos atravessar todas as escalas, tornando nos “outro” ao longo do caminho. Da cama dos amantes para o abraço selvagem da multidão ao toque alienígena de redes, pode ser que a intimidade e suas expressões artísticas serão o que surpreenderá o século XXI.

 

 

Este texto foi originalmente traduzido por Luciane Briotto para o site/projeto http://www.cpp.panoramafestival.com/

 

 

 vocabpol em 09102014 cartografia, conversa, encontro, entradas, índice