Vizinhança

pequeno relato de uma experiência de vizinhança.

 

// por Enrico Rocha

O Poço da Draga existe ali, no centro de Fortaleza, pertinho da praia, há mais de 100 anos. Para a maioria da cidade, que não consegue ver suas centenas de casas por detrás de galpões vazios a espera de bons negócios, o Poço quase nem existe, nunca existiu. Para os governos, que nunca lhe concederam nem mesmo o direito de saneamento básico, mesmo localizado em área tão nobre da cidade, ele também não existe ao certo. Para mim, que escolhi como lugar de morada a sua vizinhança, o Poço é um convite, ou uma convocatória, para pensar no sentido de existência.

As pessoas que lá vivem, que são o sentido  principal do que chamamos Poço da Draga, seguem uma ocupação que se deu no momento da construção do primeiro porto de Fortaleza. A pouca profundidade do mar na costa da cidade exigia a ação de dragas para que os navios se aproximassem. Daí o nome. Lá, gente vinda do interior, quase sempre fugindo das ameaças da seca, encontrou trabalho e logo fixou residência próximo à cancela do porto. Aliás, o sobe e desce da cancela deu outro nome ao lugar, Baixa Pau, que é confundido pelo resto da cidade como sinônimo de violência.

De sua origem eu sei pelo que me contam os moradores com quem hoje convivo. O encontro com alguns deles se deu há bastante tempo, em situações que se definem por nossas afinidades eletivas. O convívio de vizinhança é recente e se intensificou quando nos sentimos igualmente ameaçados. É que o governo do estado do Ceará deu início na proximidade do Poço e de minha casa, a uma grande obra, dessas que se acompanham de muita publicidade e fantasia de desenvolvimento. Nossa reação foi enfrentar a ameaça de exclusão que seria consequência do projeto Acquário Ceará e a partir daí passamos a nos encontrar frequentemente, a nos contagiar uns dos outros, a nos comprometer com interesses comuns, a enfrentar os conflitos que se apresentam a partir de nossas diferenças, a tecer relações de confiança.

Não é a primeira vez, e desejo que não seja a última, que eu me envolvo com uma situação de conflito urbano, dessas que nos exigem um posicionamento claro. Entretanto, em meio a essa experiência com o Poço, venho assumindo com mais entusiasmo uma posição que me permite enfrentar minhas próprias condições de existência sem me deixar guiar por falsos conflitos, como opor prazer e trabalho, profissionalismo e cidadania. Ou rimar amor e dor.

O Poço da Draga se apresenta a mim como uma realidade material e concreta que não me é alheia. Levo ao Poço a mesma inquietação que mobiliza em mim um interesse pela produção de arte. É a partir da relação sensível com o mundo e da nossa capacidade de intervir sobre a sua forma, de articular seus sentidos, que me ponho no Poço e compreendo que transformar a matéria do mundo é uma necessidade urgente e cotidiana. No entanto, não há manuais práticos, projetos definidos ou qualquer outro instrumento que oriente a ação. O desafio é constituir uma relação e agir tomando-a como necessária. Um processo contínuo de experimentação e de aprendizado das limitações e potencialidades que essa relação apresenta.

Nesse processo, a transparência é uma exigência, e certo nível de opacidade uma condição que deve ser compreendida. Estou ali com todas as minhas idiossincrasias e sou convocado a responder porquê. Afirmo, então, que desobedeço a ordem imposta pelo modo como a maioria experimenta a cidade e ouso enfrentar uma fronteira com a expectativa de conquistar uma cidade que não se produz pelo medo da violência, mas a partir do desejo e dos encontros. Conviver com o Poço da Draga e me envolver em seus desafios mobiliza-me desejos,  faz-me enfrentar a produção intensiva de neuroses  e seguir acreditando que outro mundo é possível e sua construção é urgente.

“O corpo é de luta e não de perfumaria”.  Esta frase da Hilda Hilst me comoveu desde a primeira leitura. O convívio com o Poço da Draga é, portanto, um convite à luta e à invenção de um sentido para essa palavra. Não se trata de ir ao Poço motivado a promover um modo de existência que busca acomodar-se em lugares pré-definidos, como poderia ser a atuação de um artista profissional interessado em se posicionar no circuito das artes, tão ávido por colaborações; ou a atuação de um político profissional interessado em conquistar eleitores. A luta que se inventa na relação com o Poço é contra o mundo estabelecido, normatizado, incluindo o campo da arte (pretenciosamente sem normas) e o da poítica (pretenciosamente normatizador); incluindo nossas noções de sujeito e de ação. E aqui evitaria qualquer idealização dessa relação e das pessoas que moram no Poço da Draga, pois elas também são parte nesse e desse conflito, luta-se também contra suas/nossas identidades enrijecidas.

No entanto, quando a luta se realiza como tarefa cotidiana, mobilizada em rede, sem comando centralizado, sem doutrina a obedecer, um corpo perfumado é também convocado. O encontro com o Poço da Draga mantém-se fundamentalmente como experiência afetiva. Pois entendo que a disputa de sentido do mundo, de sua forma, pode também se dar em um beijo, como aquele de Adélia: “a vida é tão bonita,/ basta um beijo/ e a delicada engrenagem movimenta-se,/ uma necessidade cósmica nos protege”. Afinal, é sempre um impulso amoroso o que nos move a transformar o mundo.

#lugar

ainda que fossem dimensões separáveis da vida humana, tanto a política quanto a arte se produzem como uma disputa de sentidos para o mundo, ou melhor, como atividades de invenção do mundo. e por mundo, compreendo o lugar onde habitamos. lugar que não só nos abriga, mas que também é constituído por nossos corpos e nossas ideias. lugar onde necessariamente convivemos.

sinta seus pés no chão. olhe ao redor. o mundo está bem aí. todo lugar é matéria e expressão do mundo.

 

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#Radicais* que atravessam o texto

#vizinhança
a partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode está cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizinhança. diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. bom acreditar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. em qualquer escala.

#com-
conviver, conversar, confiar, comprometer, confabular etc. há diversas ações, fundamentais para a vida comum, que não realizamos sozinhos. as relações de vizinhança são tecidas por ações como essas. é necessário disposição e disponibilidade para conjugar ações com esse pressuposto da existência do outro.

#art-
arte: exercício experimental da liberdade. assim propôs o crítico Mário Pedrosa, em 1970, que compreendêssemos o que fazem os artistas. liberdade é também matéria da política. o mundo transforma-se em uma constante tentativa de superação da natureza em direção à cultura. também nas tentativas de superação de estados de dominação de certas culturas em relação a outras. compreendamos liberdade, então, não como a afirmação da vontade de um indivíduo, mas esse movimento coletivo do homem em busca de sua própria humanidade. e compreendamos arte como o exercício, a atividade, que experimenta e dá formas a esse movimento constituinte do mundo, que coloca o mundo em obra. dos artefatos que produzimos às articulações que promovemos, é sempre o mundo que está em obra.

#trans-
transformação: talvez essa seja a condição formal de nossa existência. uma experiência transitiva. cotidianamente agimos sobre o mundo, incluindo nosso próprio corpo, para que ele se transforme, ainda que nossa ação seja para manter o mundo aparentemente o mesmo. experimente não escovar os dentes ou não varrer a casa ou não coletar o lixo, por exemplo. e pense que outras ações podem ter consequências menos diretas, mas que também são transitivas, transformam uma situação em outra, ainda que seja para manter a aparência, a mesma forma como se dá aos sentidos, a mesma condição de partilha. daí, conclua que há também ações que transformam uma situação em outra provocando diferenças. quero crer que a arte e a política são ações transformadoras nesse sentido da produção de diferenças.

 

*Estes radicais foram escritos por Enrico Rocha. Os #radicais são uma proposta conjunta dos participantes do Vocabulário político para processos estéticos. Eles desejam criar leituras transversais às entradas. Vá para a página dos #radicais para conhecer os demais.

 vocabpol em 21112014 contexto, conversa, entradas, índice, manifestações