Forense capenga

// Raphi Soifer

pensando o capenga forensicamente (em voz alta e sotaqueada)

(conversa entre Raphi Soifer e Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento

A linguagem socializa e racionaliza o pensamento.

o que é capenga é pensado e socialmente inserido, mas não consegue se racionalizar.  o capenga age sobre o pensamento de uma maneira um pouco torta; desracionaliza, enselvagereia.

A linguagem literária tem 4 qualidades essenciais:

concisão
    clareza
    precisão
    pureza

o capenga não sabe lidar precisa ou puramente, não busca clareza e nem concisão; na real, nem sabe que devia estar buscando.  mesmo assim, é efetivo, acaba funcionando (mais ou menos).  mas ele não apenas funciona, ele existe, se enuncia na própria falta dessas qualidades essenciais, se mostrando possível.

o capenga sabe mais:  sabe que toda qualidade que se diz essencial é capenga por si só, guarda algo torto na sua base, no cerne da sua proposta de ser definitiva.  uma tortura, porque articular uma linguagem que se diz forense requer excluir tantas outras cuja efetividade reside no afeto, requer expulsar tantas gírias queridas e acertações poéticas tidas como erradas.  se a língua forense racionaliza, o capenga sente. e toca, e atinge.

O verbo ATINGIR é transitivo direto, isto é, rege objeto direto – sem a preposição A – no sentido físico de “tocar”, “chegar a”, “alcançar”, ou noutro de “compreender”, “perceber”, “dizer a respeito”.

se é que exista uma linguagem forense para explicar o capenga, ela é a gambiarra que consegue atingir o pensamento sem se socializar, sem exatidão, mas sempre funcionando.  e aqui sou eu na maior gambiarrice, atingindo a cidade sem clareza nem concisão e sem a preposição A.  eu mergulho estrangeiristicamente no rio de janeiro.  eu me situo por aqui, funciono, alcance com um toque capenga.

voltando de uma primavera fria na gringolândia de onde venho, atinjo o rio de janeiro com toda a força do meu estrangeirismo.  alguns dias depois, a polícia “pacificadora” do morro dos macacos consegue atingir um menino de 8 anos com uma bala na cabeça.  mesmo acostumado com esse tipo de notícia (algumas semanas antes, logo depois de invadir a maré, militares mataram uma criança de 4 anos e uma avó de 67 em poucos dias) sinto-me mais pessoalmente atingido pelo acontecimento no morro dos macacos.  conheço algumas crianças de lá, que descem de vez em quanto para jogar capoeira com o grupo onde eu treino (capengamente e sem nenhum equilíbrio). não sei responder, não faço nada diretamente sobre o acontecimento além de escrever algumas poucas linhas que não mostro para ninguém.

a violência também é capenga, mas nem por isso deixa de ser eficaz. o forense responde tentando enquadrar a violência dentro de um regime claro, conciso, puro e preciso. por isso mesmo, o forense é violento por si só:  representa uma invasão definitiva e decisiva à base de palavras quase inevitáveis.

É impossível rejeitar uma palavra estrangeiro; quando vem denominando um objeto novo, uma invenção, uma idéia.  Neste caso, o recomendável é aportuguesar a palavra, como temos feitos com boné, turismo, uísque, Nova Iorque, etc.

o estrangeirismo que persiste sendo falado também é eficaz e tão essencial, quase inevitável, que não pode ser substituído. dizem que não dá para traduzir a palavra “saudades”.  nem a palavra “capenga”, e nem “gambiarra”.

não é o caso de eu me sentir à vontade aqui por achar o brasil um país capenga, mas talvez seja por eu não ter que essencializar ou traduzir o que eu tenho de capenga. talvez seja que minha vontade venha por eu sentir uma permissividade de ser uma figura capenga por aqui.  talvez eu estaria meio torto em qualquer lugar, mas é bom saber que o que eu mais tenho de capenga seriam justamente meus estrangeirismos:  meu sotaque, modo de andar, uma certa falta de esperteza (ou talvez de malandragem).

sou gambiarrista, ou de repente gambiarreiro, e diariamente capenga. (o capenga forense seria tanto o protocolo de prorrogação do meu visto de estudante quanto as minhas constantes tentativas de convencer novos conhecidos que eu sou de brasília, ou do acre). o estrangeirismo sempre será uma gambiarra, uma identidade bricolada que, na falta de uma ferramenta mais oficialmente estruturada e capaz, serve para juntar línguas, pensamentos identitários e ritmos de se conduzir no mundo.

(eu soube por facebook que a melhor tradução entre 2 línguas é o beijo. e de fato, não me lembro de alguma vez ter gostado de um beijo forense.)

A crase representa essa construção:

    a – preposição – palavra invariável

    a – artigo feminino – palavra invariável

a crase se encontra quase presa, pré-determinada pela construção de relações entre palavras invariáveis.

a crase só consegue fugir desta inevitabilidade através do estrangeirismo, que nem no próprio nome do Edmundo Dantès Nascimento.

ou seja, a crase só se liberta da preposição A, só consegue atingir diretamente quando sai das determinações invariáveis para se jogar em colocações minimamente exóticas e potencialmente capengas.

(ou seja, o capenga propõe sempre alguma saída.)

Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento: revisão Ana Maria de Noronha Nascimento. 10 ed. atual e ampl., 7a tiragem. São Paulo:Saraiva, 1999.  p. 3, 15, 32, 113.

 vocabpol em 26052016 escrita, livro, oficina, trans, transformação, verbete

Excesso

// por Cristina Ribas

São muitas anotações. São anotações que vão caindo pelas bordas do papel. Dos papéis colados na parede. Das ideias que se repetem, e que só na repetição com conjunções temporais tomam consistência. Aprendem umas com as outras, as ideias, e vão me avisando desse eu constituído entre elas. Processual, incompleto, excessivo. Esse eu constituído entre elas nem é um eu, é um intento de mergulho no excesso, no puro excesso que as concatena, as ideias, os eventos, as anotações. Intento intensivo. Sentido.

Produzimos por excesso. Por um fluxo aberto, ar-atmosférico, que vai elencando e anotando e sobrepondo e repetindo. E diferindo as coisas, o tudo mais, os restos. Vida é coisa em excesso, vida é coisa que só existe por meio de um excesso.

Não excesso como coisa secretada, expelida do aperto de outra coisa, estruturada. Não tanto resto, como em Jean Baudrillard, quando fala de um resto secretado por uma máquina (*). Sobre o excesso, que ele chama de resto, ele diz: “É sobre esse resto que a máquina social se relança e encontra uma nova energia.” Entre o excesso que eu quero falar o resto de Baudrillard pode não haver, portanto, muito desencontro.

Mas e que restos são esses? Perseguidos pela máquina social, produtiva? Na dinâmica que persegue as sobras, as minorias, a pequena gente, a mulher a parir (depois de espremida no saguão do hospital, provavelmente, ela tem que voltar  a trabalhar num curtíssimo espaço de tempo), os restos seriam também aquilo tudo que pode ser novamente quantificado e reformatado na ordem de uma normalidade. Baudrillard de novo: “o resíduo pode ser à dimensão total do real. Quando um sistema absorveu tudo, quando se adicionou tudo, quando não resta nada, a soma toda reverte para o resto e torna-se resto.”  Mas pode ser que hoje já nem haja mais resto, diz ele, “pelo fato de se estar em toda a parte.”

Nesse sentido o resto se torna o próprio excesso. O resto pode então reverter. (Reversibilidade que faz rir, diz ele.) E o excesso, assim como esse outro resto, pode ser que se faça na lógica da produção desejante, de um produzir que não pode passar pelo medir. Da efetuação de um desejo, de um produzir que se faz ele mesmo pelo desejo desmedido. O excesso é então aquela parte sempre acometida de um não, de um escape. De já se foi.

O excesso é assim acometido de outros sim. O excesso é assim autonomização pura da ficção, artificialidade pura, coisa secreta ela mesma (por si própria, para si própria), nem deixa rastros? Natureza pura do movimento, natureza pura de um fazer. Gozo incessante, manutenção do gozo, testosterona, cheiro de gente.

O excesso talvez não tenha estrutura, e tudo e qualquer coisa que se faça seja só coisa expressa pelos excessos. Excessos contudo disponíveis às neuroses, às medidas, às apropriações, fazendo que o mundo seja puro excesso, ao mesmo tempo que seja o mundo puro excesso medido, regulamentado, registrado, cortado, apropriado.

O excesso duvida da determinação que vem de fora, fazendo dela coisa cabisbaixa. Do que fazemos sabe o excesso de uma certa soberania, mas também de uma extrema vulgaridade. O excesso que deriva parece nos cercar. Ou será que somos, na verdade, feitos vulgares do excesso?

Há uma incongruência em arriscar dizer que há excessos improdutivos, visto que só há excessos produtivos, que são eles mesmos a coisa toda a fazer virar a atenção. A sintetização do excesso é nada mais que a natureza do controle, fazendo do controle uma estratégia estúpida que vem para codificar ou trilhar o que está se movimentando. Mas é que para mostrar o excesso, sem que sejamos engolidos por ele, precisamos do fragmento. Me parece que fragmentos produtivos são aqueles que carregam a intensidade do excesso em si, sem começo, e sem fim. Excesso como puro meio.

O excesso é, então, uma espécie de sublime, um sem bordas,
espaçoso, meio em descontrole, ao mesmo tempo pura ficção, e natureza pura

(*) Jean Baudrillard, “O resto”, Em Simulacros e simulação (1981) Lisboa: Antropos

Etnoempoderamento

// por Jeferson Andrade

etno-  
(grego  éthnos,  -eos,  grupo  de  pessoas  que  vive  em  conjunto,  povo)
elemento de composição
Exprime  a  noção  de  povo  ou  de  etnia  (ex.:  etnodesenvolvimento).

Empoderar
Significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. (1)

Durante o processo de convivência na residência Capecete, no bairro da glória, onde diversos termos foram colados a prova, num redemoinho de exercício semântico para a criação de um “vocabulário político para processos estéticos”. È claro que em situações como essas nada é simplesmente, do almoço até a ultima palavra pronunciada, nós devoramo-nos uns aos outros numa espécie de fagia coletiva. E como alimentar tem capacidades de empoderar, seja o corpo ou a mente, o que me deixava mais interessado era como empoderar a postura? Quais elementos tornam a existência uma potencialidade?
Uma caminhada inicial no complexo de favelas da Maré me trouxe alguns pontos importantes sobre uma analise das potencialidades. Numa conversa despretensiosa com o Sr. Olympio no centro comunitário do Parque Maré. Entre palavra perdidas e olhares distantes, entendi que a memória senil e fragmentada possui características especificas para a indicação da produção de desejo, o que coloca o Sr. Olympio não somente no lugar da velhice, mas da desmemoria como fronteira. Sentado sobre uma cadeira de rodas, um rosto enrugado, sem alguns dentes, ele me conta sobre muitas vidas em paralelo às minhas perguntas sobre a intervenção militar na Maré. Seu sonhos com viagens longas, a lugares desérticos. Num outro ponto eqüidistante vejo uma placa:

(imagem 1)

A fim de produzir uma metodologia para uma pesquisa sobre as subjetividades em situação de poesia, desenvolvi por meio de rolés pessoais, uma estrutura para experimentação do diário  de campo ampliado, propondo uma análise fragmentada por epifanias da minha desmemória. É importante imaginar o texto a seguir como um percurso, onde coexistem diversos personagens que cruzam os meus caminhos pela cidade, através de um destrinchamento analítico de dados adquiridos nos rolés para evidenciar a proposta de etnoemporamento como equação não linear  de causa e efeito de uma endociência .
Rachaduras e Sabotagens
Deitei na cama estreita, meu quarto é simples, só uma cama e um criado-mudo. Sempre achei interessante conviver com a decadência. No meu quarto existem duas rachaduras, uma bem no centro que já esta se expandindo para mostrar melhor o osso do teto. É meio circular, vai se apoderando como uma mancha. A segunda é fina e sinuosa, serpenteia pelo espaço quase invisível.
Rachaduras são feitas por trepidações, desgaste natural da estrutura. Aparecem na primeira camada como linhas, protuberâncias, como um corpo que envelhece e se cansa. Daí a primeira camada que é só massa e tinta começam a sair, dando lugar ao osso (cimento). Como de costume, a qualquer sinal de decadência, os donos do lugar iniciam uma reforma.
Trepidar significa pequeno abalo, como a terra que está sempre em constante movimento, o que torna possível a existência da poeira, é em seu conteúdo vestígios de um ruir das estruturas. Rachaduras vão aumentando com o tempo, pois acumulam tempo.
No meu quarto as rachaduras vivem, expandem-se. Eu cultivo-as  para que todos possam entender a não-reforma,  a relação às vezes triste do fim reflexivo da estrutura.
(imagem2)
O Fracassado
Eu fracasso todos os dias
Fracasso como amigo
Fracasso como amante
Fracasso militante
Como nação

Eu desejei o melhor que podia haver em mim
Mas ninguém ira chorar pela minha vértebra
Fracassei como ícone.
Fracassei como torcida.
Os meus gritos aqui fracassam.

Outro dia perdi algumas pessoas.
Fracassei com elas.
Seja pelo meu intento, seja pela minha frustração.
É difícil desejar no outro tudo aquilo que dói em você

O fracassado é orgulhoso,
Luta pelo outro fracassado.
Caminha delirante consumindo felicidade na lata.
Bate no outro fracassado, querendo bater em si.
Sabotador natural, sempre auxilia no fracasso.
Para que vencer? Para que trabalho?
No fracasso o avanço esta no que desejo e não no que devo.

O fracasso tem um papel importante a cumprir.
Fracasso no texto que não rima que não encanta.
Fracasso como política de auto-reconhecimento.
No trópicos o fracasso nos une.
(imagem3)
Devir passarinho
A aproximação com os povos ditos índios não pareceu muito difícil, todos estão num momento de unir forças, seja de que lado for. Houve relatos muito fortes sobre a perseguição indígena pelos ruralistas. Há também um esforço político para a conquista da juventude e um chamado para os ancestrais perdidos no mundo urbano. O aprendiz de Pajé Ache, criou um curso, chamado Cosmologia da Floresta, que envolve um reconhecimento simbólico da fogueira como lugar central da discussão política e historia oral. Há muitos rituais com falas e discussão política da terra ancestral, junto ao que Ache chama de beijo do beija-flor, que são pequenas doses de ayáwaskha (1) e em alguns momentos cheirar o rapé para ajudar na limpeza.
As cenas eram incríveis, pois no meio da discussão alguns vomitavam e se sentiam bem com isso, pois se assemelhava a vomitar toda porcaria ideológica ocidental na qual estamos imersos. Ache acredita que só haverá mudança no trato com a população indígena através de trocas interculturais com auxilio da atitude performática para ritualizar a política e torná-la parte de nossa existência.
Agora, de fato, com essas experiências, tenho a idéia mais clara de como pensar a estrada como um trato à terra ancestral, criar com o que temos uma conexão tribalizante. Ritualizar por uma nova política.
(imagem4)
Praças e encruzas
(imagem5)

(2) DG -1
Hoje o dia acordou cinza, fui pego por uma angústia que eu nem mesmo sabia identificar. Mas como não se angustiar pelo vazio que existe entre eu e a vítima. Nunca gostei da noção de vítima ou vitimização, os pretos também têm direito ao erro, à preguiça, à raiva. Digo como preto e suburbano, daqueles que vivem na beira entre o abismo e o Brasil, para aqueles que possam entender que em toda alma de um negro existe um pouco de desterro. O exílio para além dos golpes, sobrevivendo à vertigem colonial de um povo que nunca desembarcou. A deriva negra, tão solitária e triste, sem língua, sem voz, corpo transeunte de uso expropriado, alimenta um sonho ancestral. A condição negra, a condição favelada, negar o outro para negar a sim mesmo. Cordeiros de Nanã, descendente de homens livres, de sorrisos sinceros, um princípio de esperança no deserto.
(imagem)
Banana Mon Amour
Todos são problemas histórico. A questão social deve ser levar em consideração manobras econômicas e sociais, mas racismo parte de um problema de etnocentrismo. O que seria dos povos outros se o ocidente tivesse acolhido a subjetividade como princípio de existência? É uma pergunta que não chega a ser uma utopia, mas um posicionamento crítico para pensar novas formas de lidar com o mundo. O Mundo não tem um problema de evolucionismo, mas sim de imagem. Ninguém estuda de fato Darwinismo, mas se conforta com imagens abstratas de ancestrais primatas, seqüenciados pedagogicamente num linha evolutiva que nunca existiu. Como o equívoco dos Índios serem Indianos e Negros, expõe-se um elo perdido da humanidade branca.
Alicerces de um ponto de vista míope de homens cansados de si mesmos pela descoberta do outro. Alterações de um ego cada vez maior, cada vez mais só. Pensamos num tempo linear, cronometramos nossa vida, fazemos aniversário numa contagem sempre apocalíptica.
A única política vigente para as humanidades de alteridade é uma participação econômica numa cosmologia capitalista de produtos de consumo cada vez mais contaminados pelo cinismo escravocrata de países que lutam por um lugar na economia mundial, transformando os degredados desmemoriados dos trópicos numa fábrica de auto-eliminação. Operações absurdas de planejamentos celulares de campos de extermínio, construção de perímetros não abolidos, venda de uma liberdade de existência falseada pela participação infantilizada, militarização de corpos livres, banana eu como com aveia e mel, muito mel!
(imagem)
“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus.”
(Oswald de Andrade)
Notas
(1)    Fonte http://www.dicionarioinformal.com.br
(2)    DG era um ator e cantor morador do complexo Pavão-Pavãozinho. Ele foi torturado e assassinado por policiais da UPP do Pavão Pavãozinho nos dias em que estávamos reunidos no projeto do Vocabulinário. “DG – 1” dialoga com as camisetas de futebol que foram produzidas pelos diversos movimentos do #NãovaiterCopa.
(3) ayáwaskha: ‘cipó do morto’ ou ‘cipó do espírito’; de aya, ‘morto, defunto, espírito’, e waska, ‘cipó’; também chamada hoasca, daime, iagê ou mariri. Fonte: Wikipedia
 

 

Cavalo

Diagrama do Cavalo

 

cavalo_novo diagrama azul

 

Cavalgar em La Borde

// Félix Guattari

 

(…)

Nessa mesma via de compreensão polifônica e heterogenética da subjetividade, encontramos o exame de aspectos etológicos e ecológicos. Daniel Stern, em The Impersonal World of the Infant, explorou notavelmente as formações subjetivas pré-verbais da criança. Ele mostra que não se trata absolutamente de “fases”, no sentido freudiano, mas de níveis de subjetivação que se manterão paralelos ao longo da vida. Renuncia, assim, ao caráter superestimado da psicogênese dos complexos freudianos e que foram apresentados como “universais” estruturais da subjetividade. Por outro lado, valoriza o catáter trans-subjetivo, desde o início, das experiências precoces da criança, que não dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. Uma dialética entre os “afetos partilháveis” e os “afetos não-partilháveis estrutura, assim, as fases emergentes da subjetividade. Subjetividade em estado nascente que não cessamos de encontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento amoroso…

A ecologia social e a ecologia mental encontraram lugares de exploração privilegiados nas experiências de Psicoterapia Institucional. Penso evidentemente na Clínica de La Borde, onde trabalho há muito tempo, e onde tudo foi preparado para que os doentes psicóticos vivam em um clima de atividade e de responsabilidade, não apenas com  objetivo de desenvolver um ambiente de comunicação, mas também para criar instâncias locais de subjetivação coletiva. Não se trata simplesmente, portanto, de uma remodelagem da subjetividade dos pacientes, tal cmo preexistia à crise psicótica, mas de uma produção sui generis. Por exemplo, certos doentes psicóticos de origem agrícola, de meio pobre, serão levados a praticar artes plásticas, teatro, vídeo, música, etc quando esses eram antes Universos que lhes escapavam completamente.

Em contrapartida, burocratas e intelectuais se sentirão atraídos por um trabalho material, na cozinha, no jardim, na cerâmica, no clube hípico. O que importa aqui não é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão, é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas (des //dobramento / s ), que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar.

Assim se operam transplantes de transferência que não procedem a partir de dimensões “já existentes” da subjetividade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que procedem de uma criação  e que, por esse motivo, seriam antes da alçada de uma espécie de paradigma estético. Criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas da palheta que lhe dispõe. Em um tal contexto, percebe-se que os componentes os mais heterogêneos podem concorrer para a evolução positiva de um doente: as relações com o espaço arquitetônico, as relações econômicas, a co-gestão entre o doente e os responsáveis pelos diferentes vetores de tratamento, a apreensão de todas as ocasiões de abertura para o exterior, a exploração processual das “singularidades” dos acontecimentos, enfim tudo aquilo que pode contribuir para a criação de uma relação autêntica com o outro. A cada um desses componentes da instituição de tratamento corresponde uma prática necessária. Em outros termos, não se está mais diante de uma subjetividade dada como um em si, mas face a processos de autonomização, ou de autopoiese, em um sentido um pouco desviado do que Francisco Varela dá a esse termo.

(…)

Fonte: Felix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2006. (p. 16-18)

O título “Cavalgar em La Borde” foi atribuído por Cristina Ribas.

 

Antolhos

// Félix Guattari

 

“ […]  coloquem em uma área fechada cavalos com antolhos reguláveis: o coeficiente de transversalidade será justamente o ajuste dos antolhos. Imagina-se que se forem ajustados de modo a tornar os cavalos completamente cegos, se produzirá um certo encontro traumático. À medida que se for abrindo os antolhos, pode-se imaginar que a circulação se realize de modo mais harmonioso. […] de maneira que os homens se comportem uns em relação aos outros do ponto de vista afetivo.”
Félix Guattari , “ Transversalidade”, em Revolução Molecular, 1981, p. 96. Citado por Ricardo Basbaum em “Em torno do ‘vírus de grupo’”, artigo publicado na revista Lugar Comum 30, Rio de Janeiro, Universidade Nômade e UFRJ, 2012.

 

a foto 2  passarela mare_film grain

A autora da foto não pediu autorização para fotografar.
Passarela 7, Avenida Brasil, entre Maré e Bonsucesso, Rio de Janeiro, Abril de 2014.
Foto: Cristina Ribas

 

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Ato Unificado “Copa pra quem?”, organizado pelo Comitê Popular da Copa, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e a Articulação dos Povos Indígenas (APIB) Brasília, 27 de maio de 2014.
Foto: Mídia Ninja

 

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Ju saltando (Juliana Dorneles).

 

Poema do Cavalo

// Daniela Mattos

 

com força cavalar e gentil
o olhar do cavalo
bebe o ar e o faz atravessar fluxos
come e mastiga, senta na língua o que irá digerir com todo o corpo
lambe os fragmentos que seu desejo lhe mostra, transforma-os fazendo esfarelar
na boca

 vocabpol em 21122014 conversa, criação, diagrama, oficina

Forense Capenga

// por Raphi Soifer

pensando o capenga forensicamente (em voz alta e sotaqueada)

(conversa entre Raphi Soifer e Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento)

A linguagem socializa e racionaliza o pensamento.

o que é capenga é pensado e socialmente inserido, mas não consegue se racionalizar. o capenga age sobre o pensamento de uma maneira um pouco torta; desracionaliza, enselvagereia.

A linguagem literária tem 4 qualidades essenciais:

concisão
clareza
precisão
pureza

o capenga não sabe lidar precisa ou puramente, não busca clareza e nem concisão; na real, nem sabe que devia estar buscando. mesmo assim, é efetivo, acaba funcionando (mais ou menos). mas ele não apenas funciona, ele existe, se enuncia na própria falta dessas qualidades essenciais, se mostrando possível.

o capenga sabe mais: sabe que toda qualidade que se diz essencial é capenga por si só, guarda algo torto na sua base, no cerne da sua proposta de ser definitiva. uma tortura, porque articular uma linguagem que se diz forense requer excluir tantas outras cuja efetividade reside no afeto, requer expulsar tantas gírias queridas e acertações poéticas tidas como erradas. se a língua forense racionaliza, o capenga sente. e toca, e atinge.

O verbo ATINGIR é transitivo direto, isto é, rege objeto direto – sem a preposição A – no sentido físico de “tocar”, “chegar a”, “alcançar”, ou noutro de “compreender”, “perceber”, “dizer a respeito”.

se é que exista uma linguagem forense para explicar o capenga, ela é a gambiarra que consegue atingir o pensamento sem se socializar, sem exatidão, mas sempre funcionando. e aqui sou eu na maior gambiarrice, atingindo a cidade sem clareza nem concisão e sem a preposição A. eu mergulho estrangeiristicamente no rio de janeiro. eu me situo por aqui, funciono, alcance com um toque capenga.

voltando de uma primavera fria na gringolândia de onde venho, atinjo o rio de janeiro com toda a força do meu estrangeirismo. alguns dias depois, a polícia “pacificadora” do morro dos macacos consegue atingir um menino de 8 anos com uma bala na cabeça. mesmo acostumado com esse tipo de notícia (algumas semanas antes, logo depois de invadir a maré, militares mataram uma criança de 4 anos e uma avó de 67 em poucos dias) sinto-me mais pessoalmente atingido pelo acontecimento no morro dos macacos. conheço algumas crianças de lá, que descem de vez em quanto para jogar capoeira com o grupo onde eu treino (capengamente e sem nenhum equilíbrio). não sei responder, não faço nada diretamente sobre o acontecimento além de escrever algumas poucas linhas que não mostro para ninguém.

a violência também é capenga, mas nem por isso deixa de ser eficaz. o forense responde tentando enquadrar a violência dentro de um regime claro, conciso, puro e preciso. por isso mesmo, o forense é violento por si só: representa uma invasão definitiva e decisiva à base de palavras quase inevitáveis.

É impossível rejeitar uma palavra estrangeiro; quando vem denominando um objeto novo, uma invenção, uma idéia. Neste caso, o recomendável é aportuguesar a palavra, como temos feitos com boné, turismo, uísque, Nova Iorque, etc.

o estrangeirismo que persiste sendo falado também é eficaz e tão essencial, quase inevitável, que não pode ser substituído. dizem que não dá para traduzir a palavra “saudades”. nem a palavra “capenga”, e nem “gambiarra”.

não é o caso de eu me sentir à vontade aqui por achar o brasil um país capenga, mas talvez seja por eu não ter que essencializar ou traduzir o que eu tenho de capenga. talvez seja que minha vontade venha por eu sentir uma permissividade de ser uma figura capenga por aqui. talvez eu estaria meio torto em qualquer lugar, mas é bom saber que o que eu mais tenho de capenga seriam justamente meus estrangeirismos: meu sotaque, modo de andar, uma certa falta de esperteza (ou talvez de malandragem).

sou gambiarrista, ou de repente gambiarreiro, e diariamente capenga. (o capenga forense seria tanto o protocolo de prorrogação do meu visto de estudante quanto as minhas constantes tentativas de convencer novos conhecidos que eu sou de brasília, ou do acre). o estrangeirismo sempre será uma gambiarra, uma identidade bricolada que, na falta de uma ferramenta mais oficialmente estruturada e capaz, serve para juntar línguas, pensamentos identitários e ritmos de se conduzir no mundo.

(eu soube por facebook que a melhor tradução entre 2 línguas é o beijo. e de fato, não me lembro de alguma vez ter gostado de um beijo forense.)

A crase representa essa construção:

a – preposição – palavra invariável

a – artigo feminino – palavra invariável

a crase se encontra quase presa, pré-determinada pela construção de relações entre palavras invariáveis.

a crase só consegue fugir desta inevitabilidade através do estrangeirismo, que nem no próprio nome do Edmundo Dantès Nascimento.

ou seja, a crase só se liberta da preposição A, só consegue atingir diretamente quando sai das determinações invariáveis para se jogar em colocações minimamente exóticas e potencialmente capengas.

(ou seja, o capenga propõe sempre alguma saída.)

Referência:

Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento: revisão Ana Maria de Noronha Nascimento. 10 ed. atual e ampl., 7a tiragem. São Paulo:Saraiva, 1999. p. 3, 15, 32, 113.

 vocabpol em 09122014 conversa, entradas, gesto, oficina

Humor

// por Geo Abreu

Dentro do processo das chamadas “Jornadas de junho” acontecidas desde junho de 2013, brotou das ruas, como escape lírico à truculência da polícia o humor, numa mistura de sagacidade com a criação de fatos mais estranhos que a ficção.

A memética dos acontecimentos acumulou uma produção de fôlego cujos locais de desague inicial tenham sido facebook/tumblr/twitter, transpondo conteúdos políticos por meio de piadas curtas, com núcleos que se transformam e perpetuam (as memes), multiplicando-se à medida que o afastamento do caso gerador não prejudique o entendimento da piada, de tal forma que seu uso se expanda e seja incorporado na linguagem cotidiana das redes sociais.

A criação das memes (sim, neste texto memes são entes femininos, porque férteis) partiam da curadoria de episódios exemplares com a intenção de assinalar o descabimento da inversão de valores, como num dos mais famosos casos, a depredação de uma loja da rede de roupas Toulon, cujos manequins foram vandalizados pela população. Fato que a midia corporativa transformou num quadro de horror, rídiculo e doloroso, quando ao entrevistar o dono da rede, este se pôs a chorar pelos bonecos e sua perda inestimável. A partir deste vídeo, a roda memética se pôs a girar e a inteligência coletiva produziu algumas respostas correlatas: uma missa de sétimo dia pela morte dos manequins; um prêmio pelas performances em protestos, cujos símbolos/estatuetas eram os ditos bonecos, e no rastro disso, uma intimação formal para que o jornalista/humorista/ativista Rafael Puetter/Rafucko prestasse esclarecimentos sobre a acusação de furto de um destes objetos.

O próprio termo “vandalizar” passou por uma transformação nestes dias, ampliando seu raio de uso e englobando não só as atitudes irresponsáveis de alguns cidadãos com “a coisa pública”, mas também as irresponsabilidades da classe política e da polícia no trato com os manifestantes, e o próprio discurso oficial criado neste contexto para legitimar a violência e a criação de verdades.

A partir de determinado momento, com a lei antiterrorismo em vias de efetivação e o terrorismo de estado crescente, provocando o esvaziamento das ruas, o humor criou soluções para manter o movimento e escapar da repressão. O casamento de dona baratinha é um deses casos: quando manifestantes apareceram para protestar durante o casamento da filha de um dos maiores empresários do ramo dos transportes no Rio de Janeiro, atrapalhando a festa e dando nomes a um dos agentes envolvidos na crise dos 0,20 centavos, o aumento nas passagens de ônibus que deu início às jornadas de protestos.

Daí à criação de coletivos de artivistas, tanto envolvidos com a trasmissão ao vivo dos protestos (Rio Na Rua, Mídia Ninja) quanto de intervenção urbana (Projetação, Vinhetando), quanto de criação de intervenções não violentas (Atelier de Dissidências Criativas), várias ações tomaram corpo e a cidade foi se organizando, transformando um movimento acusado de confuso e sem pautas definidas em um laboratório vivo de criação ferramentas sutis, cujas forças estejam no momento concentradas num esforço coletivo anti-copa. Forças que se expressam através de frases projetadas em muros, carimbos em notas de dinheiro, hackeamento de álbum de figurinhas, atos cujos traços são difíceis de rastrear e culpabilizar, espalhando a mensagem de descontentamento, conquistando mais e mais pessoas que estavam dispersas dentro da crise de representatividade política, bem como talentos obscurecidos no limbo do precariado cognitivo, e afirmando que aqui, nas cidades, “dois papos não se cria e nem faz história”.

 

Carnavandalirismo

// por Isabel Ferreira

O Carnaval faz dos nossos corpos território político.

Carnavandalirismo na rua é a política explodindo sua audácia imaginativa. Com seu feitiço socioerótico coletivo, o carnavandalirismo traz entusiasmo aos movimentos rebeldes, transborda as mentes, os corpos e os espaços da arte, e os leva às ruas.

No Carnavandalirismo, a ironia e o humor substituem a testosterona desestruturando a hipermasculinidade das táticas de confronto tradicionais. O corpo, a música e a dança se convertem, desta maneira, em ferramentas poderosas de desarticulação da violência policial e midiática.

O Carnaval de resistência surge do movimento fluido que pensa e atua em redes e que leva a criatividade e o prazer para à política. Rejeita as hierarquias sociais, a divisão entre atores e espectadores, confunde os gêneros, insiste na participação total e no seu caos criativo imprevisível e nos enfrenta com tudo aquilo que a sociedade de bem precisa controlar.

O Carnavandalirismo ocupa às ruas porque o rebolado é nosso e a cidade também!

Nota:
Carnavandalirismo é um projeto que parte do Atelier de Dissidências Criativas.

QUE É O ATELIER DE DISSIDÊNCIAS CRIATIVAS?
É um espaço para a criação de materiais diversos para o ativismo criativo: material gráfico, sonoro, vídeo, contra-publicitário, traquitanas, máquinas, roupas, performances, etc.
Todas as quinta- feiras, na CASA NUVEM(**) um espaço coletivo, para experimentar, praticar e espalhar o tesão de fazer e pensar política. Lugar de convergência, de troca de ideias, de mistura de cada um de nós, e dos vários coletivos artivistas e movimentos sociais da cidade. Experimentar um arte que REAL-liza, que busca a criação de realidades concretas, que constrói no aqui e no agora, que se alimenta e alimenta os movimentos sociais, que propõe outros tipos de dissidência fugindo dos clássicos rituais de protesto.

(*) Referência do texto: Tomando notas al caminar (sobre como romper el corazón al Imperio) John Jordan (2005), uma tradução muito livre de um extrato do texto Notes Whilst Walking on “How to Break the Heart of the Empire”. Texto disponível aqui .
(**) A Casa Nuvem está localizada na Lapa, no Rio de Janeiro.

 

 

 vocabpol em 06122014 entradas, oficina

Infraestrutura

// por Cristina Ribas ((parêntesis de Barbara Lito))

“Estamos dispostos a fazer algo pelas futuras gerações? Então resolvamos nossa dor infantil e coloquemos nosso corpo a disposição dos que são crianças hoje.” Laura Gutman

INFRAESTRUTURA

{ Maternidade / paternidade / economia do cuidado / trabalho }

A maternidade desacelera o mundo. Ensina ele que só há uma economia: a economia do cuidado.

Acordo num dia sem saber, que horas são? A contagem é do estômago pequeno daquele serzinho iluminado que ao lado me diz, tenho fome, ou é que foi perturbada por um sonho de monstro, de coruja noturna como já me disse uma vez. A hora é também equação: contagem das horas de sono, se é hora de acordar mesmo, ou se é hora de ficar, fazer estender o sono, aumentar a preguiça cair em sonho novamente. Acordar, posso tentar só eu, posso, preciso trabalhar (aquele tanto de coisas acumulado, a demanda constante), e arrisco 20 minutos nessa manhã silenciosa, quase segredo, só minha. 20 minutos às vezes me dão tempo para entrar, de novo, na trama do irresolvível (do que foi deixado na noite anterior, arquivos abertos, anotações esparsas). Ela acorda logo depois de mim, vem caminhando pessoa pequena, choraminga, mama no peito. Estamos juntas, colo e chamego. A contagem da hora enquanto olho para ela segue projetiva, planejando o dia por vir. Dia de quê? Dia de trabalho, dia de creche, dia de entrar na linha do tempo de fora, de um tempo grande e irresponsável com a nossa temporalidade pequena. I n t e r r o m p e r . Arriscar cortar e acelerar esse tempo da pessoa pequena, que não sabe das razões, e as quais lhe explico. É hora disso, de creche e de trabalho, de meias e de roupas, qual é o clima lá fora, de fazer caber o que se precisa na mochila, de conferir as coisas todas na bolsa, se há bilhete da creche, é fraldas que pedem. Preparar o café, alimentar, conversas, rimos juntas, nem sempre dá tempo. Não estamos sós, o pai está junto, dividimos tarefas, criamos um sistema. Temos, afinal, nossa estratégia (temos?). As manhãs são organizadas num tempo conciso, e tempo de despedida: deixo-a no portãozinho de sua sala catterpillar, abandonada saio eu para meu playground da vida adulta, vida essa a ser reinventada.

Eu sou daquelas que se permitiu estranhar ao máximo na gravidez, deslocar e ouvir as sensações de um corpo hormonoturbinado, hipersexualizado, e ao mesmo tempo que sensível e frágil, forte e mutante… E me permiti continuar, da maneira como a própria biologia do corpo continua, um estado de mutabilidade que se estende após parir, percebendo incorporar-se em todo espaço atmosférico da casa a mudança molecular da chegada de uma nova pessoa. Como é que o mundo a recebe? Eu e seu pai acendemos a atenção extrema na sua dimensão pequena, na sua delicadeza e imprevisibilidade, uma atenção que é sobretudo i n t u i ç ã o. Com isso adentramos também a comunidade-de-todas-as-cores de pais e mães que se constitui ao nosso redor, e da qual passamos a ser como membros natos, aprendizes e consultores de amigos que vão entrando naquela mesma sensibilidade do mundo, eles também tiveram bebê. Na dimensão pequena e misteriosa, silenciosa e sem linguagem (são grunidos) daquele corpo e realidade pequenos, de potência molecular, o que vai ficando estranho, mesmo, são as relações de um “mundo adulto”. Contrastam as tarefas, as responsabilidades (?), os compromissos, os conteúdos. Saltam aos olhos os sistemas de valoracão, comunicação e significação que criamos. Com a chegada de uma filha, de um filho, o mundo que reproduzimos nos percalços da vida como naturalidade primeira (ainda que cada um na sua cartografia particular), é subitamente freado, cortado, interrompido.

((… Essa semana que entra o Davi faz 38 semanas. Já tem o mesmo TEMPO do lado de fora que passou do lado de dentro. A questão do tempo é muito doida, porque eu não sinto que desacelerou… Eu me sinto teletransportada mesmo pra uma outra temporalidade, específica dessa nossa díade. Claro que a Hannah já ta maiorzinha, e a gente acaba tendo que fazer um rehab pra voltar pro tempo da vida da onde a gente foi radicalmente arrancada quando nasce a cria. Mas tenho a impressão de que nunca vou conseguir voltar com o CORPO todo…))

Algumas questões, dúvidas e enfrentamentos aparecem. Algumas que assumimos, e outras que não assumimos (para si ou para os outros ao nosso redor). A direção de nossos movimentos no mundo anda tão concentrada nos fazeres do trabalho que viver com a filha e cuidá-la contrasta imediatamente com o que quer que tenhamos hoje por trabalho, visto que, num crescente, o trabalho se mistura ao tempo da vida. Trabalho imaterial, trabalho precário. Quando digo “trabalho” digo uma mistura de trabalho com militância, um tipo de produtividade que toma conta dos nossos dias, noites, afetos, emoções, e que gera renda, mas que muitas vezes também não gera renda. Quando falamos em trabalho hoje em dia necessariamente falamos em precariedade, visto que o emprego formal está em franca derrocada, e muitas vezes os contratos temporários, na verdade, se fazem valer da não regulação trabalhista, sem a garantia de muitos direitos, ou seja, na precariedade. Então aqui devemos levar em conta – para equacionar com os pensamentos sobre c u i d a d o que seguem no texto – sob quais condições trabalhamos, se somos auto empregados, se temos emprego, se somos bem remunerados, se esperamos um aumento, se tememos a demissão, se criamos uma instituição!

Quero embarcar aqui brevemente em duas questões ligadas a trabalho x cuidado. A primeira questão a perda da autonomia do tempo, ou de um tipo de tempo (tempo produtivo?), e a politização do trabalho doméstico; a segunda a perda da certeza, de algumas convicções em relação ao que se faz (relacionadas mais ou menos à noção de trabalho, militância, etc). No final faço um ensejo de como podemos pensar no cuidado dos adultos eles mesmos, aqueles que tiveram filhos, e como pensar na participação dessa assuntação nos nossos vocabulários cotidianos, e na reprodução de nós mesmos, de nós mesmos mais ou menos como movimento.
A perda do tempo, ou a ideia de…

Embarcando na primeira questão: a dúvida se coloca assim: se tomar conta da filha toma meu tempo, como não opor a filha ao trabalho (aquilo que eu faço para ganhar dinheiro) visto que preciso seguir trabalhando? Essa oposição é simples demais, contudo, sobretudo porque ela separa em duas dinâmicas o trabalho e a vida com a filha. A inversão dessa oposição é exatamente a raiz da mudança… Visto que o tempo do cuidado da filha pode ser intensivamente lento, prazeiroso e imprevisível, posso pensar então que o tempo, no cuidado, é mais de ordem subjetiva. ( ( É porque o tempo é lento que essa entrada-vocábulo s a i demasiado devagar? ) ) E o tempo da produtividade do trabalho seria aquele que eu posso controlar? Mais objetivo? Será? Ou doutra maneira, da produção do tempo. Ou seja, o tempo atomizado da criança sempre vai contrastar e empurrar a ideia de produtividade requerida pelo tempo do capital, tempo esse que por sua vez, ao requerer uma implicação da vida num tempo produtivo, ele mesmo atomizado, por sua vez, com a precariedade das condições de trabalho e pelas novas condições do trabalho imaterial que se torna toda uma questão de tempos descontínuos em cooperações virtuais. Cruzamentos… Ramificações… Desvios… Impossibilidades?

((… Nem sei se eu vou ter TEMPO de te responder como eu gostaria. Acabei de conseguir colocar o tourinho pra dormir (depois de 1h e 30), que agora resiste resiste, quer ganhar o mundo. Uma das primeiras impressões que tive foi que o Davi era um marcador temporal implacável, trazendo ele pra esse tempo cotidiano capitalista. Mas ele relativiza esse tempo o tempo todo, porque simultaneamente me leva pra eras e eras ancestrais (primitivas, genealógicas, genéticas…) e de salto eu já estou no futuro. Nesse primeiro ano, me pego vendo fotos antigas dos meus avós, tios, pais, minhas e de meus primos, e vejo o quanto de vida a nossa linhagem já caminhou, até chega no Davi, que carrega com ele coisas deles (e dos bisos, tataravós, etc) que eu desconheço. E pisco, ele já está com 8 meses, engatinhando, ontem mesmo tava com cólica, chorando… E começo a sentir nostalgia dele como tá agora. Agora sinto saudade dele como tá agora, porque não é possível frear esse tempo com ele, que às vezes passa arrastado, mas é implacavelmente veloz, que é próprio do espaço de maternar. Centrífugo e centrípeto. Tempo de átimo e não de cronos…))
… E o trabalho doméstico

Essa questão do tempo traz consigo outra: a possibilidade de que uma remuneração – o fragmentário e temporalizado salário-maternidade, o salário social ou renda mínima, ou a bolsa família por exemplo – seja o reconhecimento da função social do cuidar, o que se chama mundialmente de “trabalho doméstico.”A remuneração é um aspecto político da economia do cuidado, imprescindível numa realidade contemporânea em que o cuidado ainda não tem o espaço devido junto aos fluxos econômicos da sociedade.

Essa remuneração não dá conta, contudo, e talvez nunca vai dar, de aquietar a questão da percepção e da produção do tempo no cuidado. Me refiro aqui não tanto ao cuidado como profissão, o trabalho feito pelos cuidadores, mas à percepção do cuidado como ocupação primeira dos pais e mães, nas relações familais. Será que receber algum tipo de remuneração (uma licença maternidade, por exemplo) acomoda de alguma maneira, por um tempo, o conflito que uma mãe e um pai podem passar, ao liberar seu tempo (de trabalho) para a rotina de intuição e cuidado?

Observando o aspecto subjetivo do tempo do cuidado, cada mãe e cada pai tem que encontrar a maneira suave como a passagem de um a outro se dá (do cuidado ao trabalho), a transição de cuidadores primários de seus filhos para (voltarem a ser) trabalhadores num mercado (ainda que precário) de trabalho. Há diferenças nessas temporalidades, e elas dependem também da situação econômica de cada configuração familiar.

(( … (pausa pra dar de mamar) Toda vez que eu tô acoplada no Davi, ou ele em mim, especialmente quando fico com o corpo ali e a cabeça nas trocentas outras coisas do tempo cronológico ordinário, eu escuto a voz que ele ainda não tem me dizendo: “vem mamãe, se entrega aqui comigo, olha como é gostoso e quentinho aqui, fica aqui, aqui e agora.” … Voltei a pensar no corpo. Nessa temporalidade outra da existência infante que em três meses cronológicos tem um corpo que dobra de tamanho (nunca mais nosso corpo passa por isso, olha só a Alice aí). Não é à toa que esse momento é muito aflitivo para as recém paridas, ainda com vestígios da temporalidade ordinária nesse corpo materno ainda deformado. Esse: “vem pro átimo que eu quero mamar, mamar e crescer, mamar sem pensar no amanhã, no ontem, ai que delícia”. … E esse discurso patriarcal, que separa a temporalidade trazida pela criança do corpo da mãe e do mundo ordinário, de onde ele vem? porque? pra que serve? … (Ai, tenho que fazer a mochila do Davi pra sair, tomar banho, separar a comida, etc) … ))

Então há a licença maternidade, e quando há, o trabalho doméstico remunerado regulamentados diferentemente em cada país (ou ausentes, no caso do segundo, no Brasil), e há tambem o trabalho “de rua”, o trabalho como instrumento/ferramenta de sociabilidade e participação em redes, relações, contratos, vínculos…

Mundialmente o cuidado é atividade relegada às mulheres, na grande maioria dos casos. Seja o cuidado dentro de relações parentais ou o cuidado como trabalho (cuidadores, enfermeiros, professoras, cuidadoras de crianças…). (Lá em casa é um pouco diferente…, ou seja viemos construindo uma relação em que o cuidar é tarefa amorosa de ambos, pai e mãe, mas isso é outro parêntese.)

O cuidado, a criação dos filhos, foi politizada enquanto trabalho por lutas feministas que apontaram: se o capitalismo se beneficia desse cuidado, dessa procriação e consequente criação, visto que eles serão também “força-trabalho”, o cuidado das filhas e dos filhos é também trabalho, porém não remunerado! Das lutas feministas por uma valoração social do cuidado surgem as demandas por uma remuneração direta, estatal e por benefícios por se ter filhos, e ponto. Aqui gostaria de separar o benefício da licença maternidade (depende no Brasil de contribuições já feitas à previdência social) por um (projeto de) salário social (não deveria depender de contribuições já feitas, *) ou ainda do benefício por filho. Na Inglaterra por exemplo o benefício por filho se chama “child care credit”, e pode ser recebido até 18 anos de idade. O benefício se destina à provisão de bens que a criança demande na sua pequena existência, até sua puberdade e adolescência, comida, fraldas, roupas, remédios, lazeres, …

No Brasil o Bolsa Família foi criado com o objetivo de beneficiar famílias abaixo do nível de pobreza e em nível de pobreza, cuja renda familiar não ultrapasse os R$ 154,00 por pessoa, provendo recursos mínimos para garantir a alimentação dessas famílias. (**) A contrapartida é que todas as crianças da família em idade escolar devam estar matriculadas e frequentando escola, recebam vacinação, tenham acompanhamento médico até 7 anos de idade, não trabalhem, e no caso de grávidas que façam acompanhamento pré-natal.

Ainda que uma perspectiva feminista não seja muito conferida nos benefícios do Bolsa Família, acredito que o programa deva ser compreendido também na perspectiva da luta das mulheres (e dos cuidadores), visto que é um benefício que incrementa a renda da família para cuidar dos seus filhos. Segundo pesquisas recentes, o programa tem caráter emancipatório para muitas delas, que se sentem encorajadas a se libertarem da trama familiar, quando poderiam estar presas em relações que já não querem (muitas mulheres se divorciam, por exemplo), e são estimuladas a cuidarem mais de si. Ou seja, nos casos em que o homem representa a fonte de renda financeira primária, o incremento do Bolsa Família encoraja as mulheres a tomarem o rumo de suas vidas, quando antes poderiam depender da confusa relação amorosa misturada à dependência econômica. (***) Em outras situações, em que o homem já não está mais em casa complementando renda (porque muitos se separam e vivem sozinhos, sem a responsabilidade de cuidar das filhos e dos filhos) as mulheres também são beneficiadas pelo recurso, mas o valor do benefício não remunera, de nenhuma maneira, o tempo do cuidado dedicado por elas no crescimento dos filhos, visto que é um valor extremamente baixo, e não configura uma renda mínima.

A maternidade nos seus começos, é assistida, para aquelas que tem emprego formal, por uma curta licença maternidade de quatro meses. (O pai tem licença de uma semana!) Esse seria o tempo para cuidar de nossos filhos, sem trabalhar, e preparar-se para a dolorosa transição de terceirizar o cuidado! Os quatro meses, por sua vez, não fecham com os seis meses de amamentação exclusiva recomendados pelo Ministério da Saúde. O que não faz muito sentido… Mas muitas mulheres conseguem negociar isso com seus empregadores, e ficam mais tempo em casa. Mas muitas, muitas mudam de planos… E colocam em questão o modelo anterior de trabalho que tinham.

((… Fiquei pensando também na questão do corpo nesse jogo, que é o espaço onde ele é jogado. Logo que a gente começou a passar os perrengues de cólica (acho que bem antes até, quando tava contraindo, antes de parir, e tive que ficar de repouso) eu me liguei que a dor trazia o corpo pra esse agora infinito. Lembrei da Laura Gutman nesse livro “Amor o dominación, los estragos del patriarcado”. … Não sei bem se o trabalho não está englobado numa estratégia maior de dominação dos corpos, que evita mesmo o contato intimo entre pais e filhos (e velhos moribundos, e doentes, e loucos). Evita a presença deles no espaço cotidiano. Segrega. Fico pensando naquelas imagens antigas, algumas até recentes, das mães trabalhando com seus filhos pendurados, de boa, lavando, colhendo, plantando, aboiando… Acho que o corpo desvitalizado e congelado, moldado para um trabalho cada vez mais estático (no corpo, não na cabeça) é incompatível com a potência de vida de uma criança. Taí as milhões de vistas da galinha pintadinha comemorando não sei quantas crianças quietinhas. (****) O trabalho estático no corpo, mas não na mente, também é incompatível com essa temporalidade átmica da criança, sem passado nem futuro. pra gente é muito dfícil morar nesse eterno agora. … ))

Ora, sabemos que a falta de benefício para o cuidado ou a precária remuneração é reflexo de uma série de modos culturais arraigados e naturalizados, que se baseiam na divisão dos tipos de trabalho que homens e mulheres fazem (e o salários diferentes que recebem), na crença da naturalidade do cuidado como coisa feminina. Esse ponto é um dos mais importantes para as lutas pela legalização do aborto, visto que socialmente o cuidado é entendido como uma continuidade inquestionável do ato de gestar e parir. Quantas de nós já abortaram ou evitaram ter filhos pelo temor de não conseguir conciliar o cuidado com o trabalho? Pelo medo de não conseguir ou por não conseguir mesmo ter condições financeiras de cuidar de uma criança? Por temer reproduzir a sociedade machista enquanto tal em que o cuidado está relegado determinantemente às mulheres, e que portanto deixa a mulher em condições de trabalho menos favoráveis? Aliás: quantos abortos mal sucedidos são necessários para mudar as condições sociais do abortar? Para legalizar o aborto?

Silvia Federici, feminista italiana conta como as feministas dos anos 70 apreenderam que compreender o “trabalho reprodutivo” no regime da exploração (o capitalismo acumula também em cima disso) permitiu o reconhecimento de uma luta comum das mulheres:

“Uma vez vimos que ao invés de reproduzir vida nós estávamos expandindo a acumulação capitalista e começamos a definir trabalho reprodutivo como trabalho para o capital, nós também abrimos a possibilidade de um processo de recomposição entre as mulheres.” (*****)

O cuidado reconhecido como um trabalho, como uma ocupação que serve à sua maneira à complexidade de um sistema de produção/reprodução, acaba se tornando o t e r r e n o d e l u t a , usando as palavras de Federici, e esse terreno de luta se estende às vidas daqueles que cuidamos.

Ela pergunta: como lutar sem entrar em conflito com aqueles que amamos? (Falarei disso mais adiante.)

A perda do sentido. Havia um antes?

A outra coisa que pega que é: faz sentido? Fazer as coisas da maneira como se fazia?

Desde o começo eu resisti em não colocar a filha de um lado (a vida com ela, o cuidado), e o trabalho. Isso quer dizer que quando eu pensava em trabalho eu pensava em algum tipo de movimento, de fazer, que, menos do que pudesse incluí-la, pudesse se fazer c o m ela. Ou seja, em que ela estivesse presente, conferindo sentido àquilo. Mas não sabia bem o que nem como… Organizar uma residência-projeto para artistas-etc com filhos? Talvez…

É claro que quando se começa a questionar isso, se está questionando o que é que entendemos por trabalho e com o que é que nos comprometemos em um mundo capitalista-produtivista em que cada vez mais o produzir toma espaço. Então arrisco uma definição que expressa, na verdade, a raiz precária da minha experiência de trabalho: qualquer atividade que traga remuneração, não necessariamente que se tenha como profissão, que construa um comprometimento com algo que é ligado ao que se compreende como trabalho em si, mas que se conecta numa linhagem de ações e regularidades, que mantém aceso um certo vínculo, seja com as instituições com as quais nos associamos, as parcerias, a participação na atualidadede de um debate, os discursos e posições que adotamos. Pois bem, na mudança de sentido das coisas, é essa ideia de r e g u l a r i d a d e que se quebra quando um filho ou filha nasce (ou mais de um!). Essa é definitivamente uma quebra no sentido de um fazer que poderia estar muitas vezes automatizado, tecnicizado, dessubjetivado. Vou deixar umas perguntas soltas, sobre o sentido do trabalho: para quem e para o quê eu trabalhava? fazia? me mexia antes?; ou com que velocidade, com que dedicação, com que efetividade, com quanto de mim?…

A noção de continuidade é quebrada pois a temporalidade do filho é caoticamente outra, e isso reflete os sentidos que ela ou ele forçosamente vem sacudir. Cada um ou uma de nós percebe isso distintamente, claro. Para quem se conhece de um jeito, a quebra vem destituir uma série de convicções. Acredito que essa quebra acontece porque o que aparece é i n t u i ç ã o como a chave do cuidado. A intuição como um tipo de escuta, um cuidar com, que requer tempo para entender modos e ritmos… Um imensamente-cuidado, essa aproximação-atenção e fusão quase-orgânica e por vezes quase-estrangeira que descobrimos quase-inata em nós, que tiramos da caixola, da cartola, que vestimos quando seguramos a filha no colo, quando sentimos seu cheiro que ativa nossos hormônios mamários. Para outros essa quebra não acontece tão claramente, e a filha ou filho entra mais rapidamente na composição de um mundo mais perto eu diria de um “como era, como eu fazia”. Ou é que aquela zona de atravessamento gravídico eu diria, de intensidades hormonais, dura menos e é enquadrada também na temporalidade da produção. (Ai!) Cada uma de nós vive uma configuração diferente, ora similar, de retorno ao ritmo de trabalho depois de parir.

A filha o filho ao desprogramarem o sentido das coisas, pedindo intuição e cuidado, demandam também o descobrir, o inventar, o brincar, … virar ao avesso, sujar, desfazer, rimar, mimar, molhar, montar, desmontar, destruir… E olhar bem bem de perto. Estressar ou intensificar o tempo do cuidado me parece que é parte da resistência ao nivelamento de nossas ações num tempo único e produtivista, é parte da pluralização dos tempos, e da recomposição, ou de uma inclusão, como diz Federici, na luta por uma libertação das amarras do mundo pré-concebido da produtividade do capital do qual as filhas e os filhos não precisam automaticamente fazer parte… Um arco grande, mas vamos lá.

((…E sim, acho que isso tudo tem muito a ver com o cuidado. E acho que trazer tudo isso de volta pro corpo, prum corpo hiperafetado e atravessado pela temporalidade infante é sim revolucionário. A micro-revolução que eu escolhi me engajar. … No Mignolo(******) que eu te mandei, a simples existência infante já é por si só uma desobediência epistêmica radical.))

… uma desobediência epistêmica radical
Individualidade e reprodução do movimento

Voltando ao relato da minha experiência, nos primeiros tempos em que a coisa foi pegando, em que já não podia procrastinar o fato de que estava na hora de trabalhar (de recuperar algo dessas linhas de continuidade, de vínculo, que nunca se perderam, mas que definitivamente se enfraqueceram, era hora de fazer dinheiro) eu produzia uma espécie de estresse incontrolável. O estresse vinha de tentar evitar a sensação de negar, por não poder estar com a filha por ter que trabalhar, como se eu tivesse negando ela mesma… O estresse e o sofrimento que surgiu teve que assumir uma individualidade necessária. Afinal, na interrupção de um modo de ser em vias de recomposição nessa transmutação para uma mãe-que-trabalha ficamos pescando sapo, comendo mosca, movendo-se sem saber por onde. Aqui apareceu para mim algo importante: a recomposição da invidualidade faz parte da maternidade/paternidade, visto que não é um abandono da filha, e é o cuidado em si de si, que tampouco é diretamente um “voltar ao que se era” (como eu resisto a essa imagem!).

Exemplo disso: em Londres a artista Andrea Francke transformou, como parte de seu trabalho final de Mestrado, a galeria da faculdade de artes em uma creche. Um espaço aberto portanto aos pais e às crianças. Queria eu que essa creche seguisse disponível, como espaço de pesquisa e de produção, em que potencialmente pudéssemos compartilhar nossas questões maternais? (E materiais!) Preocupação: ainda que radical a proposta, eu não poderia, por exemplo ancorar naquela vivência a produção do que me cabe agora, minha responsabilidade, minha auto-exploração, minha “contribuição ao conhecimento”, meu doutorado. Eles dependem de um certo isolamento, e dessa ressignificação-recomposição em curso.

H a n n a h. Eu só escrevo porque ela está longe de mim, na creche, outro lado da rua (ou ali dormindo, sono bom de criança a crescer). Se escrevo junto com ela escrevo outro texto. Fazemos desenhos e desenhos, bolinhas, pontinhos, perseguimos linhas, e around e around. Se faço carinha, ela já completa com pernas e braços, e boca, se não tiver. E cabelos, como dizcabêêêlo!

Quando escrevo, escrevo junto com ela aqui, como parte da minha realidade, claro. Quero escrever junto com ela, com ela em mim, mas temo que escrevo para o mundo adulto, esse mundo estranho, esse mundo cuja seriedade me faz rir. A filha vem de um hiperíntimo, um hiperjunto, e ajuda a estranhar o mundo, com o qual copulo depois; mundo com o qual me identifico, e que também desejo. Voltando àquela recomposição, percebo que o cuidado, portanto, não é só com a filha, mas com a mãe e o pai nessa nova passagem de mundo, com o mundo que se recompõe. Da mãe se fala bastante da depressão pós-parto, esse mistério que não está nas calçadas, que é calcado aos espaços íntimos, e ao indizível, visto que se torna indecifrável se não assumimos a dimensão mágica e espiritual da maternidade. Mas e depois, como cuidamos uns dos outros, pais, mães, crianças? Seguimos… A economia do cuidado na luz do dia se torna um diagrama a puxar linhas e linhas de subjetivação, friccionando superfícies de singularidade, abrindo companheirismos num comum (aquela comunidade imprevisível de pais e mães, e avós, e tios, e cuidadores, claro).

A gravidez, assim como a maternidade e a paternidade são, afinal, coisas ordinárias. O comum, por sua vez, não pode ser o comum só-dos-que-tem-filho. Como informar, como passar, como recompor o mundo dos-que-tem-filho com o mundo dos-que-não-tem? Será que é dessa maneira que o problema se coloca? Ou é mais como fala Federici, uma capacidade de colocar em linhas de libertação e composição social um modo de reprodução social (todo movimento precisa encontrar a maneira de se reproduzir, diz ela). Politizar a maternidade e a paternidade, nesse sentido, é um trabalho vocabular, depende de muita conversa, depende de muita troca. Depende de abrir frentes com o mundos alheios vizinhos, as outras forma de copular e de familiar, de lesbicar, de transversalizar e de multiplicar. Depende de fazer cuidar, de fazer pensar no cuidar. Mas como? Num estado de mundo em que tudo se acelera, não sei se é possível não se posicionar e dizer, olha, a temporalidade aqui é outra. E não só tempo linear (como dito antes, para que não sejamos escravos da produtividade), mas a função ou a significação. A filha muda molecularmente o mundo porque ela está junto também nessa nova forma de ver o mundo, ela é processo estético, estetizante, ela desacelera a produtividade de um por fazer, e repolizita outras urgências. Quando se diz que é tempo de cuidado, é tempo de para endereçar (e soltar) uma produção do mundo. Um chamado a recompor a estética de um mundo (político, sobretudo), do que faz parte fazer/trazer esse texto para cá: vocabular, brincar, vocavulvar, vocavular.

Vou buscá-la no final da tarde na creche. Meu corpo atravessado pelas leituras, pelos mundos que me desvelam e me desconstroem, fica meio desconcertado. Acho que vivemos como pais uma constante reintegração e desintegração da identidade… Na porosidade dos movimentos adultos que me constituem, o movimento de ir buscá-la acopla e desacopla pedaços sem nunca dar tempo de lavar tim tim por tim tim cada anotação feita. O dia faz-se fragmentado. O corpo também. E de alguma maneira essa emoção de tê-la silencia tantos outros atravessamentos! Já não me importo. Descortina-se de novo o mundo adulto… Encontro seu corpo pequeno e aparentemente frágil, ora mais feliz e suado, ora mais saudoso e manhoso. Ela me leva para o buraco do coelho (coisa que encontramos no gramado ao lado do jardim da creche). Enfia o pé no buraco. Eu evito não dizer o que me vem logo à boca: “cuidado com a cabeça do coelho!”, ela, afinal, não teme pisar nele ou numa minhoca. Ali mora a touperia, ela diz. Ela quer ver a toupeira! I wanna see the mole! E sorri.

Vou buscá-la no movimento integratório puzzle like que não consegue complementar uma coisa e outra, mas que vai me encontrando de novo com ela no caminho – eu me encontrando comigo e com ela – , diante de outras crianças, cuidores, pais. A filha puxa um fio terra-coração, e devires, e devires… Quantas das minhas inseguranças, das minhas dúvidas incompletas silenciam não porque perdem o sentido por completo, mas porque ganham outra configuração no cuidado que ela me traz, como parte da suavidade mesma de sua pequena existência?

 

 

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Notas:

(**) O programa Bolsa Família existe no Brasil há dez anos. Hoje em dia cerca de 20,6 bilhões (0,5% do PIB) de reais são pagos a 14,1 milhões de famílias (o Ministério do Desenvolvimento Social estima o benefício direto de cerca de 50 milhões de pessoas).

(***) Entrevista com Walkiria Leão Rego, que publicou um livro junto a Alesandro Pinzani sobre o Bolsa Família (“Vozes do Bolsa família”, 2013)

(****) http://vilamamifera.com/mamiferas/a-galinha-pintadinha-e-a-crianca-quietinha/

(*****) Silvia Federici, Precarious Labor: A Feminist Viewpoint.

(******) Walter D. Mignolo. Desobediência epistêmica. A opção decolonial e o significado da identidade em política.

Referências:

Federici, Silvia. Precarious Labor: A Feminist Viewpoint (2008). Variant e The Journal of Aesthetics and Protest. http://www.variant.org.uk/37_38texts/Variant37.html#L9

Federici, Silvia. Feminism And the Politics of the Commons. (2010) The Commoner.org

Hirata, Helena; Laborie, Françoise; le Doaré, Hélène; Senotier, Danièle. (org.) Dicionário Crítico do Feminismo. (2009)

La Célula Armada de Putas Histéricas. Primer comunicado de la Célula Armada de Putas Histéricas http://vimeo.com/91641696
https://www.diagonalperiodico.net/andalucia/23274-la-brigada-informacion-como-mortadelo-y-filemon.html

Precarias a La Deriva. A la deriva por los circuitos de la precariedad femenina. (2003) Madrid: Traficantes de Sueños

SOF – Sempreviva Organização Feminista, Cuidado, Trabalho e Autonomia das Mulheres (2010). Cadernos Semprevida.

 

// por Steffania Paola

Justiceiras do Capivari

(Capivari, distrito de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 1998)

 

Priscila  Silva, de 8 anos, desaparece a caminho da escola. Apesar dos apelos  constantes da família para que a polícia procurasse pela criança, nada é  feito. O pai de Priscila resolve então recorrer a Dona Ilda, liderança  comunitária e antiga moradora do bairro.

“Fui  procurar sozinha no mato… nos brejo… no caminho que ela passava pra  vim aqui pra estudar… aí acabei achando ela morta no mato, já  decompondo a menininha pequena, magrinha. Peguei a menina lá no meio do  matagal e trouxe para a rua e aí chamei a polícia pra levar o corpo e  chamei a imprensa toda.”

Priscila foi violentada sexualmente e depois assassinada.

Após  esse caso, Dona Ilda resolve reunir mulheres para capinar ruas e roçar  os matagais próximos ao colégio, acreditando que essas ações poderiam  dificultar a ação de potenciais estupradores. Surge então as chamadas  “Justiceiras do Capivari”, lideradas por Dona Ilda, que depois passou a  ser chamada também de Ilda Furação ou Ilda do Facão, e com a missão de  proteger as mulheres do Capivari dos constantes casos de violência da  região.

Justiçamento contra o opressor/ Justiçamento como estratégia de defesa

Capivari, 1999:

Milene Souza de 8 anos é violentada e morta também a caminho do colégio.
Com  a morte de Milene, o grupo muda a sua forma de ação e reúne mais  mulheres. De 5, o grupo passa a contar com 20 mulheres, e assume uma  postura mais dura. Daquele momento em diante, as Justiceiras passam a  andar armadas com faca, facão, foice, espada e pedaços de pau. Queimam  mato, abrem caminhos e vigiam a região.

“Se  acontece alguma coisa a gente logo aparece. Uma liga pra outra, reúne,  junta tudo, foice, machado, enxada e vai atrás, prende, tortura e até  mata. Eles pergunta se mata eu falo que mata. Só não falo quem e quanto  já matamo. O trabalho das Justiceiras depois foi esse: levar criança pra  escola, limpar o matagal. Agora não que está tudo calmo e a gente não  tá vendo nada porque é férias nos colégio. Mas tá voltando e quando  volta você pode vim aqui e vai ver duas, três mulher nesses mato  limpando mas elas tão mais mesmo é vigiando as criança e vendo se tem  estranho na área.”

A  nova forma de ação, no entanto, funcionava mais como uma estratégia  para intimidar potenciais estupradores e homens que espancavam mulheres,  do que como possibilidade real de uso das armas. Dona Ilda acreditava  que para chamar a atenção tanto do povo da região, quanto da imprensa e do Estado, era necessário criar uma imagem das Justiceiras.

“Se eu apareço normal na imprensa igual você tá me vendo, preta, 1,60 m,  quem vai ligar? Agora armada com a foice e o facão e vestida de roupa  diferente, dá Ibope. […] de verdade no início eu tava revoltada e queria matar mesmo, mas depois que a gente resolveu tudo eu esfriei o sangue e voltei ter a ideia de andar certo para não perder o nosso  direito. De verdade matar… eu não vejo como sujar a mão com sangue de  bandido. Deus fez, Deus leva.”

Do  surgimento do grupo em diante, a região do Capivari sofre mudanças na  sua dinâmica, muitas delas provocadas por Dona Ilda e as Justiceiras. O  número de casos de violência contra a mulher cai substancialmente no  período de atuação do grupo. O delegado da 60º DP, de Campos Elíseos,  revelou que antes de 1998 os casos de violência sexual e assassinatos de  crianças e mulheres em Capivari eram pelos menos dois a cada mês e que  entre 1998 e 2004 os casos baixaram praticamente para zero.

Além  das armas, todas as Justiceiras andavam com lenços cobrindo o rosto,  sendo Dona Ilda a mulher mais conhecida do grupo. Em razão dessa  exposição, ela acaba sofrendo, a princípio sozinha, as consequências do  seu protagonismo.

Com  o crescimento demográfico do Capivari, novas pessoas ocupam o bairro e o  tráfico de drogas começa a atuar na região. Apesar de Dona Ilda manter  uma relação amistosa com os novos ocupantes – “Eu por exemplo não sou  amiga nem inimiga” – a disputa territorial se torna inevitável.

Quando  tentou proteger o que ela chamava de “sua gente inocente” do “envolvimento com as drogas”, e impedir a ação dos traficantes nas ruas  próximas ao colégio, Dona Ilda recebeu sua primeira ameaça de morte,  feita por outra mulher, a traficante Merinália de Oliveira, a “Índia”,  que dominava o tráfico na favela “Vai quem quer”.

Capivari,  fevereiro de 2005:

Maria de Jesus, de 73 anos, desaparecida.
Dona  Ilda sai em busca do seu corpo e o encontra em um matagal. Mais tarde, é  sabido que Maria de Jesus foi morta por um traficante que lhe devia  dinheiro e, ao ser cobrado, ele a matou. O caso é relatado à Polícia e a  partir de então Dona Ilda passa a ser vista  pelo tráfico como  delatora.

Capivari, 9 de março de 2005:

Dona Ilda do Prado Lameu, 58 anos, é assassinada no portão de casa com 5 tiros.

O  grupo das Justiceiras do Capivari se desfaz. Muitas mulheres do grupo e  também parentes de Dona Ilda fogem do Capivari temendo represálias.

*Tomei  conhecimento da história das Justiceiras do Capivari através de uma das  integrantes do coletivo PaguFunk, um grupo autônomo de mulheres  funkeiras que transmite através da cultura funk uma mensagem feminista  sobre o cotidiano das mulheres nas favelas e periferias. Depois iniciei  uma pesquisa pessoal sobre grupos de resistência formados por mulheres.  Nesse processo (em curso) conheci o trabalho do Linderval, pesquisador  que estudou profundamente líderes comunitários e líderes comunitárias da  Baixada Fluminense.

Todas  as falas citadas no meu texto foram retiradas de entrevistas que ele  fez com Dona Ilda e que foram publicadas no artigo abaixo indicado. As  pesquisas de Linderval foram também a principal fonte para a escrita do  meu texto.

Referências:

MONTEIRO, Linderval Augusto. “A trajetória de Ilda do Prado Lameu: dinamismo popular e  cidadania em uma periferia do Rio de Janeiro”. Disponível em: https://e.sarava.org/donailda.
Curta-metragem sobre “As Justiceiras do Capivari”: Disponível em: http://youtu.be/49pUMIPABBY.

PaguFunk: Disponível em: https://soundcloud.com/pagufunk.

 vocabpol em 05122014 entradas, movimento, oficina

Mulheres-violência

//  Juliana Dorneles

Pós Pornô e Feminismo
A pornografia era vista com desconfiança no vocabulário feminista (assim como toda a indústria da prostituição), considerada como signo de sujeição e reiteração da mulher como objeto sexual – única e exclusivamente para o prazer masculino. A mulher mesmo, ficava fora desse gozo.

Além disso, as imagens criam e mantém o imaginário sobre um tipo de comportamento sexual desejável. O apelo erótico do pornô invade nosso imaginário e a imagem pornográfica se conecta e alimenta nosso desejo. Isso é bem grave em se tratando de uma revolução dos costumes, que justamente quer se livrar dos padrões colonizados desse imaginário.

Mas não é negando o pornô que se muda o pornô. É fazendo o pornô que se gosta. Então, pernas abertas para o fluxo sangüíneo das atitudes divertidas.

O pós pornô é uma atitude a partir da constatação da colonização do imaginário sexual pelos padrões da dominação masculina. Se existe uma representação colonizada da sexualidade que não favorece a alegria e o imaginário das mulheres, a alternativa para isso é criar outros imaginários, dar chance de estabelecer outros mundos para a sexualidade, onde as fronteiras entre os gêneros se borram e os papéis clássicos homem/mulher ficam difusos.

Há histórias quentes, inversão dos papéis, cenas de mutilação, sexo hardcore entre mulheres, skirt, crossdressing, sexualidade queer e tantas outras cenas que surgem para encantar, chocar, ou divertir, mirando a invasão da nossa cultura sexual.

Sim, se trata de uma outra cultura sexual, de um desejo esta cada vez mais múltiplo; e cada vez encontrando mais fontes de ampliação onde nem mais os órgãos genitais são uma fronteira. Gozar pode ser uma experiência mais ampla, pode incluir a natureza, pode incluir um corpo andrógino e machucado, pode incluir carros (J. G. Ballard) ou paisagens sonoras. Tudo é sexo, mais escancarado ou menos, criando suas alianças e derivas em imagens, performances, relacionamentos. Sexualidade como criação artística.

Vertente crítica-criativa; que remete a uma crise da sexualidade normativa; e uma necessidade de encontrar novos corpos e imagens para outros corpos e mundos. Sua violência e virulência, alguns abordam, poderia ser lida como a violência necessária para a escuta daquilo que até então (até a irrupção deste ato estrondoso/performático) não existia no imaginário do mundo. Violência do grito que quebra as taças de cristal. Faz alguma coisa girar. Quebra padrões do imaginário – quebra que nem sempre acontece sem dor.

Violentas são as esperas, as crenças, o condeno no otimismo do triunfo, a prisão no armário fundo do eu.

Uma bofetada é bem mais importante do que dez lições, compreende-se muito mais rápido, sobretudo quando é uma mãozinha macia da mulher que nos dá a lição.

(Severino/Gregório. A Vênus das Peles)

 

Violentas
Este vocábulo poderia ser também poderosas, escandalosas e incômodas.
Palavra de ostentação do poder.
Mas fiquemos com violentas.
Porque existe um escândalo violento do poder. Mesmo nos velados, a portas fechadas, por tras dos muros. Nem sempre as coisas precisam se dar a ver para serem escandalosas. E se a primeira vista qualificar a violência como escandalosa poderia parecer um juízo comum (que ruim que é ser brabo, furioso, violento); veremos como, na operação inversa, este escândalo está diretamente ligado a força da violência.
Existe uma força na violência, uma energia. A que quebra um osso e a que quebra um padrão. O que salva a violência é que ela é um limite, um esgotamento, um desabafo. Tem nela um sem palavras, são atos, manifesto daquilo que é insuportável. E se faz entender assim, na marra. Parece feio ou estranho, machuca. mas é ela lá gritando como Rosalyn no deserto (a personagem de Marylin Monroe no filme “Os Desajustados” -1960- de Arthur Miller).
Sim, falamos dessa violência que irrompe, do incontrolável e incômodo; ao mesmo tempo completamente necessário. Faz alguma coisa mexer, um escândalo da raiva que realiza e expressa, criando uma brecha no espaço-tempo repressor e omisso. É um tipo mulher de poder: a violência uterina, tão sedutora quanto avessa a razão. Escândalo do poder feminino.

Pensemos neste filme e nesta cena específica. São três homens – a possessão masculina (dinheiro, força física, audácia). Violência primária como modo de lidar com o selvagem. E a mulher, corpo todo compaixão e angústia, incômodo. Onde não há mais palavras possíveis, advém o urro das entranhas. Longe, num solo assistido por estes tres homens mortos, Rosalyn lança uma maldição. O grito onde não há mais negociação possível. Elas são todas loucas, diz o mais triste deles. Loucas, furiosas, e poderosas; de palavras ingratas aos concílios e conciliações. Um poder da fúria se emege contra a própria violência, se diria. Um levante das entranhas em estado de miséria, dissecadas pela angústia das restrições (impostas ou auto impostas). Levante da arma do corpo berrante, o insuportável. Que madeixas poderiam ficar no lugar? Se o selvagem da natureza é domesticado e transformado em carne morta de cavalo, aparece uma mulher que instiga a horda masculina pelos instintos (reprodução! Reprodução!) e ganha a cumplicidade dos audaciosos. É o terceiro homem – do tipo que não gosta de ver a carne morta, pois admira seus adversários.
Que forças loucas e sensuais são necessárias para fazer sair o torpor do estabelecido. O incômodo.

É a violência crua e contratual de algumas práticas masoquistas; é a violência cruel do sádico, para colocar algo em movimento. Tudo sempre ligado a uma boa dose de sedução. A crueza é muito mais misteriosamente sedutora; ao contrário da maquiagem, que envaidece o jogo do poder.

A esses cabem os arregaços, de boca aberta, entrante. Mas também na boca fechada, miudeza, não se regram essas partes. Lugares sem senão, pouco acolhedores do consolo do eu. Um desfazer, numa espécie de geração açoitada na carne, violenta, vivificada pelas cicatrizes cravadas no lugar das angústias malvadas, pequenizantes, solícitas por restrição. De pequenices nos enche o pesadelo de restrições. De apavorados imploramos um perdão que já bem sabemos não existe. E por que se insiste?

Violentas são as esperas, as esperanças, as crenças, o otimismo do triunfo, da condenação da prisão no armário escuro do indivíduo. Violento é o sentimento de idiotice. Seja lá por que trevas for. E de noite dormido ia para o colchão de molas soltas que pertencia ao: vovô, papai, mamãe, professor, chefe, proprietário, todos cheios de respeitáveis.

Mas a carne viva não se apequena. Tem nela um corpo do exposto, atuado. Esse sim da fantasia, do se engraçar de um teatro erótico, angustiado, cômico tal como a morte comendo o cu da insensatez.

E lá no longe se viam cinzas, enchamadas, proclamadas de autonomia no céu, visitantes mais próxima de Deus. Vai lá a cinza, anaeróbica, virótica, realidade sem ar. Daí começamos a balbuciar, a boca solta, osso quebrado cambaleante, sem firmeza qualquer, se minhocando, sem se colunar. Matéria de dentes frouxos que morde um suspiro – se vai; gargareja uma canção … oh como fui besta, pra que cantar se o som não se propaga sem ar?

Os afetos de domínio tem queixo duro, mas não há nada que se necessite dominar.

Nunca se precisa de calma, se precisa de volatilidade.

 

// Beatriz Preciado

Nós dizemos revolução

“ (…) Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do abatedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais…”

Acesse o texto completo aqui

 vocabpol em 30112014 entradas, mulheres, oficina, política, trans, transformação

Muro

// Juliana Dorneles

 
O muro é aquela parede de concreto no meio da cidade. Vertical, reto, sólido, alto. Um muro alto não permite que se enxergue o que tem do outro lado. Quando são feitos de madeira se chamam cercas. Se o muro é baixo, muitas pessoas vão sentar nele e ele vai servir como descanso, mas isso não acontece muito, pois a maioria dos muros é bem alto. Acredito que na cidade ninguém gosta de ver gente sentada.
Os muros cercam propriedades ou dividem terras. O muro bloqueia a entrada para algum lugar, ou direciona esta estrada para um ponto específico. É preciso pedir autorização para passar, ou subir/escalar o muro, ou ainda fura-lo para ver o que tem do outro lado. Por isso o muro tem um quê de separatista: fique com suas regras aí desse lado que eu fico com as minhas desse outro. Mas, claro, sempre tem gente que fica em cima do muro.
O muro também serve para proteger propriedades; e tem o lado de dentro da propriedade que pertence aos proprietários; e eles manejam do jeito que quiserem; e tem a parte de fora da propriedade, que é público. Nesta parte de fora acontece todo tipo de coisas, como desenhos, propaganda, cartazes, espera, sexo, projeção, apoio.
O muro então, na parte que cabe o contato com o público, vem sendo usado de maneira livre. O muro é um banner natural da cidade. Muitas pessoas se importam com o que se coloca nos muros, mas o muro mesmo parece bem indiferente a isso. Os muros em geral são bem simpáticos.
O muro é uma transposição muito forte do concreto físico para a ideia abstrata. Sua solidez material marca fisicamente um espaço mental. A ideia da demarcação do espaço se concretiza na instalação de um muro. E a ideia aceita e manifesta o físico e vice versa. E ambos parecem cair juntos também, embora cada um tenha seu tempo. Foi assim que caiu o Muro de Berlim.
A permanência dos muros na nossa cultura é bem simbólica; a altura dele revela o quanto se tem a esconder e/ou temer.

No território dos cavalos de hipismo também existem muros. São feitos de madeira em módulos, imitando um muro sólido verdadeiro. O bom é que é apenas uma imitação; e se o cavalo bate neste obstáculo, ele não sai ferido. É um muro possível de ser transposto por um cavalo. É um muro de brincadeira e, no entanto, um obstáculo a ser levado a sério.
Eis aqui o vídeo de uma amazona batendo o recorde de salto ao Muro em estilo amazona (montada de lado).

competicaohipica

 vocabpol em 28112014 entradas, oficina