// por Brian Holmes
No século XX, a arte foi julgada de acordo com o estado existente do meio. O que importava era o tipo de ruptura que fazia, os elementos formais e inesperados que surgiam, a maneira como eram deslocadas as convenções de gênero ou da tradição. A recompensa final do processo de avaliação foi um novo sentido do que a arte podia ser, um novo campo de possibilidades para a estética. Hoje tudo isto mudou definitivamente.
O pano de fundo no qual a arte agora se apresenta é um estado particular da sociedade. O que uma instalação, uma performance, um conceito ou uma imagem mediada podem fazer é marcar uma mudança possível ou real das leis, costumes, medidas, noções de civilidade ou dispositivos técnicos e organizacionais que definem como devemos nos comportar e como podemos nos relacionar com o outro num determinado momento e lugar. O que procuramos na arte é uma maneira diferente de viver, uma oportunidade nova de coexistência.
E como acontece essa oportunidade? A expressão desata o afeto, e o afeto é o que nos move. A presença, a gestualização e a fala transformam a qualidade do contato entre as pessoas, podendo as afastar e/ou unir, e as técnicas expressivas da arte podem multiplicar essa transformações em mil possibilidades, pelos caminhos da mente e dos sentidos. Um evento artístico não necessita um julgamento objetivo. Você sabe que ele aconteceu quando graças ao eco que produz agregamos algo a mais à nossa existência. O ativismo artístico é um afetivismo, ele expande territórios. Esses territórios são ocupados pela partilha de uma dupla diferença: a divisão do eu privado, onde cada pessoa foi anteriormente colocada, e da ordem social que impõe esse tipo particular de privacidade ou privação.
Quando um território de possibilidades emerge ele muda o mapa social , como uma avalanche, uma inundação ou um vulcão fazem na natureza. A maneira mais fácil da sociedade para proteger a sua forma atual de existência é a negação simples, fingindo que a mudança nunca aconteceu: e isto realmente funciona na paisagem das mentalidades. Um território afetivo desaparece se não for elaborado, construído, modulado, diferenciado e prolongado por novas descobertas e conjunções. Não adianta defender esses territórios, e até mesmo acreditar neles é apenas um simples começo. O que eles precisam urgentemente é serem desenvolvidos, com formas, ritmos, invenções, discursos, práticas, estilos, tecnologias – em suma, com os códigos culturais. Um território emergente é apenas tão bom quanto os códigos que o sustentam.
Cada movimento social, cada mudança na geografia do coração e da revolução no equilíbrio dos sentidos precisa de sua estética, sua gramática, sua ciência e sua legalidade. O que significa que cada novo território tem necessidade de artistas, técnicos, intelectuais, universidades. Porém o problema é que os órgãos especializados existentes são fortalezas que se defendem contra outras fortalezas.
O ativismo tem de enfrentar obstáculos reais: a guerra, a pobreza, opressão racial e de classes, fascismo rasteiro, neoliberalismo venenoso . Assim sendo, o que nós enfrentamos não são apenas os soldados com armas, mas também com o capital cognitivo: a sociedade do conhecimento é uma ordem terrivelmente complexa . O mais impressionante do ponto de vista afetivo é a natureza zumbi desta sociedade, seu retorno ao piloto automático, sua governança cibernética.
Uma Sociedade neoliberal é densamente regulada , fortemente sobrecodificada. Uma vez que os sistemas de controle são feitos por disciplinas com acesso estritamente calibrado para outras disciplinas, a origem de qualquer esforço nos campos do conhecimento tem que ser extradisciplinar. Começa fora da hierarquia de disciplinas e se movimenta através dela transversalmente, ganhando estilo, conteúdo, competência e vigor discursivo ao longo do caminho. Crítica extradisciplinar é o processo pelo qual as idéias afetivamente carregadas – ou artes conceituais – se tornam essenciais para a mudança social. É de vital importância manter a ligação entre a idéia infinitamente comunicável e a performance isoladamente incorporada.
A sociedade mundial é o teatro de arte afetivista, o cenário onde ele aparece e o circuito onde se produz significado. E como podemos definir essa sociedade em termos existenciais? Em primeiro lugar, esta claro que uma sociedade globalizada já existe, com as comunicações globais, redes de transporte, sistemas de ensino aferido, tecnologias padronizadas , instalações de consumo franqueadas, finanças internacionais, direito comercial e moda midiática. Essa camada de experiência é extensa, porém fina; só pode reivindicar parte do mundo vivo(ou real) . Para se envolver com arte afetivista, para criticá-la e recria-la, temos que saber não apenas onde os novos territórios de sensibilidade emergem – em que local , em que geografia histórica – mas também em que escala. A existência na sociedade mundial é experimental, ou se torna estética, como um jogo entre escalas.
Em adição ao global, existe uma escala regional ou continental, baseada na agregação de populações em blocos econômicos. Pode se ver isso claramente na Europa, mas também na América do Sul e do Norte, no Oriente Médio e na rede do Leste Asiático.
Não nos enganemos, já existem afetos nesta escala, e movimentos sociais e novas formas de usar o gesto e a linguagem, e muito mais que por vir no futuro. Depois, há a escala nacional, aparentemente familiar, a escala com os conjuntos mais ricos de instituições e os mais profundos legados históricos, onde os teatros da representação em massa são esmagadoramente estabelecidos e afundados em uma fantasmagórica inércia . Mas a escala nacional no século XXI também está em um estado febril de alerta vermelho contínuo, hotwired em excesso e por vezes até mesmo capaz de ressonância com o radicalmente novo. Depois vem a escala territorial, considerada por muito tempo a mais humana: a escala de mobilidades diárias, a cidade, a paisagem rural, onde estão as dimensões arquetípicas da sensibilidade. Esta é a morada de expressão popular, das artes plásticas tradicionais, do espaço público e da natureza tendo uma igual presença com a humanidade: a escala onde a subjetividade primeiro se expande para encontrar o desconhecido.
E assim, finalmente atingimos a escala da intimidade, da pele , dos batimentos cardíacos e sentimentos compartilhados, a escala que vai de famílias e amantes a pessoas juntas em um canto da rua, em uma sauna, uma sala de estar ou um café. Parece que a intimidade é irremediavelmente sobrecarregada em nosso tempo, sobrecarregada com dados e vigilância e sedução, esmagada com a influência determinante de todas as outras escalas. Porém a intimidade ainda é uma força imprevisível, um espaço de gestação, e portanto, uma fonte de gesto, a mola biológica onde os afetos se nutrem. Só nós podemos atravessar todas as escalas, tornando nos “outro” ao longo do caminho. Da cama dos amantes para o abraço selvagem da multidão ao toque alienígena de redes, pode ser que a intimidade e suas expressões artísticas serão o que surpreenderá o século XXI.
Este texto foi originalmente traduzido por Luciane Briotto para o site/projeto http://www.cpp.panoramafestival.com/