Etnoempoderamento

// por Jeferson Andrade

etno-  
(grego  éthnos,  -eos,  grupo  de  pessoas  que  vive  em  conjunto,  povo)
elemento de composição
Exprime  a  noção  de  povo  ou  de  etnia  (ex.:  etnodesenvolvimento).

Empoderar
Significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. (1)

Durante o processo de convivência na residência Capecete, no bairro da glória, onde diversos termos foram colados a prova, num redemoinho de exercício semântico para a criação de um “vocabulário político para processos estéticos”. È claro que em situações como essas nada é simplesmente, do almoço até a ultima palavra pronunciada, nós devoramo-nos uns aos outros numa espécie de fagia coletiva. E como alimentar tem capacidades de empoderar, seja o corpo ou a mente, o que me deixava mais interessado era como empoderar a postura? Quais elementos tornam a existência uma potencialidade?
Uma caminhada inicial no complexo de favelas da Maré me trouxe alguns pontos importantes sobre uma analise das potencialidades. Numa conversa despretensiosa com o Sr. Olympio no centro comunitário do Parque Maré. Entre palavra perdidas e olhares distantes, entendi que a memória senil e fragmentada possui características especificas para a indicação da produção de desejo, o que coloca o Sr. Olympio não somente no lugar da velhice, mas da desmemoria como fronteira. Sentado sobre uma cadeira de rodas, um rosto enrugado, sem alguns dentes, ele me conta sobre muitas vidas em paralelo às minhas perguntas sobre a intervenção militar na Maré. Seu sonhos com viagens longas, a lugares desérticos. Num outro ponto eqüidistante vejo uma placa:

(imagem 1)

A fim de produzir uma metodologia para uma pesquisa sobre as subjetividades em situação de poesia, desenvolvi por meio de rolés pessoais, uma estrutura para experimentação do diário  de campo ampliado, propondo uma análise fragmentada por epifanias da minha desmemória. É importante imaginar o texto a seguir como um percurso, onde coexistem diversos personagens que cruzam os meus caminhos pela cidade, através de um destrinchamento analítico de dados adquiridos nos rolés para evidenciar a proposta de etnoemporamento como equação não linear  de causa e efeito de uma endociência .
Rachaduras e Sabotagens
Deitei na cama estreita, meu quarto é simples, só uma cama e um criado-mudo. Sempre achei interessante conviver com a decadência. No meu quarto existem duas rachaduras, uma bem no centro que já esta se expandindo para mostrar melhor o osso do teto. É meio circular, vai se apoderando como uma mancha. A segunda é fina e sinuosa, serpenteia pelo espaço quase invisível.
Rachaduras são feitas por trepidações, desgaste natural da estrutura. Aparecem na primeira camada como linhas, protuberâncias, como um corpo que envelhece e se cansa. Daí a primeira camada que é só massa e tinta começam a sair, dando lugar ao osso (cimento). Como de costume, a qualquer sinal de decadência, os donos do lugar iniciam uma reforma.
Trepidar significa pequeno abalo, como a terra que está sempre em constante movimento, o que torna possível a existência da poeira, é em seu conteúdo vestígios de um ruir das estruturas. Rachaduras vão aumentando com o tempo, pois acumulam tempo.
No meu quarto as rachaduras vivem, expandem-se. Eu cultivo-as  para que todos possam entender a não-reforma,  a relação às vezes triste do fim reflexivo da estrutura.
(imagem2)
O Fracassado
Eu fracasso todos os dias
Fracasso como amigo
Fracasso como amante
Fracasso militante
Como nação

Eu desejei o melhor que podia haver em mim
Mas ninguém ira chorar pela minha vértebra
Fracassei como ícone.
Fracassei como torcida.
Os meus gritos aqui fracassam.

Outro dia perdi algumas pessoas.
Fracassei com elas.
Seja pelo meu intento, seja pela minha frustração.
É difícil desejar no outro tudo aquilo que dói em você

O fracassado é orgulhoso,
Luta pelo outro fracassado.
Caminha delirante consumindo felicidade na lata.
Bate no outro fracassado, querendo bater em si.
Sabotador natural, sempre auxilia no fracasso.
Para que vencer? Para que trabalho?
No fracasso o avanço esta no que desejo e não no que devo.

O fracasso tem um papel importante a cumprir.
Fracasso no texto que não rima que não encanta.
Fracasso como política de auto-reconhecimento.
No trópicos o fracasso nos une.
(imagem3)
Devir passarinho
A aproximação com os povos ditos índios não pareceu muito difícil, todos estão num momento de unir forças, seja de que lado for. Houve relatos muito fortes sobre a perseguição indígena pelos ruralistas. Há também um esforço político para a conquista da juventude e um chamado para os ancestrais perdidos no mundo urbano. O aprendiz de Pajé Ache, criou um curso, chamado Cosmologia da Floresta, que envolve um reconhecimento simbólico da fogueira como lugar central da discussão política e historia oral. Há muitos rituais com falas e discussão política da terra ancestral, junto ao que Ache chama de beijo do beija-flor, que são pequenas doses de ayáwaskha (1) e em alguns momentos cheirar o rapé para ajudar na limpeza.
As cenas eram incríveis, pois no meio da discussão alguns vomitavam e se sentiam bem com isso, pois se assemelhava a vomitar toda porcaria ideológica ocidental na qual estamos imersos. Ache acredita que só haverá mudança no trato com a população indígena através de trocas interculturais com auxilio da atitude performática para ritualizar a política e torná-la parte de nossa existência.
Agora, de fato, com essas experiências, tenho a idéia mais clara de como pensar a estrada como um trato à terra ancestral, criar com o que temos uma conexão tribalizante. Ritualizar por uma nova política.
(imagem4)
Praças e encruzas
(imagem5)

(2) DG -1
Hoje o dia acordou cinza, fui pego por uma angústia que eu nem mesmo sabia identificar. Mas como não se angustiar pelo vazio que existe entre eu e a vítima. Nunca gostei da noção de vítima ou vitimização, os pretos também têm direito ao erro, à preguiça, à raiva. Digo como preto e suburbano, daqueles que vivem na beira entre o abismo e o Brasil, para aqueles que possam entender que em toda alma de um negro existe um pouco de desterro. O exílio para além dos golpes, sobrevivendo à vertigem colonial de um povo que nunca desembarcou. A deriva negra, tão solitária e triste, sem língua, sem voz, corpo transeunte de uso expropriado, alimenta um sonho ancestral. A condição negra, a condição favelada, negar o outro para negar a sim mesmo. Cordeiros de Nanã, descendente de homens livres, de sorrisos sinceros, um princípio de esperança no deserto.
(imagem)
Banana Mon Amour
Todos são problemas histórico. A questão social deve ser levar em consideração manobras econômicas e sociais, mas racismo parte de um problema de etnocentrismo. O que seria dos povos outros se o ocidente tivesse acolhido a subjetividade como princípio de existência? É uma pergunta que não chega a ser uma utopia, mas um posicionamento crítico para pensar novas formas de lidar com o mundo. O Mundo não tem um problema de evolucionismo, mas sim de imagem. Ninguém estuda de fato Darwinismo, mas se conforta com imagens abstratas de ancestrais primatas, seqüenciados pedagogicamente num linha evolutiva que nunca existiu. Como o equívoco dos Índios serem Indianos e Negros, expõe-se um elo perdido da humanidade branca.
Alicerces de um ponto de vista míope de homens cansados de si mesmos pela descoberta do outro. Alterações de um ego cada vez maior, cada vez mais só. Pensamos num tempo linear, cronometramos nossa vida, fazemos aniversário numa contagem sempre apocalíptica.
A única política vigente para as humanidades de alteridade é uma participação econômica numa cosmologia capitalista de produtos de consumo cada vez mais contaminados pelo cinismo escravocrata de países que lutam por um lugar na economia mundial, transformando os degredados desmemoriados dos trópicos numa fábrica de auto-eliminação. Operações absurdas de planejamentos celulares de campos de extermínio, construção de perímetros não abolidos, venda de uma liberdade de existência falseada pela participação infantilizada, militarização de corpos livres, banana eu como com aveia e mel, muito mel!
(imagem)
“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus.”
(Oswald de Andrade)
Notas
(1)    Fonte http://www.dicionarioinformal.com.br
(2)    DG era um ator e cantor morador do complexo Pavão-Pavãozinho. Ele foi torturado e assassinado por policiais da UPP do Pavão Pavãozinho nos dias em que estávamos reunidos no projeto do Vocabulinário. “DG – 1” dialoga com as camisetas de futebol que foram produzidas pelos diversos movimentos do #NãovaiterCopa.
(3) ayáwaskha: ‘cipó do morto’ ou ‘cipó do espírito’; de aya, ‘morto, defunto, espírito’, e waska, ‘cipó’; também chamada hoasca, daime, iagê ou mariri. Fonte: Wikipedia
 

 

Assembleias

As assembleias populares na luta pela liberdade no Rio de  Janeiro
// Fernando Monteiro

Durante o ano de 2013,  as lutas populares  avançaram  na cidade do Rio de Janeiro. Lutas que ganharam corpo  no movimento  contra o aumento das passagens e que  geraram  um debate mais amplo sobre o sistema de transportes coletivos  do  estado e  dos municípios.  Rapidamente,  a tomada das ruas pelas multidões gerou uma variedade muito maior de pautas, incluindo  o direito  à  moradia,  o questionamento da  estrutura  representativa dos movimentos tradicionais  –  especialmente  com a atuação ambígua do SEPE na  luta dos profissionais da educação  -, a invisibilidade das camadas marginalizadas e periféricas da sociedade,  a opressão racial e de gênero,  os altos gastos públicos com a Copa do Mundo FIFA  etc. As mobilizações massivas  abriram  a caixa de pandora  das  mazelas sociais brasileiras. Os cariocas se olharam no espelho e não gostaram do que viram, muitos abandonaram as ruas sob diversos pretextos que iam desde a suposta violência dos Black Blocs ao risco de cooptação pela direita. Uns bradavam a ameaça de golpe fascista, outros se assustavam e retraiam-se diante do o golpe fascista que já foi dado:  a extrema violência policial  sob os auspícios de governos. As justificativas para o esvaziamento das ruas  foram tão heterogêneas quanto a multidão. Contudo,  este esvaziamento não  significou o fim das mobilizações, pelo contrário, elas  se espalharam pelo  o espaço geográfico da cidade  e mantiveram uma frequência de  Junho a  Dezembro,  sendo renovadas  no começo do  corrente  ano.
A  complexidade de conjuntura das ruas e dos diversos grupos, coletivos e indivíduos que constroem as manifestações e criam resistências através de discursos e ações  supera qualquer  breve  contextualização.  O que apresentamos aqui é  um voo sobre a superfície do que é construído através de organismos políticos de deliberação.  Num primeiro momento, as mobilizações mantiveram um caráter estudantil, seguindo  as tradicionais formas de deliberação que os estudantes  organizados  utilizam  historicamente  nesta cidade. Contudo,  a  centralização das decisões  produzida pelos  métodos típicos dos  partidos políticos e seus braços estudantis  logo produziram dissidências nos fóruns. O que se tem hoje é um desejo profundo de horizontalidade na estrutura de deliberação e construção da luta, portanto,  nada mais  coerente  do que  se viu no Rio: a sequência entre  esvaziamento de fóruns  centralizados e proliferação  de assembleias horizontais. Esse processo foi notado ainda em 2013 com o aparecimento de assembleias populares como a do Largo de São Francisco (desdobramento  imediato  do desapontamento com o fórum de lutas contra o aumento das passagens), a assembleia da câmara (inicialmente ligada à ocupação da câmara dos vereadores, mas que mantém suas atividades mesmo após as  desocupações da câmara  municipal  e da praça em frente) e assembleias regionais ou de bairro como a do Méier, Tijuca, da Fronteira e Zona Oeste.
Além das assembleias nas ruas,  foram experimentadas outras formas de organização e discussão através das redes  sociais digitais, mas, o acesso desigual à internet ainda restringe o alcance e a eficácia dessas iniciativas.  Por isso, as ruas e praças ainda são – e parecem estar longe de deixar de ser – os melhores espaços para construção dos processos de resistência popular, de relações anti e pós-capitalistas e para o  debate do  direito  à  cidade ou qualquer outra questão que clame por práticas  plenamente  democráticas, portanto, libertárias. Em outras palavras,  construímos  a cidade  ao transformamos  sua ocupação em prática cotidiana.  É nas ruas e praças que alinhamos nossos desejos, construímos consensos e trabalhamos os dissensos, e este é  o momento de avançar na expansão e construção de novas assembleias e no fortalecimento das que já foram construídas, promover o LIVRE DIÁLOGO entre elas e criar as pautas da cidade através das contingências urgentes geradas pelas interseções geográficas, afinidades e aproximações metodológicas de cada organismo autônomo.
Através do fortalecimento dessas práticas podemos gerar uma estrutura  eficaz  para a continuidade e o fortalecimento das lutas vivas na cidade do Rio de Janeiro.  É  o desejo de  multiplicidade de métodos, táticas e espaços de deliberação  se somando, mas não se restringindo aos fóruns universitários. Parece bem  evidente  que,  a partir das assembleias regionais e de bairro,  o povo pode exercitar a democracia e  aliar o âmbito político  ao  econômico  nas práticas que levarão as mudanças que desejamos.  Acusarão de utopia a produção de  uma estrutura política  distribuída,  livre e democrática para a gestão de nossa cidade. Desacreditarão  que  com essas  práticas políticas  possam surgir  estruturas econômicas alternativas às vigentes.  Mas a  efetivação  da  emancipação popular e da  liberdade  é possível!
O que se viu até hoje na história foram vanguardas “iluminadas” tentando conduzir  revoluções e  logo se convertendo  nas mais conservadoras elites. O que se vê é a invisibilidade proposital e um cruel apagamento dos registros históricos das práticas de conselhos de trabalho, assembleias regionais e de bairros durante tais processos revolucionários.  Precisamos  de mais  análises  críticas  para entender o papel desses organismos espontâneos e populares que se criam em momentos de efervescência política.  Eles  surgem da necessidade de ruptura com os métodos em vias de serem superados e  com  os espaços que já não mais correspondem às necessidades organizativas. Organismos quase sempre destruídos pelo centralismo das velhas instituições partidárias que almejam controlar as estruturas do Estado, ignorando (ou não) que não será através dos espaços institucionais  capitalistas  que se criará uma ordem social justa e liberta.
Este é um apelo para que todos nós, coletivos e indivíduos, organizações e mentes livres, depositemos mais de nossos esforços na construção dessas estruturas horizontais, para que possibilitemos os encontros entre os corpos que lutam. Deles  poderão surgir  os métodos e estruturas adequadas para as necessidades de qualquer conjuntura. Encontraremos um ou mais caminhos através da prática e  do  exercício cotidiano da micropolítica pulverizada por todos os espaços possíveis.
Saudações Libertárias

 

Texto publicado originalmente em
Coletivo Das Lutas

 vocabpol em 25122014 ação, manifestações

Brasil | brasiu | Brazis

// por Cristina Ribas

Brasil | brasiu | Brazis

Um Brasil? Não, não tem um só. À distância também são muitos. Há camadas de intensidade e de profundidade. Cada um tem um Brasil projetado, cartografia projetiva, e um Brasil radicalizado, conhecido, pé na terra. Tem gente que tem um Brasil urbano, do asfalto do metro a metro. Outros têm um Brasil de interior, de procurar cachoeira, curva e plano inclinado. Tem gente que tem Brasil pra fora, que vive fora dele e que o alimenta como se alimenta passarinho na gaiola. Tem gente que vive fora dele, porém dele nunca saiu. Quem vem de fora e quer chegar no Brazil, esse encontra outro também. Quem escreve Brazil, já diz a que vem. brasiu menor tem também.

Brazil | brasiu | Brasis. Significações em disputa. Um sonho moderno não consumado. Por ninguém. Como querer consumar um projeto moderno, quando na verdade não há consumação que chegue? Quando a consumação é equação, valendo mais como instrumento de mais valia, de incitar a máquina produtivista, de fazê-la espremer a estômagos vazios algo que se toma por Crescimento? … Consumação de algo, que não se consuma, e Poder. Há um cansaço da repetição dessa diretiva. Há uma reclamação pela proliferação de sentidos desse Brasil. Não faz muito que novamente fomos tomados por uns afetos grandiosos e impossíveis de conter: palavra Crescimento. O crescimento do Brasil seria imagem mais poética se não fosse dolorosa.

Quem opera, incólume, os bits das máquinas desenvolvimentistas? E quantos bits. Quantas estatísticas por encima daqueles que recebem seja na perfuração do corpo a bala seja na destruição de seus modos de vida, camadas de concreto armado sobre suas terras? Afetos duros esses de fazer crescer e exportar a torto e a direito mais valia de nós: “Engenheiros, mais engenheiros!”, disse Dilma.

Protesto Indígena em Brasília. Foto:  Mídia Ninja

Protesto Indígena em Brasília. Foto: Mídia Ninja

Todo mundo que menciona – Brasil – , agencia, todo mundo que habita, mais também. Aqueles que o fazem, desde dentro, do brasiu pequeno, desses jeitos de fazer dessa terra, tem segredos. Porque é assim que se faz Brasil | brasiu | Brazis. De maneiras diferentes. O brasiu pequeno escapa pelos discursos ostentatórios e promissores, como se não ouvisse, pela sua preguiça mixta de resistência, o que dizem essas vozes robustas, que anunciam desmedidos roubos, que arrasam desmedida gente.  brasiu no toque das coisas daqui na palma da mão, e entre mãos e batatas de pernas e escápulas, suor e sono sonâmbulos no transporte público, e frita quente o pastel e queima e refresca pela concessão diária dos pequenos prazeres e das pequenas curas. brasiu mamão formosa cresce no fundo do quintal de quem tem casa ou cresce na rachadura do concreto daquela pirambeira no Alemão. brasiu código pequeno de sabor gigantesco, bula de sobrevivência essa sua toda medicina. Camarão seco cruza o país, chega aqui perto, cozido bem cozido entrou no estômago com cheiro de jambu e tudo mais da alquimia do que eu não sabia. cheguei. brasiu inteiro. interno. como acordar as 5 da manhã.

Quando eu era criança cruzamos o país em um ônibus. Foram três ou quatro dias. Minha mãe nos levou para o Maranhão. Rio Grande do Sul—Maranhão. Vixe Maria. Mudança da paisagem, claro, nem posso relatar tudo. Buriticupu. Imperatriz. São Luis do Maranhão. Conheci Maria-do-socorro, a tia avó dos meus primos. Eu olhava pra ela, que era dona de farmácia, ou enfermeira, não sei, e pensava “que nome! Que nome!” Que apropriado era, ainda mais pra mim na minha cabeça de criança. Ela tinha todos os jeitos do cuidar. (infraestrutura) Maria-do-socorro me faz pensar hoje no brasiu das pequenas medicinas, das pequenas curas, dos sabores… num brasiu pequeno e íntimo, que vem pelo gesto de se aproximar, de saber e pela intimidade. Um brasiu hoje confrontado… Um brasiu com menos espaço pra ser antropofágico, e que vem sendo apressado…

Na escala nacional, qual seria nossa Maria-do-socorro? Como será que esse país-cuida-de-si? Parece que nas transições Brazil | brasiu | Brasis se precisa de várias Marias-do-socorro… a todo o tempo. Este vocábulo não é, contudo, mister nem em remédios, nem em análise política. É uma maneira de relatar uma percepção. Na memória do recente, no plano da política do estado, parece ser impossível não refletir o que se tem agora com o que se tinha antes, quando antes o plano do governo sustentava diferencialmente os fluxos do desejo dos movimentos e das singularidades. Na memória afetiva, é como se houvesse um rompimendo do humanismo escala um-pra-um no Lula dos seus começos (dos seus pequenos remédios!), que desapareceu sob as estatísticas Dílmicas grandiloquentes, visto que meio que de repente nos interpela com sua violência feminina de presidenta, não que não soubéssemos de sua inclinação, traindo em parte, para muitos de nós, sua própria história militante…

No governo anterior a esse que já se despede (provável…) muitos se ocuparam temporariamente em sustentar uma tradução de projeto e de escala, com capacidade, com manobra política. Quanto esforço, quanta inviabilidade. Parecia que havia uma certa pedagogia, ou o experimento de potencialidades que dependiam evidentemente de uma contaminação mais fresca entre práticas dos movimentos sociais, seus representantes e os conselhos criados na busca de aplicar metodologias territoriais, porventura radicais, sobre os mecanismos cansados da máquina estatal. O que poderia ser renovado nas linhas da produção, reprodução e mobilização social num projeto talvez inaugural de abertura democrática? Mas algo disso se perdeu, aos poucos, e bastante, e quase tudo.

Ouvi de Célio Turino uma vez que o estado que ele pensava e praticava era um “estado educador”, quando ele ainda estava no Cultura Viva. (E hoje ele faz crowdfunding para publicar seu livro sobre Pontos de Cultura?) O estado educador foi portanto sendo enxugado e desmelhorando numa versão mais efetivista, retirando gente mais do que incluindo nos programas de fomento à cultura pela remodelação ou orientação à economia criativa. Nos últimos anos vivemos, portanto, uma disputa mais dura de usos e significações da terra Brasil-Brazis, colocado entre o superavit da economia (mais precisamente das empresas privadas), e a criação de programas de distribuição de renda, ou o aumento de serviços e assistência por parte do governo federal que são determinantes no crescimento do país a partir da mobilização da economia de bens de consumo, do aumento do poder de compra, do Bolsa família, de dignidade, de casa própria, de acesso a estudo, bolsas de estudo, etc. “Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades.” (Cocco, 2013) A disputa entre dimensões de tamanha distância não é só por valores, mas é por posses, pela manutenção das classes sociais estratificadas por parte daqueles abastados, ou pela subida ou atravessamento delas, como têm desejado alguns fluxos do governo… Por tudo isso somos BRICs lá fora, de forma glamurosa mas, e aqui dentro? Ao passo que há uma inclusão na economia (a retirada da extrema pobreza) há ao mesmo tempo um crescer em bloco, ou seja, aquele abastado também está crescendo numa equação que afeta por demais o brasiu menor. É perceptível então que afeto/efeito desenvolvimentista se mantém por meio de um tônus que faz adoecer gente e mais gente de afetos moles, afetos frágeis. Pobres da periferia, corpos índios em suas casas, camponeses nas suas nesgas(*), modos de vida, nas suas matas. Nessa cena confusa entre a floresta e a barragem, o grande verde-amarelo que é vendido é um Brazil colonizado por si mesmo, pequeno império regional.

Agricultura familiar e de pequenos produtores corresponde à cerca de 70% da produção de alimentos no Brasil. (dados do Ipea)

Brazis. Tanta gente, tanta gente. Se mistura e se multiplica com capacidade de proliferação incontrolável. A escrita antropofágica de Giuseppe Cocco em “Mundobraz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil” (2009) marca uma nova maneira de pensar o Brasil. Brasil arrebatante, intensivo, recuperado nas suas forças antropológicas e, claro, antropofágicas. É a partir de uma ética da potência dos pobres, de linhagem negro-negriana (de Antonio Negri) que ele vai traçar a análise desses Brasis que sacodem a relação significação/valoração no modo produtivo do capitalismo contemporâneo e colocam a criação como valor. A proliferação de modos de vida nesses Brasis seria não um arquipélago de multiculturalismos como se pensa nos discursos da globalização, mas uma hibridação, miscigenações, ou seja, mundialismos. Capacidade de criação do mundo, seguindo o pensamento de Jean Luc Nancy. Na perspectiva do trabalho, isso significa uma capacidade inventiva das formas de trabalhar, nas variações da cooperação social e da produção de renda. O Brasil é para Cocco um híbrido complexo. E na luta política a radicalização da democracia é o grande desafio donde surge uma construção imanente, a sociedade como constituinte, como processo. Um nervosssssso*

O Brazil desenvolvimentista por sua vez, na minha parca percepção, convoca a entrar numa linha de produção que é mais ainda da ordem de uma auto-exploração (assim como do território), que cobra uma espécie de fidelidade, o comprometimento com aquele Crescimento. O que não parece estar em discussão, contudo é o modelo de desenvolvimento, um modelo que nos leva para a mesma falência ambiental e social que já vimos em tantos outros países desenvolvidos. O Brasil é formado, evidentemente,  por todas as variações possíveis de forma de produtividade e lucro, o que lhe dá essa característica plural e complexa. E a precariedade que marca o trabalho na contemporaneidade não é uma característica apenas do Brasil ou dos países menos desenvolvidos. O ideal do emprego não seria, portanto, salvaguardar de um perigo, visto que a precarização se acentua mais ainda com o novo modelo de acumulação. O novo modelo, o capitalismo financeiro (ou financeirista), desloca o lucro da produtividade de bens propriamente ditos e acontece por meio do aumento da circulação, seja de informação, seja de saberes, de funções. Ou seja, há mais lucro quanto mais há de circulação da informação, e do valor que um produto agencia, por exemplo – imagem da publicidade ela mesma no mundo digital. Jean Baudrillard chama isso de “fim da referencialidade”. Franco (Bifo) Berardi fala em uma “autonomização do dinheiro”, que passa a circular por si, separado também da força-trabalho do trabalhador. O fim da referencialidade é também a des-papelização do dinheiro, que se soma à essa des-fisicalização do dinheiro relacionado tanto à força-trabalho como ao produto ele mesmo. Encurtando uma boa parte da história, o “crescimento econômico” hoje em dia é baseado também em estatísticas de aumento de poder de compra, ou capacidade de aquisição de crédito (dinheiro des-papelizado), e portanto, de endividamento. Não é à toa que para Maurizio Lazzarato na atualidade o homem e a mulher se tornam sujeitos “endividados”, ou seja, por mais que o lucro na dimensão mais abstrata do capital esteja desrefencializado, a dívida sempre será paga na medida do trabalho do corpo.

A chamada que faz o Estado para uma pactuação com o aumento da auto-exploração de cada um de nós sem uma radicalização da democracia, desenha um mapa total do território que passa por cima das diferenças que são constitutivas dos povos brasileiros. O enunciado do Crescimento pelo Poder do Estado tenta convocar uma simbiose, e de alguma maneira induzir à força, pela força da repressão. E não só aqui, o território Brasil-Brazil, na promessa do Crescimento que pode levar junto de si outros países latinos ou países do Sul mundial, se estende para Bolívia, Venezuela, Cuba, Argentina. Engole a África, velha mãe, e lhe provê recursos, tecnologia, mão de obra – caminhos de mão dupla da criação e da inclusão em uma economia.

Esse Brazil que reproduz dentro de suas tramas colonialismos cujas linhas de poder nunca sumiram, que os convoca desde a esquerda como a direita, de repente recebe um levante. (manifestações) Susto nos discursos do poder, susto nos discursos arraigados de que há um povo pacífico, que tudo assimila e que a tudo se adapta, que tudo digere – e até mesmo seus 5,2 litros individuais de agrotóxico por ano. 2013 um ano que marca um rompimento. O rompimento que diz um basta, que escancara a rebelião da periferia e que reclama no asfalto seus corpos sumidos na favela. Cadê o Amarildo?  ((Anti herói anônimo)) Enquanto insurge um poder de ruas e de redes, os colonialismos, variando-se e confundindo-se em fascismos, militarismos e diabo a quatro se afirmam com mais força, instituindo um momento em que a violência passa a escancarar que esse é o último recurso do Poder. Repressão. Brasis em conflito, não um Brasil homogêneo, ele mesmo contra o Estado. Mas uma multiplicação, uma multifacetação da potência-criação-vida (potência concisa da vida cotidiana, assim pode ser tomada, como na palavra biopolítica), insurgindo e diferindo, debatendo suas significações, enfrentando de frente e de baixo as linhas visíveis e invisíveis de Crescimento, Poder e Repressão.

Pinheirinho, ninguém nunca viu. Saíram de foices, facões, capacetes, e barricada inventada, galão de óleo. Fogo. Potência rizomática pura, transversal, integração doutra ordem.

Rafael Braga Vieira condenado a 4 anos e 8 meses de prisão, sem crime qualquer, derivava pela rua, passou pela manifestação de 20 de Junho de 2013, ‘portava’ uma garrafa de pinho-sol, trabalhava com limpeza, quando foi preso.

Nos últimos anos o Brasil se transforma paulatinamente em um grande balcão de negócios, tornando-se uma espécie de teatro mambembe de mega eventos, Copa do Mundo, Olimpíadas e grandes outras vendas e espetáculos que deixam mais explícita a incongruência social da diretiva economicista. Brazil. Negócios de brasileiros com brazileiros, negócios de brasileiros com estrangeiros, negócios de extrangeiros com estrangeiros. O que sigifica então ser brasileiro por direito diante de uma semiotização máxima como tal, diante de um tipo de engajamento generalizante, macropolítico do tipo que o Crescimento e os megaeventos formalizam? Sendo o Brasil ele mesmo uma coisa trans, #só tem bicha nessa cidade!, transnational, e não dizente apenas dos processos internos do Brasil-no-meu-quintal, a que servem os discursos de Brasil? De uma Brasilianização? De brazilianismos? De a certain braziliannnessss? De Brasis? Esse é um tema que Cocco trata com profundidade em parte de Mundobraz, livro cuja extensão e complexidade trago apenas drops. Cocco recorta esse trecho de Paulo Arantes em “A fratura brasileira do mundo. Visões do laboratório brasileiro  de mundialização” (2001):

“Ocorre que a tal ‘brasilianização’ do mundo (…) indica justamente a contaminação da polarização civilizada em andamento do núcleo orgânico do sistema pelo comportamento selvagem dos novos bárbaros das suas periferias internas, que se alastram propagando a incivilidade dos subdesenvolvidos, de sorte que a grande fratura passa a ser vista também como a que separa os que são capazes e os que não são capazes de policiar suas próprias pulsões. (…)”

O Brazil portanto não é só aqui, expresso no território geográfico mensurável. O Brazil se faz lá fora, também nos foras desse território. Desejo olhar, contudo, mais para esse brasiu menor, insurgente, esse da ordem dos bandos e dos bárbaros, que encanta pela capacidade de quebrar as representações totalizantes de um Brasil-estado, de sucumbir àquela semiotização máxima – Brazil=potência. São partes dele que se movem e desafiam as determinações da polarização, e bem por isso não é à toa que o que caracteriza essa brasilianização é a proliferação de modos produtivos, embrenhados de invenção, jeitinho, gambiarrice… sobrevivência. (hidrosolidariedade + etnoempoderamento)

O Brasil-Brazil como coisa vendável é uma malha flexível, serve a tantos usos quantos modos de vida habitam esse território. Por isso o Brasil nas suas variações enfrenta um conflito de representações, visto que aquilo que define esse território são os modos de vida e seus movimentos desgarrados, suas insurgências contra o poder repressivo, inflexões Brazis-brasiu. O brasiu de corpos vem sendo maltratado nas segregações do poder, julgado e excluído da sociedade de direitos, criminalizado tanto pela esquerda no poder e como pela direita no poder,  pela criação de proibições, pelo achatamento da potência criativa que insurge nos protestos. O brasiu cabe dentro do Brazil (**), mas esse maior não cabe dentro do menor. Nos códigos de desenvolvimento financeirista, naquilo que tem direcionado a economia, se desvela que as linhas de sub // desenvolvimento não é que sejam incapazes de serem semiotizadas no progresso, no crescimento, na competitividade, … o Brazil mesmo é que não quer aceitar tanta diferença e portanto opera expulsando a rodo gente de centros urbanos, por exemplo, enquanto que políticas urbanas de planejamento mais cuidadosas poderiam ser implementadas; e o que falar da dizimação de muitos e muitos grupos de índios, expulsos de suas terras, … Sobra um brasiu menor onde só há resistência, um brasiu de pobrezas que são o oposto daquela pobreza descrita logo nacional: “País rico é um pais sem pobreza”.

O brasiu das diferenças, das aldeias de índios urbanos que segundo alguns não parecem índios, ou que se tornaram índios, ou de rolezinhos de jovens negros de periferia nos shopping centers só acirra mais a crise da representação do Brasil, que é também a crise da representação da política, dos modelos da política. Na entrevista “Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial nas metrópoles”, Giuseppe Cocco analisa o ciclo de manifestações no Brasil a partir de junho de 2013 como sendo em parte uma consequência positiva dos 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, isso não aconteceu porque o governo tenha sido de “esquerda” ou socialista, mas porque “tenha se deixado atravessar – sem querer – por ume série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.” Na (( conspiração )) de que algo pudesse estar sendo implementado pelo privilégio de estar no poder (o socialismo?), Cocco avalia que o que o poder pode fazer, contudo é “apenas ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.” Contudo essa não parece ter sido a sensibilidade expressa pelo governo Dilma nos últimos meses, visto que, por exemplo, o modelo repressor das manifestações públicas primeiramente adotado para a Copa das Confederações em 2013 se extendeu não apenas evidentemente para o megaevento Copa do Mundo (sendo parte dela a Lei Geral da Copa) mas também para as favelas elas mesmas, como no caso da Maré, no Rio de Janeiro, onde se acopla com o curso de ‘pacificações’ ordenado pelo Governo do Estado. Ou seja, o megaevento é igualmente um aparelhamento militar do país, ele sela a compra e a implementação de políticas de ‘segurança pública’ que atuam, ao contrário, na repressão das periferias.

O posicionamento do governo diante das manifestações, a criminalização dos movimentos organizados, a prisão preventiva por “crimes que poderiam ser cometidos”, o julgamento de inocentes que portavam ‘artefatos’, assim como o extermínio incessante de jovens negros de periferia, crianças e velhos, reforça uma política de controle social que vem instaurando sensações e dúvidas sobre que tipo de poder, na verdade, ocupa o Planalto Central. As conspirações de que estamos ou continuamos em um regime de ditadura foi uma constante na passagem 2013-2014, ao passo que muitos movimentos de favela e contra o extermínio de jovens negros nunca deixou de assinalar “a ditadura (na favela) nunca acabou.” Essa espécie de zum zum zum e medo fez proliferar uma série de textos, dentre eles o que destaco de Bruno Cava, “A ditadura perdeu pero no mucho”, em que ele analisa como a ditadura na atualidade está constrangida, acuada, pela mobilização social.

“Não é que, com a redemocratização pós-1985, vivamos uma aparência de democracia encobrindo a perseverança da ditadura. Mas, sim, que continuamos a viver a própria ditadura, agora entranhada na democracia representativa, uma ditadura molecularizada, convertida em princípio interno de reprodução das relações sociais desiguais, nos mais diferentes níveis (renda, origem, racial, gênero, sexualidade), por dentro da democracia representativa.”

Cava afirma – junto com os movimentos – que “é preciso derrotar a ditadura sempre.” Mas esse derrotar a ditadura dos movimentos não é a mesma perpetração da “paz” da maneira como ela tem sido impressa pelo estado, no Rio de Janeiro no caso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), chamada pelos movimentos de Unidade de Porrada em Pobre. Dilma convidou os presentes em um discurso no começo de 2014 no Fórum de Davos na Suíça para a “Copa das Copas”, que seria para ela um momento de afirmar a paz, o papel principal do futebol… Mas bem, se a paz era o que se via dentro dos estádios – frequentado por uma maioria branca e abastada -, não era o que se via fora deles…

Há quem diga agora que a Copa de fato não aconteceu –  ainda mais pela literal derrota da seleção do Brasil 0 x 7 Alemanha. Já gritavam os movimentos antes dela #Nãovaitercopa!  Seria essa derrota um feito de (( conspiração )) ? Ou de corrupção? Ou uma grande mandinga dos movimentos sociais para quebrar o encanto de uma simbiose Estado desenvolvimentista=seleção, marcando uma perda histórica que destitui a força do Brasil-Brazis, e nos devolve os cuidados do brasiu menor?

Verdade é que sabemos bem quando as ruas reiventam gritos que estão exaltando mais e mais as linhas ativas dos estados vitais, das transformações sensíveis e da política como criação ela mesma. Nas passagens Brazil | brasiu | Brasis abrimos nossos mapas de análise de relações de força e de poder, tornando-nos mais atentos aos cheiros das ervas e das ervas daninhas.

No brasiu menor acho que somos todos Marias-do-socorro.

 

 

(*) Nervossssso, um tipo de nervoso que bate no osso, coisa constitutiva… definido por mim segundo expressão de Margit Leisner nos encontros do Vocabulário Político no Rio

(**) Querelas do Brasil, Maurício Tapajós e Aldir Blanc

Referências

Berardi, Franco (Bifo) (2012). The Uprising: On Poetry and Finance

Bruno Cava. “A ditadura perdeu pero no mucho”, 08/04/2014

Giuseppe Cocco (2009) MundoBraz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil. Rio de Janeiro: Record

Entrevista Giuseppe Cocco “Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles”, 25/06/2013

 

 

Querelas do Brasil

// por Aldir Blanc e Maurício Tapajós

 

(1978)

 

O Brazil não conhece o Brasil

O Brazil nunca foi ao Brasil

Tapir, jabuti, liana, alamandra, alialaúde

Piau, ururau, aqui, ataúde

Piá, carioca, porecramecrã

Jobim akarore

Jobim-açu

Oh, oh, oh
Pererê, câmara, tororó, olererê

Piriri, ratatá, karatê, olará
O Brazil não merece o Brasil

O Brazil ta matando o Brasil

Jereba, saci, caandrades

Cunhãs, ariranha, aranha

Sertões, Guimarães, bachianas, águas

E Marionaíma, ariraribóia,

Na aura das mãos do Jobim-açu

Oh, oh, oh
Jererê, sarará, cururu, olerê

Blablablá, bafafá, sururu, olará
Do Brasil, SoS ao Brasil

Do Brasil, SoS ao Brasil

Do Brasil, SoS ao Brasil
Tinhorão, urutu, sucuri

O Jobim, sabiá, bem-te-vi

Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê

Madureira, Olaria e Bangu, Olará

Cascadura, Água Santa, Acari, Olerê

Ipanema e Nova Iguaçu, Olará

Do Brasil, SoS ao Brasil

Do Brasil, SoS ao Brasil

 vocabpol em 23122014 entradas, índice, manifestações, narrativa

Manifestações

manifestações > travesti

// por Inês Nin

02/07/2013

travesti é amor. aqui, outros nomes, uma apropriação. mídia travesti de asinhas de fora, se faz de amiga, quer assaltar as máscaras de multidão. violência de estado corrompeu nossas ruas. contação de alertas, gente no chão: pensamento difuso, escreve-se para fagocitar os termos, desentranhar os caminhos por entre as nervuras do acontecimento.

derivaceleste:

saber emaranhar os acasos nas estranhas lágrimas provocadas pelos anteriores.

o medo, a sede, a luta e o sossego se contaminam uns aos outros até não existirem mais.

não há permutas, marmotas, percepções inertes ou qualquer outro sentido além daquele visível, ainda que tão turvo, paspalho:

serão neves, tudo ao inverso. ou talvez não, coisadura. não serão fascistas a nos buscar nas casas, senhora no batente, senhor na multidão (infame ilógica inerte que perdura). enxame de refugiados na tijuca, naquela rua perto do estádio, encurralados no próprio quintal de casa. ninguém entende o assunto em voga, há tanta confusão.

de voz em voz uns tentam pintar as cores todas de verde e amarelo, as janelas de inferno, as lutas de brincadeira e então desvalorizam o todo, a própria multidão. em processos, recessos e mistérios, porque são muitos e mil-ações.

não tem jeito de cessar o grito porque vem de longe, de muitos, muitos anos, adormecido que estava nos pulmões de tantos, expelido enfim por aqueles que puderam se manter vivos de alguma forma. e não é caso de impeachment, sem surto. isso é tudo lorota turva, e muito simples, um caso de apropriação:

(explicaremos primeiro a oposição)

reacionário (adj.) é aquele que é contrário a quaisquer mudanças (sociais e/ou políticas); que se opõe à democracia; antidemocrático. sinônimos: antidemocrático, antiliberal, retrógrado e ultraconservador.

(nada como um be-a-bá das curvas)

tampouco nos iludamos com o liberal (s.m.), isto é, aquele que é partidário da liberdade em matéria política ou econômica. no plano econômico, é um perspicaz enganador, astuto defensor das desigualdades e do dinheiro no bolso dos indivíduos (sic) de bem.

nenhum deles representa um perímetro maior que o próprio umbigo. talvez, e digo sem muita convicção, sejam capazes de estender algum apreço a familiares e uns poucos semelhantes, pelo puro louvor conferido à família e à propriedade, ambas instituições tão intimamente conectadas. compartilham regras, egoísmos e convenções.

campo minado! acabaram nossos montes, direi. poderia ser – a crise já se estende por tanto tempo que mal é possível morar na cidade, e então lembramos de tantos problemas interestaduais e tão mais antigos: a polícia militar.

(militar é um órgão capaz de eliminar todos os outros, e, por isso mesmo, deve ter sua existência sumariamente questionada)

e então os bondes, as cores. os trios elétricos que se não estivessem cercados de tantos políciais (e nunca entenderemos tantos policiais) seriam carnavalescos, polivalentes quaisquer-uns com tanto orgulho de enfim existir. sua manifestação nada mais é que uma afirmação da própria existência. decidem ter voz. depois de tanto tempo que não se sabe ao certo de crença forçação velada em crer num sistema de números, morfemas, eixos temáticos e não se sabe ao certo e nunca em quem votar – requisito infame de uma política de delegações.

hannah arendt diz que quando há autoridade, não há ação política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou pequeno grupo que governa. pois então expliquemos, para fazer frente os confusos, gente que confunde totalitarismo com revolução (soa surpreendente, mas vive-se num mundo de disfarces, e nem é tão nova a ideia)

desacredita no sistema em ritmo contagiante de alienação // os espaços abertos são ricos em propostas e experimentos // há aqueles (e são muitos) que procuram lideranças/desejam lideranças/querem depor o lugar // me pergunto se precisamos de lideranças em qualquer lugar // o plural é importante // não se trata de verde e amarelo // bandeiras vermelhas representam grandes articulações coletivas por direitos sociais, nunca se esqueça disso // mídia golpista, que termo sensacional // veja, minhas máscaras foram usadas por outrem // ela foi às ruas e não sabia porquê // os discursos mudaram e continuou seguindo a marcha // mudaram o rumo e alguém ficou?

aqueles que pintam de branco são aqueles mesmos que desejarão eliminar todos os que não puderem se vestir da mesma cor.

você quer ser eliminado? ou espera obter uma fatia do bolo?

política de recortes, de cartas marcadas, de confusão. publicidade, política de imagens, vote no cara legal! os códigos binários e seus comandantes esperam somente respostas de sim-ou-não, são surdos de formação. no ministério das cartas altas, há interfaces e intermeios, ideias que protegem outras, surtações sim, mas muita blindagem, tanto de gentes quanto de informação. as curvas se contaminam, se misturam, não existe pureza no sistema: política de disputas, muita gana, fica um lembrete: a política é dura, mas é negociação. é perigo quando não se definem os temas, fica azul de imensidão

(sabe, aquele que preenche as arestas, cega no horizonte e se deixa engolir no sifão)

baderna é nossa aliada mais vasta, sim, posto que: vândalos são os policiais e seus mandantes. mas se nos chamam todos vândalos, se inserem vândalos entre nós, se vandalismo é a última moda da passeata multicolor da esquina, se qualquer passante é um vândalo em potencial, se o opressor é quem tem razão, se dão vazão às armas, tratam rua de cartazes como batalha campal, em suma, se nos bloqueiam, e atacam, seja nas ruas, em casa, em todo lugar, se não pode tanta coisa, se a fifa pode, se os donos podem, se a tevê pode, se o jornal quer convencer a sua mãe do nosso vandalismo, então sim, somos todos vândalos, vândalos venceremos, vândalismo vão de caminhar na rua, correr do gás, cair no chão..

curioso notar que as bandeiras do começo eram pelo pleno direito de circular – de andar! pois se cortam as pernas e cobram caro pelas próteses, cobrem tudo de cimento e aqui só passa carro blindado!

que espaço é esse forjado sobre tanta argamassa de minérios e gente que veio porque acredita que precisa trabalhar, que não come se não tiver sangue pra derramar, massa de manobra e ahhh.

faltam dores cores palavras pra dizer o porque dos tormentos, a coisa é tudo menos plana, vigente mas cheia dos interstícios estelares e sem muitas rotas de fuga (antes houvesse – a rota maior pede uma passagem de volta, pagamento no cartão, endividamento)

roda de chão sem voltagem, rebobina tudo, eu não quero levar porrada de policial.

acordar com helicóptero, quintal de casa como campo de batalha.

celebridades felizes na televisão, todos canarinhos.

esporte é travestimento de exploração.

 vocabpol em 03122014 Copa, entradas, expressão, fala, manifestações, vocábulo

Tarifa Zero

//  Graziela Kunsch

O que a Tarifa Zero, os bancos e as concessionárias de automóveis poderiam ter em comum mas ainda não têm

 

Colaborou Daniel Guimarães

A contribuição que eu havia pensado originalmente para o Vocabulário Político era contar, desde a minha experiência, como vi a expressão “Tarifa Zero” no transporte coletivo aparecer, ser debatida (inclusive negada) e se transformar ao longo dos últimos nove anos. Eu queria contar da emoção que eu e pessoas de luta próximas como Lúcio Gregori (criador do projeto Tarifa Zero nos anos 1990) e Daniel Guimarães (criador do website TarifaZero.org em 2009) sentimos hoje toda vez que uma multidão de rua grita “Tarifa Zero”, porque foi um longo processo até essa expressão ter sido assumida por todos os coletivos do Movimento Passe Livre e, pouco a pouco – com muito trabalho de base em escolas e comunidades, além dos materiais impressos e das manifestações de rua -, ser apropriada por tantas pessoas. Não cheguei a redigir esse texto e, no processo de organização desta publicação, acabei escrevendo e publicando um outro texto relacionado ao tema, objetivando contribuir diretamente em um processo político, mais que em processos estéticos. A Cris perguntou se eu não teria vontade de publicar este texto também aqui no Vocabulário e, inicialmente, achei que não fazia muito sentido. Ao voltar ao texto, lembrei que seu objetivo principal era trazer para o debate público a Tarifa Zero, no momento em que a grande imprensa escolheu ofuscá-la, colaborando no processo de criminalização das lutas por mudanças sociais e espaciais. E o que é este Vocabulário, senão tornar visíveis certos termos e contextualizá-los?

Não sei se o texto que segue irá colaborar em processos estéticos – espero que sim -, mas estou muito contente de contribuir na publicação desde os movimentos políticos.

Grazi

Originalmente publicado no TarifaZero.org, em 26/6/2014

 

Escrevo este texto a partir da experiência da manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre no dia 19 de junho de 2014 em São Paulo e a sua repercussão na imprensa. Esclareço desde já que o texto é assinado por mim individualmente e que não falo em nome de ninguém. Busco apenas contribuir como pessoa que estava presente no ato e que ainda se choca com as distorções desleais feitas por alguns jornalistas dos veículos de imprensa hegemônicos, que estavam igualmente presentes. Farei uma reflexão sobre o que o ataque a agências bancárias e concessionárias de automóveis poderia ter a ver com a luta pela gratuidade no transporte, mas que no ato do dia 19 não teve; além de uma crítica à criminalização dos movimentos sociais. Escolhi me posicionar diante do que considero uma tática equivocada para o nosso momento atual, mas tenho a clareza de que a verdadeira violência é promovida pelo Estado, tanto pela sua polícia como pelas suas políticas públicas distorcidas, que servem mais a interesses privados.

Começo comentando o título dado pelo Movimento Passe Livre ao evento. No lugar do mote “Não vai ter copa”, limitado ao momento específico que estamos vivendo, o MPL propôs “Não vai ter tarifa”, que expressa a luta de mais de nove anos de existência do movimento e dos anos futuros. Eu tendo a não gostar muito desses títulos que operam pela negativa; acho que funciona mais ser propositivo (algo como “Vai ter Tarifa Zero”). Ao filmar o ato eu tinha que fazer um certo esforço para enquadrar a faixa “Não vai ter tarifa” inteira. Se algumas pessoas se posicionassem na frente do “Não”, lia-se “vai ter tarifa”, e talvez esta parte da frase fique impregnada no nosso inconsciente. Ainda assim considerei a escolha do movimento pertinente, pois se a Copa no Brasil em breve irá terminar, outros tantos problemas (incluindo aqueles causados pela FIFA) permanecerão por aqui (1). Além de se solidarizar com quem é contra a FIFA e contra o mau uso do dinheiro público – o “Não vai ter copa” está implícito no “Não vai ter tarifa”, é a origem do novo nome -, o movimento sugere um foco mais específico. E faz todo sentido pautar o transporte coletivo no contexto da Copa, porque a maior parte dos investimentos do governo para a Copa foram, supostamente, em mobilidade urbana. Digo supostamente porque as obras realizadas (ou planejadas, muitas não chegaram a ser construídas ou finalizadas) não necessariamente implicaram em uma maior mobilidade das pessoas pelas cidades (2).

Havia também outro contexto para o acontecimento da última quinta-feira em São Paulo: a comemoração de um ano na revogação do aumento de vinte centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trem, em 19 de junho de 2013, acompanhada pela redução de tarifas no transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras. Vez ou outra vejo pessoas dizendo que as revoltas de junho não tinham objetivos claros ou que não tiveram conquistas concretas, que “não deu em nada”. A redução no preço das tarifas do transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras é uma conquista concreta e tanto, que faz uma enorme diferença na vida de muita gente (3). Apenas é insuficiente, e esta insuficiência foi expressa no subtítulo que o MPL deu ao ato, tanto no cartaz de convocação como no panfleto distribuído: “Agora só faltam 3 reais” (4).

Falta mais que três reais, alguns vão dizer, assim como, no ano passado, disseram que não era por vinte centavos. Mas aqui irei me deter nas reivindicações específicas do Movimento Passe Livre, que é um movimento de transporte. Para o MPL, o transporte é um direito essencial, que tem o potencial de articular espaços urbanos e outros direitos. Só existirá educação pública de verdade – acessível a todas as pessoas – se o transporte também for público de verdade; do mesmo modo que hospitais, parques e espaços culturais gratuitos só serão economicamente acessíveis a todas as pessoas se não houver mais tantas catracas no meio do caminho (as catracas dos ônibus, dos terminais e das estações de trem e metrô) (5). Lutar pela gratuidade no transporte não é pouca coisa e é importante os leitores deste texto terem isto no horizonte. Esta luta não exclui a necessidade de outras tantas lutas por mudanças sociais e transformações urbanas, mas exige foco e adensamento para ser bem feita.

Os objetivos do ato do dia 19 foram publicamente declarados desde o início do ato, durante a leitura coletiva de um manifesto, amplificada na forma de jogral por quase todos os presentes. Entre outras frases, o jogral afirmava que “Se a Copa é dos ricos” – e um jogo começava no Itaquerão naquele exato momento -, “a cidade é nossa!” (6). Estávamos ali pela comemoração de um ano da revolta popular que barrou o aumento nas tarifas; pela readmissão de 42 metroviários injustamente demitidos; e, principalmente, por Tarifa Zero. Digo principalmente porque a maior parte dos cartazes, das faixas e das ações realizadas tinham como foco a gratuidade no transporte coletivo (7).

A primeira ação do dia, completamente ignorada pela imprensa hegemônica, na Praça do Ciclista, foi a coleta de assinaturas para o projeto de lei de Tarifa Zero de iniciativa popular. Para um projeto de lei municipal ser apresentado pelas pessoas comuns (e não por vereadores) são necessários dados e assinaturas de 5% do eleitorado. Em São Paulo este número equivale a aproximadamente 500 mil pessoas – um número bastante alto, sendo que não valem assinaturas virtuais, como acontece nas petições online. O trabalho de conversa e coleta de assinatura na escala um-pra-um vem acontecendo desde 2011, e quem se interessar por conhecer o texto do projeto de lei e em colaborar nesse processo pode acessar a página da campanha (8)

Uma das últimas ações do ato, que desceu toda a Av. Rebouças e ocupou a Marginal Pinheiros, foi a queima de diversas catracas simbólicas, de papelão, seguida da leitura coletiva de um novo manifesto, com um “recado bem claro”, direcionado principalmente aos empresários que lucram com o deslocamento dos paulistanos: “Agora é o povo que vai mandar no transporte” (9).

Após a queima de catracas, os organizadores do ato puseram música para tocar (um carro com aparelhagem de som foi posicionado na via) e um pequeno campo de futebol foi desenhado no asfalto. Os presentes pularam as catracas ainda em chamas, dançaram e jogaram futebol em plena Marginal (os manifestantes são contra a Copa elitista e higienista da FIFA, não contra o futebol). Bandeirinhas juninas e uma grande bandeira com a expressão “Passe Livre” foram penduradas em postes e na ponte Eusébio Matoso.

A beleza de se realizar uma festa em plena Marginal foi ofuscada na imprensa hegemônica pela ação isolada de uns poucos presentes, que haviam quebrado vidraças de agências bancárias ao longo da Av. Rebouças e, ao final do ato, vidraças e automóveis de uma concessionária da Mercedes Benz. Essas ações foram claramente uma espécie de protesto paralelo, ao ponto de militantes do Movimento Passe Livre terem se posicionado de braços dados diante de agências bancárias da Rebouças, buscando dialogar com quem queria quebrar símbolos do capitalismo (no caso, bancos e concessionárias), explicando que o objetivo do ato não era quebrar nada, mas realizar uma festa popular – em contraposição à festa da elite dentro dos estádios caríssimos – por Tarifa Zero.

Esses militantes orientavam as pessoas a seguir para a Marginal e a grande maioria de manifestantes fez côro com eles, gritando para o ato seguir até a Marginal, de acordo com o planejado e publicamente divulgado (com o conhecimento da imprensa e da polícia). Surpreendentemente, uma repórter do jornal O Globo interpretou que “seguir para a Marginal” significava “não vamos quebrar nada na Rebouças, somente na Marginal”. Só posso pensar que se trata de desonestidade ou de um erro grave de interpretação, pois qualquer pessoa presente sabia que seguir até a Marginal significava tão somente não dar atenção para esse protesto paralelo e seguir o curso planejado para a manifestação.

Em nota divulgada no dia 21 de junho (10), o Movimento Passe Livre se recusa a julgar o que estou chamando de protesto paralelo, afirmando que não cabe ao movimento legitimar ou deslegitimar impulsos de indivíduos revoltados, mas deixa claro que essas ações não estavam entre os objetivos do ato organizado. O movimento critica o uso do termo “mascarados” pela imprensa, lembrando que todas as pessoas têm o direito de preservar a sua identidade (a manifestação foi amplamente fotografada e filmada) e se proteger de uma eventual perseguição e criminalização por parte da polícia (o que não é uma remota possibilidade, mas um fato recorrente). Historicamente, o uso de panos para cobrir os rostos tem também outro sentido, muito lindo: os zapatistas cobrem seus rostos com lenços com a intenção de configurarem um só rosto; uma forma de dizer “Agora não sou mais eu, somos nós”.

Nem todas as pessoas que tinham seus rostos cobertos no dia 19 se envolveram em depredações, concentrando seus esforços coletivos (e não seus impulsos individuais) em uma ação que pode ser considerada muito mais radical e inovadora que quebrar coisas: bloquear uma das maiores vias para automóveis da cidade com uma festa. Uma festa pública, com a presença de milhares de pessoas (11).

Quebrar bancos e concessionárias não necessariamente chama a atenção dos governos – a não ser para mobilizar seu lado mais autoritário e mais repressor -, e não gera melhores serviços públicos (estou supondo que estas eram algumas das intenções dos meninos que realizaram essas ações, pois foi o que declararam para a TV Folha) (12). Também não quebra o capitalismo. Alguém poderia argumentar que essas ações possuem potencial força simbólica, mas só teriam força de fato se refletissem uma revolta ou um desejo coletivos, o que não foi o caso do dia 19. O que vimos ali foi um espetáculo repetitivo, construído junto com a imprensa e com a polícia. Havia fotógrafos e cinegrafistas posicionados diante de agências bancárias antes mesmo de a manifestação passar por esses pontos e uma total ausência de policiais – a não ser nas duas extremidades do ato (Praça Mal. Cordeiro de Farias – perto do túnel da Av. Dr. Arnaldo – e Marginal) e, possivelmente, na presença de policiais à paisana ao longo do trajeto.

A polícia alega que o movimento se declarou responsável pela segurança do ato, mas a preocupação do movimento, segundo a mesma nota anteriormente citada, era tão somente que se evitasse uma presença ostensiva da polícia militar em um ato que se propunha a ser uma comemoração, uma festa; pois normalmente a presença da polícia e a atitude de alguns policiais contribui para que ações como essas aconteçam. Isso é parte do espetáculo midiático, que inclusive sempre coloca jovens vestindo moletom e atirando pedras em igualdade de forças com policiais fortemente armados e com seus corpos totalmente protegidos. Outra preocupação expressa pelo movimento na imprensa era que o ato fosse reprimido antes mesmo de começar, como havia acontecido, uma semana antes, no protesto contra a Copa nos arredores do Itaquerão, entre outros protestos recentes violentamente reprimidos. Além disso, quem coordena a polícia é a Secretaria de Segurança Pública/o governo do Estado, não o movimento social. É desonesto a polícia se colocar numa posição passiva, culpabilizando o movimento por sua omissão. Ao que parece, tudo isso foi construído com o objetivo de reavivar o inquérito policial nº 1/2013 do DEIC, que investiga manifestantes e é considerado ilegal pelos advogados e integrantes do movimento, uma vez que não apura crimes, mas persegue e criminaliza pessoas (13).

De todo modo, o que me motivou a escrever este texto foi discorrer um pouco mais sobre a ineficiência de se quebrar agências bancárias e concessionárias como forma de superar o capitalismo e levar a discussão pública para o verdadeiro foco do ato do dia 19. As vidraças, os caixas eletrônicos e os automóveis quebrados já devem ter sido repostos, ou serão repostos muito em breve. Esses espaços provavelmente possuem seguro, de modo que os quebra-quebras sequer implicam em altos prejuízos aos seus donos. Por que será que a imprensa hegemônica escolhe sempre dar ênfase às depredações feitas por bem poucas pessoas (no dia 19 devem ter sido, aproximadamente, 10 entre 2.000 pessoas – 0,5 % dos manifestantes), ao invés de noticiar as ideias que são verdadeiramente perigosas? A proposta de Tarifa Zero do Movimento Passe Livre tem o potencial de atacar o capital de um modo muito mais interessante: a taxação dos mais ricos, aí incluídos os donos de bancos e de concessionárias de automóveis.

A expressão “Tarifa Zero” foi proposta pelo engenheiro e músico Lúcio Gregori no começo dos anos 1990, quando ele foi secretário de Transportes em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, primeira prefeitura do Partido dos Trabalhadores nesta cidade. O projeto de ônibus Tarifa Zero previa um pequeno aumento no IPTU – o imposto progressivo sobre propriedade – como forma de financiamento (14). Por questões políticas o projeto não chegou a ser votado e foi desqualificado pela imprensa, apesar de pesquisas feitas com a população terem demonstrado que uma imensa maioria era favorável à Tarifa Zero, mesmo com o conhecimento de que ela implicaria em um aumento no IPTU.

Quase vinte anos depois a expressão foi recuperada pelo Movimento Passe Livre e, durante as revoltas de junho de 2013, podia ser ouvida nos mais diferentes espaços de São Paulo, dita por pessoas as mais diferentes. Ainda que, nesta cidade, as grandes manifestações de junho tenham sido pela revogação dos vinte centavos de aumento nas tarifas de ônibus, trem e metrô, a luta de longo prazo do movimento – contra a própria existência dessas tarifas – ficou em evidência e se tornou mais popular.

Uma coisa que tanto Lúcio Gregori como o movimento sempre deixaram clara é que a Tarifa Zero não significa “ônibus de graça”. O transporte tem custos, é claro. Gasolina, manutenção, salário dos trabalhadores etc. Assim como é necessário o governo pagar salários de professores e demais funcionários nas escolas públicas e comprar mesas, cadeiras, lousas, giz, e alimentos para as mesmas, entre outras coisas. Mas tudo isso, no caso das escolas, é pago por todos nós, indiretamente, através de impostos. Não existem catracas na entrada das escolas para cobrar os custos da educação diretamente dos alunos, a cada vez que eles usam esse serviço público; e seria um absurdo se isso fosse sequer cogitado.

O problema é que, no Brasil, quem mais paga impostos, se calcularmos o valor dos impostos embutidos em produtos de consumo proporcionalmente à renda do indivíduo, são os mais pobres. As pessoas mais ricas questionam mais o pagamento de impostos que os pobres porque têm mais consciência de quanto pagam, pois normalmente seus impostos são sobre propriedades e vêm na forma de boletos, são visíveis. Os mais pobres não possuem propriedades e pagam impostos invisíveis, que representam boa parte da sua renda, sem ideia de quantos % de impostos estão pagando, ou mesmo que estão pagando (15). É necessária uma inversão na cobrança de impostos; quem tem mais dinheiro precisa pagar mais, proporcionalmente à sua riqueza.

O financiamento do transporte precisa acontecer de maneira indireta, como já acontece nas escolas e nos hospitais públicos, mas através da criação de um fundo específico para o transporte, cuja receita deve vir fundamentalmente da cobrança de impostos progressivos, entre outras possíveis arrecadações. Imposto progressivo é aquele cujo percentual aumenta de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. No caso do IPTU, por exemplo, proprietários de casas pequenas são isentos do pagamento e proprietários de casas médias e grandes pagam um valor proporcional ao tamanho/valor dos imóveis. Desde os primeiros anos de existência do Movimento Passe Livre (não somente em São Paulo, mas em diversas cidades brasileiras), os panfletos sugerem que a arrecadação venha de uma maior cobrança de impostos de proprietários e/ou grandes acionistas de bancos, multinacionais, resorts, shopping centers, mansões e automóveis de luxo (16).

A taxação da riqueza é necessária para haver distribuição de renda e diminuição da desigualdade social. Além disso, é a elite quem mais se beneficia do deslocamento de milhões de trabalhadores diariamente.

No dia 10 de junho, o jornal reproduziu uma notícia do Financial Times que informa que a riqueza privada global, concentrada em 1,1% de toda a população mundial, atingiu o recorde de 152 trilhões de dólares (17). Este número é tão somente o excedente de riqueza de famílias muito ricas. O dinheiro que fica no banco se reproduzindo/se multiplicando, gerando novos excedentes tanto para essas famílias como mais lucros para os bancos. Com esses recursos seria possível atender a uma série de demandas sociais (talvez todas) não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.

Em fevereiro deste ano, o portal G1 divulgou uma notícia informando que o lucro de quatro bancos brasileiros no ano de 2013 somado supera o PIB (Produto Interno Bruto) de 83 países (18). O Banco do Brasil registrou lucro líquido de 15,75 bilhões de reais, o Itaú Unibanco de 15,696 bilhões, o Bradesco de 12 bilhões e o Santander de 5,7 bilhões. Para se ter a dimensão desses valores, todos que somos contra o mau uso do dinheiro público nos estádios “padrão FIFA” estamos criticando o uso de aproximadamente meio bilhão a um bilhão por estádio. Se questionamos quantas escolas poderiam ter sido construídas ou melhoradas com o valor investido em cada estádio, imaginem quantas coisas poderiam ser feitas se esses bancos fossem mais taxados e essa riqueza acumulada socialmente distribuída.

A proposta de financiamento da Tarifa Zero através de uma reforma tributária que implique em um aumento proporcional de impostos dos muito ricos significa que quem tem mais dinheiro irá contribuir com mais, quem tem menos irá contribuir com menos, e quem não tem dinheiro não precisará contribuir com nada. E todos, sem exceção, poderão usar o transporte coletivo, tornado “público” de verdade.

As cidades pelo mundo que adotaram a Tarifa Zero no transporte experimentaram uma drástica redução no uso de automóveis particulares. Na cidade de Hasselt, Bélgica, que por mais de dez anos teve uma política de gratuidade no transporte coletivo, a utilização do transporte público aumentou mais de doze vezes (de 360.000 passageiros o sistema passou a acolher 4.614.844 passageiros) (19). Nos Estados Unidos, algumas cidades adotam a Tarifa Zero em horários específicos, por exemplo durante o almoço, estimulando pessoas que trabalham no mundo corporativo e que usam automóveis como meio de circulação a usar o transporte coletivo para ir almoçar e retornar ao trabalho.

Ainda que os custos de um sistema Tarifa Zero em uma cidade grande como São Paulo sejam altos, exigindo altos investimentos públicos, é preciso se ter em mente que a Tarifa Zero tem o potencial de gerar toda uma economia sistêmica. No caso da saúde pública, por exemplo, os maiores gastos por internação nos hospitais são 1. por problemas respiratórios, advindos da poluição do ar pelo excesso de automóveis particulares em circulação; e 2. acidentes de trânsito, em sua maioria causados por automóveis particulares (20).

A criação de um sistema Tarifa Zero no transporte coletivo não supera o capitalismo, mas pode enfraquecer os paradigmas onde os bancos e as concessionárias de automóveis atuam. E melhorar a vida da maioria da população.

Quebrar vidros para a imprensa fotografar não está construindo a necessária força social para experimentarmos mudanças na nossa vida cotidiana. Quem se lembra da alegria que foi ver as telinhas das catracas dos ônibus, trens e metrôs voltar a marcar “3,00” reais no lugar de “3,20”, após termos barrado esse aumento, nas ruas? As manifestações de junho incluíram depredações, reconheço, mas como expressão de uma revolta coletiva, incontrolável, e, principalmente, como reação à forte repressão policial (apesar de a grande imprensa ter o costume de inverter essa ordem; sempre sugerindo que quem começa a violência são os manifestantes).

No ato do dia 19, as depredações aconteceram à revelia da enorme maioria de manifestantes presentes, sendo consideradas inclusive autoritárias, infantis e machistas por muitos de nós. É importante que se respeite aquilo que é combinado coletivamente, de modo que outras pessoas – como mulheres grávidas, crianças e pessoas idosas – também possam participar da festa (21).

A repressão policial ao final do ato do dia 19 caiu sobre todos os presentes, de modo que a vida de todas essas pessoas estava em risco, exposta a bombas de gás, spray de pimenta (22), balas de borracha, pancadas de cassetetes e prisões arbitrárias. Eu já participei de diversos protestos sem depredações que foram igualmente ou mais reprimidos, reconheço novamente, mas neste dia as pessoas já estavam voltando para casa ou caminhando até o Largo da Batata, onde o ato seria concluído, quando a concessionária da Marginal começou a ser quebrada. Não foi nada legal tantas pessoas terem sido atacadas e perseguidas pela polícia, tornadas reféns da ação de poucos que estavam dispostos a esse enfrentamento (bem poucos mesmo; no registro da TV Folha referenciado anteriormente contei três meninos dentro da concessionária, em meio a diversos jornalistas, e entre quatro e cinco na agência bancária, não dá para saber ao certo). Quebrar vidros é diferente de ferir a integridade física e jurídica de pessoas, mas, neste dia – ainda que eu não aceite isto como justificativa, a polícia precisa deixar de existir desta forma -, o ataque contra vidros praticado pelos meninos foi usado como desculpa para uma violência generalizada contra as pessoas, pela polícia. Não somente contra manifestantes, mas contra qualquer pessoa que tenha dado o azar de estar na região do Largo da Batata naquele momento. Mais gravemente, essas ações isoladas estão agora sendo usadas para o Estado seguir criminalizando as lutas sociais, instalando um estado policial que remete à ditadura militar (23). Tudo isso limita, propositadamente, a capacidade de atuação dos movimentos, que precisam dedicar todos ou quase todos os seus esforços para responder a essa criminalização.

Apropriando-me das palavras de um amigo de amigos em seu mural público de Facebook, eu “não condeno a tática [Black Bloc], mas apenas dizer que não a defendo não é mais suficiente. Precisamos dizer que não concordamos e que isso está atrapalhando a luta social que pretende colocar interesses públicos na frente dos interesses privados que historicamente governam a sociedade. A confusão entre uma tática que busca o apoio popular massivo para as suas ideias e outra que pouco se importa com a opinião pública só fortalece quem contra ambas está” (24).

A Tarifa Zero precisa do apoio popular das massas, pois é as massas que irá beneficiar. O esforço dos militantes do MPL, que há quase uma década fazem discussões sobre mobilidade urbana e direito à cidade em escolas e em comunidades/bairros que possuem diversas carências no transporte coletivo, sempre foi de agregar pessoas e, mais que isso, estimular sua auto-organização. Não podemos reduzir a Tarifa Zero a uma compreensão burocrática da luta. A liberdade de nos movimentarmos pelas cidades sem restrições econômicas é uma ideia nova e radical. Para ser acessível a todas as pessoas, precisa existir como direito e política pública, pois nem todos possuem disposição ou condição física para pular catracas e para sustentar enfrentamentos com a polícia.

É só imaginar muitos ônibus sem catraca circulando para perceber a força dessa ideia. Imaginar que a gente pode entrar e sair por qualquer porta dos ônibus, sem precisar se esmagar até a porta de saída. Que a gente pode traçar qualquer percurso pela cidade, parando para fazer coisas ao longo do caminho. Que pessoas que estão excluídas da cidade por não poderem pagar as tarifas do transporte vão passar a ser incluídas. Que vão passar a chegar a lugares onde atualmente não chegam. A poder frequentar os espaços culturais gratuitos, as escolas e os hospitais. A visitar seus amigos e familiares com maior facilidade. A ficar mais próximas umas das outras, tornando a cidade, ao mesmo tempo, grande e pequena.

Lembro de um dia pós-junho de 2013 em que eu saí do metrô República e, ao caminhar pela praça, olhei para trás e tive a certeza de que um dia as pessoas acharão absurdo imaginar que no passado era necessário pagar para usar o transporte público. Quero muito estar viva para me movimentar nessa cidade Tarifa Zero e para conhecer a geração que vai crescer sem catracas no meio do caminho. Assim como hoje estudantes e suas famílias se beneficiam do meio-passe escolar graças aos esforços de pessoas que lutaram por ele décadas atrás, nós vamos poder dizer que colaboramos nesse processo coletivo e ensinar a luta para nossos filhos. Precisamos de experiências vitoriosas para as pessoas continuarem lutando. Quebrar vidro não cumpre esse papel. Pode cumprir alguns papéis táticos, mas, consistentemente, não muda a vida cotidiana das pessoas.

 

Notas

(1) O que não deslegitima, de modo algum, a importância dos protestos contra a FIFA ou contra as remoções de famílias pobres de suas casas durante todos os anos de preparação da Copa, o valor absurdo de recursos públicos investidos na reforma ou na construção de estádios, a morte de operários da construção civil, o turismo sexual etc. Os que quiserem conhecer melhor todas as motivações das pessoas que foram às ruas contra a FIFA, contra algumas implicações do evento na vida de pessoas pobres e contra determinadas ações dos governos brasileiros, podem ler o conjunto de reportagens realizadas pela Agência Pública, publicadas na seção “Copa pública”: http://apublica.org/category/copa-publica/. Também recomendo a seção “Não tem dinheiro pra Tarifa Zero?”, do portal TarifaZero.org, que compartilha notícias sobre altos investimentos dos governos como crítica ao mau uso de dinheiro público, sugerindo a necessidade de novas prioridades: http://tarifazero.org/category/uncategorized/naotemdinheiro/ . Neste contexto, destaco uma notícia que compartilhamos sobre a Arena da Amazônia, que custou 669,5 milhões de reais e que foi construída para sediar quatro jogos da Copa e nada mais: http://tarifazero.org/2014/03/09/manaus-apos-mortes-e-r-6695-mi-arena-da-amazonia-sera-aberta-neste-domingo/ . Três trabalhadores morreram na construção deste estádio e não existe demanda dos times e das torcidas locais que justifique uma arena de enormes proporções. Alguns usos vêm sendo cogitados para o estádio após a Copa, mas, seja qual for esse uso, certamente não poderia ter sido priorizado no lugar de demandas sociais urgentes que devem existir na cidade de Manaus. Finalmente, recomendo a leitura do número atual da excelente revista Retrato do Brasil (n. 83, junho de 2014), que traz uma matéria sobre que tipo de legado a Arena Corinthians (o “Itaquerão”) deixará para a Zona Leste de São Paulo e uma reportagem sobre os faturamentos da FIFA e de seus parceiros na Copa do Brasil.

(2) Ver “A cereja sem bolo”, reportagem de Thiago Domenici na revista Retrato do Brasil n. 73, agosto de 2013. Apenas saliento que as vaias à Dilma a que Thiago se refere no texto são dos acontecimentos do ano passado, em sua maioria por razões diferentes dos xingamentos feitos por convidados vips na abertura da Copa no Itaquerão. PDF da revista disponível em https://dl.dropboxusercontent.com/u/27221790/Retrato%20do%20Brasil/RB73.1-17.pdf.

(3) No Brasil aproximadamente 37 milhões de pessoas não podem pagar as tarifas do transporte “público”, e a cada vez que essas tarifas aumentam essa exclusão aumenta também. O panfleto distribuído no dia 19/6 pode ser lido em http://tarifazero.org/2014/06/19/nao-vai-ter-tarifa-panfleto-do-mpl-sao-paulo-para-o-ato-de-hoje-dia-19/.

(4) Preço atual das tarifas de ônibus, trem e metrô na cidade de São Paulo.

(5) Ouvir a Canção para o Movimento Passe Livre, de Rodolfo Valente (2006): http://tarifazero.org/2013/06/17/sao-paulo-cancao-para-o-movimento-passe-livre/.

(6) Texto do jogral: “Pessoal / Pessoal / Estamos aqui hoje / Para lutar / Por um transporte público de verdade / Enquanto os governos / Gastam bilhões com a Copa / E com o transporte individual / Somos humilhados todos os dias / Nos ônibus e trens lotados / E quem tenta resistir / É criminalizado / Motoristas, cobradores e metroviários / São demitidos por fazer greve / E quem tenta se manifestar / É reprimido pela Polícia Militar / Mas nós sabemos / Que só com a união de todos os trabalhadores / Os que viajam no transporte / E os que trabalham no transporte / É que derrotaremos / Os empresários e seus governos / Que todos os dias / Nos exploram nas catracas / Por isso hoje / Saímos às ruas para dizer: / Se a copa é dos ricos / A cidade vai ser nossa / Tarifa Zero quando? / Tarifa Zero já!”.

(7) No pequeno vídeo que realizei sobre o ato, intitulado “Túnel Av. Paulista – Dr. Arnaldo”, é possível visualizar as faixas “NÃO VAI TER TARIFA” e “TARIFA ZERO PAGA PELOS RICOS”: https://vimeo.com/98782301.

(9) Texto do segundo jogral: “Pessoal / Pessoal / Marchamos desde a Av. Paulista / Até aqui, a Marginal Pinheiros / Para mostrar que / Quem constrói essa cidade todo dia / Quase não pode usar a cidade / Mostramos que / Não vamos parar de lutar / Até a tarifa acabar / Até não existir mais catracas / Até todos os trabalhadores grevistas / Serem readmitidos / Até os donos do transporte / Pararem de lucrar / Com o nosso sufoco! / Vamos ocupar a Marginal / Vamos ficar na Marginal / E realizar uma grande festa popular / Que deixe bem claro / Que não aceitamos mais essa cidade segregada / Onde passavam carros de luxo / Vão ficar catracas em chamas / Para deixar um recado bem claro / Agora é o povo que vai mandar no transporte!”.

(11) A polícia militar contou 1.300 manifestantes. O movimento estimou que havia muito mais gente, em torno de 3.000 pessoas. A imprensa divulgou, como sempre, o número dado pela PM, com raras exceções. Cito um comentário de Pablo Ortellado após as primeiras notícias divulgadas, publicado em seu mural público de Facebook: “Acho incrível a falta de coerência da imprensa no uso dos dados da polícia militar para estimar manifestantes. O protesto é contra o Estado, o Estado dá número subestimado de manifestantes e a imprensa usa esse número e só esse número sem o menor pudor – sem notar que essa opção por si só já compromete o princípio do equilíbrio jornalístico”.

(12) Logo no início do vídeo editado pela TV Folha um menino diz: “Quebrar tudo. Só assim que o governo ouve, irmão”. Aos 27 segundos outro diz: “Eu quero meu direito, eu quero escola, eu quero hospital. Foda-se a Copa”. O prólogo desta vídeo-reportagem mostra exclusivamente ações de depredação e repressão policial, anunciando a escolha editorial que estará presente ao longo de todo o vídeo, em detrimento de outras possibilidades, mais fiéis ao que se passou na maior parte do tempo da manifestação: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/06/1473409-mpl-tenta-mas-nao-consegue-evitar-vandalismo-em-ato-veja-imagens.shtml .

(13) Segundo a nota “Mais uma vez, não vamos ao DEIC e denunciamos o inquérito ilegal”, de 23/6/2014, o MPL informa que no dia seguinte ao ato, sexta-feira, 20 de junho, “a policía esteve novamente nas casas de militantes, intimando-os pela quinta vez para depor no DEIC e ameaçando seus familiares” (ver http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/23/mais-uma-vez-nao-vamos-ao-deic-e-denunciamos-o-inquerito-ilegal/). Ver também os manifestos publicados anteriormente: “Porque não vamos depor no DEIC”, de 24/1/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/01/24/porque-nao-vamos-depor-no-deic/) e “Pelo trancamento do inquérito nº 1/2013 do DEIC”, de 9/6/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/09/pelo-trancamento-do-inquerito-ilegal-no-12013-do-deic/).

(14) Segundo Lúcio Gregori, em troca de emails comigo, “esses recursos viriam de uma reforma tributária, sendo que 33% dos imóveis, com menos de 60 metros quadrados, eram isentos de IPTU e, portanto, teriam somente ganhos com a gratuidade dos transportes. Outros 44,7% dos imóveis teriam IPTU entre Cr$ 1,00 até Cr$ 1990,00 cruzeiros mensais da época. No caso dos moradores desses 44,7 % imóveis, que teriam o reajuste até Cr$1990,00, como ficaria? A tarifa dos ônibus era de Cr$ 35,00. Numa estimativa conservadora, duas pessoas que morassem num desses imóveis, gastariam Cr$140,00/dia x 22dias = Cr$ 3080,00 somente para deslocamento residência/trabalho/residência em 22 dias úteis. Assim teriam uma vantagem, na pior das hipóteses, de Cr$(3080,00 – 1990,00) = Cr$1090,00 por mês, devido à gratuidade nos transportes. Então, 33% + 44,7% = 77,7% das residências da cidade e, portanto, seus moradores, ganhariam com a gratuidade vinculada à reforma tributária”. Outra informação relevante é que na gestão de Lúcio como secretário de Transportes a frota de ônibus de São Paulo aumentou de 7.600 ônibus para 9.600 ônibus e o projeto de Tarifa Zero previa novo aumento da frota, de mais 50% (mais 4.800 ônibus), para atender a demanda que seria gerada pela gratuidade. Lúcio recomenda a leitura do texto “Procurando entender a Tarifa Zero”, de Chico Whitaker (1990): http://tarifazero.org/2011/08/25/procurando-entender-a-tarifa-zero/.

(15) Recomendo a leitura da entrevista com o economista Marcio Pochmann no jornal Brasil de Fato (20/2/2014). Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/27525.

(16) Os recursos não precisam vir do IPTU como ocorreria no projeto dos anos 1990; os técnicos podem estudar a aplicação de uma “taxa transporte” sobre atividades econômicas que se beneficiam com a mobilidade, incorporando o vale-transporte nessa taxa. Contribuição de Lúcio Gregorio.

(19) Para conhecer experiências de Tarifa Zero pelo mundo, ver a seção “Boas experiências” do portal TarifaZero.org: http://tarifazero.org/experiencias/. Destaque para Tallin (Estônia), com 420 mil habitantes, primeira capital europeia a adotar a gratuidade no transporte para todos seus habitantes.

(20) No artigo “O transporte público gratuito, uma utopia real” (coletânea Cidades rebeldes, São Paulo: Boitempo, 2013), o sociólogo e editor João Alexandre Peschanski discorre sobre outras justificativas de ordem econômica para a Tarifa Zero. Ver também seu texto “Motivos econômicos pelo transporte público gratuito”, no blog da editora Boitempo: http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/10/motivos-economicos-pelo-transporte-publico-gratuito/.

(21) Uma reflexão útil pode ser repensar as táticas usadas pela Ação Global dos Povos (que ficou mais conhecida como “movimento antiglobalização”) no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000: tudo o que seria feito no ato do grupo era decidido em assembleia. O que escapasse disso era tratado como ação de agentes infiltrados. Servia muito bem para evitar sequestros de pauta, mas funciona melhor para dizer que o movimento está disposto a decidir tudo democraticamente. Contribuição de Daniel Guimarães.

(22) O spray de pimenta é proibido em muitos países até mesmo como arma de guerra, mas no Brasil é largamente usado como arma “não letal” contra civis. O gás pode ser letal para pessoas que possuem problemas respiratórios, cardíacos e para mulheres grávidas.

(23) Pouco antes da finalização deste texto, o secretário de Segurança Pública Fernando Grella anunciou que a polícia será acionada para levar 22 militantes do Movimento Passe Livre à força para depor no DEIC. Como resposta, o movimento está convocando o secretário e integrantes de movimentos sociais para debater, publicamente, a criminalização em curso dos movimentos e exigir, novamente, o trancamento do inquérito nº1/2013. Será no dia 3 de julho, às 15h, diante do Tribunal de Justiça (Praça da Sé): https://www.facebook.com/events/663391543743365/.

(24) Pedro Ekman. Ele concluiu seu depoimento citando Sun Tzu em A arte da guerra: “Estratégia sem tática é o caminho mais longo para a vitória. Tática sem estratégia é o estrondo que se escuta antes da derrota”. Como referência histórica e aprofundamento da questão recomendo o texto “O movimento de ação direta britânico dos anos 1990”, de Leo Vinicius (2009), sobre o auge e a criminalização do movimento Reclaim the Streets, no Reino Unido: http://passapalavra.info/2009/08/11797.

 

 vocabpol em 23112014 ação, entradas, índice, manifestações, movimento, narrativa

Vizinhança

pequeno relato de uma experiência de vizinhança.

 

// por Enrico Rocha

O Poço da Draga existe ali, no centro de Fortaleza, pertinho da praia, há mais de 100 anos. Para a maioria da cidade, que não consegue ver suas centenas de casas por detrás de galpões vazios a espera de bons negócios, o Poço quase nem existe, nunca existiu. Para os governos, que nunca lhe concederam nem mesmo o direito de saneamento básico, mesmo localizado em área tão nobre da cidade, ele também não existe ao certo. Para mim, que escolhi como lugar de morada a sua vizinhança, o Poço é um convite, ou uma convocatória, para pensar no sentido de existência.

As pessoas que lá vivem, que são o sentido  principal do que chamamos Poço da Draga, seguem uma ocupação que se deu no momento da construção do primeiro porto de Fortaleza. A pouca profundidade do mar na costa da cidade exigia a ação de dragas para que os navios se aproximassem. Daí o nome. Lá, gente vinda do interior, quase sempre fugindo das ameaças da seca, encontrou trabalho e logo fixou residência próximo à cancela do porto. Aliás, o sobe e desce da cancela deu outro nome ao lugar, Baixa Pau, que é confundido pelo resto da cidade como sinônimo de violência.

De sua origem eu sei pelo que me contam os moradores com quem hoje convivo. O encontro com alguns deles se deu há bastante tempo, em situações que se definem por nossas afinidades eletivas. O convívio de vizinhança é recente e se intensificou quando nos sentimos igualmente ameaçados. É que o governo do estado do Ceará deu início na proximidade do Poço e de minha casa, a uma grande obra, dessas que se acompanham de muita publicidade e fantasia de desenvolvimento. Nossa reação foi enfrentar a ameaça de exclusão que seria consequência do projeto Acquário Ceará e a partir daí passamos a nos encontrar frequentemente, a nos contagiar uns dos outros, a nos comprometer com interesses comuns, a enfrentar os conflitos que se apresentam a partir de nossas diferenças, a tecer relações de confiança.

Não é a primeira vez, e desejo que não seja a última, que eu me envolvo com uma situação de conflito urbano, dessas que nos exigem um posicionamento claro. Entretanto, em meio a essa experiência com o Poço, venho assumindo com mais entusiasmo uma posição que me permite enfrentar minhas próprias condições de existência sem me deixar guiar por falsos conflitos, como opor prazer e trabalho, profissionalismo e cidadania. Ou rimar amor e dor.

O Poço da Draga se apresenta a mim como uma realidade material e concreta que não me é alheia. Levo ao Poço a mesma inquietação que mobiliza em mim um interesse pela produção de arte. É a partir da relação sensível com o mundo e da nossa capacidade de intervir sobre a sua forma, de articular seus sentidos, que me ponho no Poço e compreendo que transformar a matéria do mundo é uma necessidade urgente e cotidiana. No entanto, não há manuais práticos, projetos definidos ou qualquer outro instrumento que oriente a ação. O desafio é constituir uma relação e agir tomando-a como necessária. Um processo contínuo de experimentação e de aprendizado das limitações e potencialidades que essa relação apresenta.

Nesse processo, a transparência é uma exigência, e certo nível de opacidade uma condição que deve ser compreendida. Estou ali com todas as minhas idiossincrasias e sou convocado a responder porquê. Afirmo, então, que desobedeço a ordem imposta pelo modo como a maioria experimenta a cidade e ouso enfrentar uma fronteira com a expectativa de conquistar uma cidade que não se produz pelo medo da violência, mas a partir do desejo e dos encontros. Conviver com o Poço da Draga e me envolver em seus desafios mobiliza-me desejos,  faz-me enfrentar a produção intensiva de neuroses  e seguir acreditando que outro mundo é possível e sua construção é urgente.

“O corpo é de luta e não de perfumaria”.  Esta frase da Hilda Hilst me comoveu desde a primeira leitura. O convívio com o Poço da Draga é, portanto, um convite à luta e à invenção de um sentido para essa palavra. Não se trata de ir ao Poço motivado a promover um modo de existência que busca acomodar-se em lugares pré-definidos, como poderia ser a atuação de um artista profissional interessado em se posicionar no circuito das artes, tão ávido por colaborações; ou a atuação de um político profissional interessado em conquistar eleitores. A luta que se inventa na relação com o Poço é contra o mundo estabelecido, normatizado, incluindo o campo da arte (pretenciosamente sem normas) e o da poítica (pretenciosamente normatizador); incluindo nossas noções de sujeito e de ação. E aqui evitaria qualquer idealização dessa relação e das pessoas que moram no Poço da Draga, pois elas também são parte nesse e desse conflito, luta-se também contra suas/nossas identidades enrijecidas.

No entanto, quando a luta se realiza como tarefa cotidiana, mobilizada em rede, sem comando centralizado, sem doutrina a obedecer, um corpo perfumado é também convocado. O encontro com o Poço da Draga mantém-se fundamentalmente como experiência afetiva. Pois entendo que a disputa de sentido do mundo, de sua forma, pode também se dar em um beijo, como aquele de Adélia: “a vida é tão bonita,/ basta um beijo/ e a delicada engrenagem movimenta-se,/ uma necessidade cósmica nos protege”. Afinal, é sempre um impulso amoroso o que nos move a transformar o mundo.

#lugar

ainda que fossem dimensões separáveis da vida humana, tanto a política quanto a arte se produzem como uma disputa de sentidos para o mundo, ou melhor, como atividades de invenção do mundo. e por mundo, compreendo o lugar onde habitamos. lugar que não só nos abriga, mas que também é constituído por nossos corpos e nossas ideias. lugar onde necessariamente convivemos.

sinta seus pés no chão. olhe ao redor. o mundo está bem aí. todo lugar é matéria e expressão do mundo.

 

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#Radicais* que atravessam o texto

#vizinhança
a partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode está cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizinhança. diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. bom acreditar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. em qualquer escala.

#com-
conviver, conversar, confiar, comprometer, confabular etc. há diversas ações, fundamentais para a vida comum, que não realizamos sozinhos. as relações de vizinhança são tecidas por ações como essas. é necessário disposição e disponibilidade para conjugar ações com esse pressuposto da existência do outro.

#art-
arte: exercício experimental da liberdade. assim propôs o crítico Mário Pedrosa, em 1970, que compreendêssemos o que fazem os artistas. liberdade é também matéria da política. o mundo transforma-se em uma constante tentativa de superação da natureza em direção à cultura. também nas tentativas de superação de estados de dominação de certas culturas em relação a outras. compreendamos liberdade, então, não como a afirmação da vontade de um indivíduo, mas esse movimento coletivo do homem em busca de sua própria humanidade. e compreendamos arte como o exercício, a atividade, que experimenta e dá formas a esse movimento constituinte do mundo, que coloca o mundo em obra. dos artefatos que produzimos às articulações que promovemos, é sempre o mundo que está em obra.

#trans-
transformação: talvez essa seja a condição formal de nossa existência. uma experiência transitiva. cotidianamente agimos sobre o mundo, incluindo nosso próprio corpo, para que ele se transforme, ainda que nossa ação seja para manter o mundo aparentemente o mesmo. experimente não escovar os dentes ou não varrer a casa ou não coletar o lixo, por exemplo. e pense que outras ações podem ter consequências menos diretas, mas que também são transitivas, transformam uma situação em outra, ainda que seja para manter a aparência, a mesma forma como se dá aos sentidos, a mesma condição de partilha. daí, conclua que há também ações que transformam uma situação em outra provocando diferenças. quero crer que a arte e a política são ações transformadoras nesse sentido da produção de diferenças.

 

*Estes radicais foram escritos por Enrico Rocha. Os #radicais são uma proposta conjunta dos participantes do Vocabulário político para processos estéticos. Eles desejam criar leituras transversais às entradas. Vá para a página dos #radicais para conhecer os demais.

 vocabpol em 21112014 contexto, conversa, entradas, índice, manifestações