Etnoempoderamento

// por Jeferson Andrade

etno-  
(grego  éthnos,  -eos,  grupo  de  pessoas  que  vive  em  conjunto,  povo)
elemento de composição
Exprime  a  noção  de  povo  ou  de  etnia  (ex.:  etnodesenvolvimento).

Empoderar
Significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. (1)

Durante o processo de convivência na residência Capecete, no bairro da glória, onde diversos termos foram colados a prova, num redemoinho de exercício semântico para a criação de um “vocabulário político para processos estéticos”. È claro que em situações como essas nada é simplesmente, do almoço até a ultima palavra pronunciada, nós devoramo-nos uns aos outros numa espécie de fagia coletiva. E como alimentar tem capacidades de empoderar, seja o corpo ou a mente, o que me deixava mais interessado era como empoderar a postura? Quais elementos tornam a existência uma potencialidade?
Uma caminhada inicial no complexo de favelas da Maré me trouxe alguns pontos importantes sobre uma analise das potencialidades. Numa conversa despretensiosa com o Sr. Olympio no centro comunitário do Parque Maré. Entre palavra perdidas e olhares distantes, entendi que a memória senil e fragmentada possui características especificas para a indicação da produção de desejo, o que coloca o Sr. Olympio não somente no lugar da velhice, mas da desmemoria como fronteira. Sentado sobre uma cadeira de rodas, um rosto enrugado, sem alguns dentes, ele me conta sobre muitas vidas em paralelo às minhas perguntas sobre a intervenção militar na Maré. Seu sonhos com viagens longas, a lugares desérticos. Num outro ponto eqüidistante vejo uma placa:

(imagem 1)

A fim de produzir uma metodologia para uma pesquisa sobre as subjetividades em situação de poesia, desenvolvi por meio de rolés pessoais, uma estrutura para experimentação do diário  de campo ampliado, propondo uma análise fragmentada por epifanias da minha desmemória. É importante imaginar o texto a seguir como um percurso, onde coexistem diversos personagens que cruzam os meus caminhos pela cidade, através de um destrinchamento analítico de dados adquiridos nos rolés para evidenciar a proposta de etnoemporamento como equação não linear  de causa e efeito de uma endociência .
Rachaduras e Sabotagens
Deitei na cama estreita, meu quarto é simples, só uma cama e um criado-mudo. Sempre achei interessante conviver com a decadência. No meu quarto existem duas rachaduras, uma bem no centro que já esta se expandindo para mostrar melhor o osso do teto. É meio circular, vai se apoderando como uma mancha. A segunda é fina e sinuosa, serpenteia pelo espaço quase invisível.
Rachaduras são feitas por trepidações, desgaste natural da estrutura. Aparecem na primeira camada como linhas, protuberâncias, como um corpo que envelhece e se cansa. Daí a primeira camada que é só massa e tinta começam a sair, dando lugar ao osso (cimento). Como de costume, a qualquer sinal de decadência, os donos do lugar iniciam uma reforma.
Trepidar significa pequeno abalo, como a terra que está sempre em constante movimento, o que torna possível a existência da poeira, é em seu conteúdo vestígios de um ruir das estruturas. Rachaduras vão aumentando com o tempo, pois acumulam tempo.
No meu quarto as rachaduras vivem, expandem-se. Eu cultivo-as  para que todos possam entender a não-reforma,  a relação às vezes triste do fim reflexivo da estrutura.
(imagem2)
O Fracassado
Eu fracasso todos os dias
Fracasso como amigo
Fracasso como amante
Fracasso militante
Como nação

Eu desejei o melhor que podia haver em mim
Mas ninguém ira chorar pela minha vértebra
Fracassei como ícone.
Fracassei como torcida.
Os meus gritos aqui fracassam.

Outro dia perdi algumas pessoas.
Fracassei com elas.
Seja pelo meu intento, seja pela minha frustração.
É difícil desejar no outro tudo aquilo que dói em você

O fracassado é orgulhoso,
Luta pelo outro fracassado.
Caminha delirante consumindo felicidade na lata.
Bate no outro fracassado, querendo bater em si.
Sabotador natural, sempre auxilia no fracasso.
Para que vencer? Para que trabalho?
No fracasso o avanço esta no que desejo e não no que devo.

O fracasso tem um papel importante a cumprir.
Fracasso no texto que não rima que não encanta.
Fracasso como política de auto-reconhecimento.
No trópicos o fracasso nos une.
(imagem3)
Devir passarinho
A aproximação com os povos ditos índios não pareceu muito difícil, todos estão num momento de unir forças, seja de que lado for. Houve relatos muito fortes sobre a perseguição indígena pelos ruralistas. Há também um esforço político para a conquista da juventude e um chamado para os ancestrais perdidos no mundo urbano. O aprendiz de Pajé Ache, criou um curso, chamado Cosmologia da Floresta, que envolve um reconhecimento simbólico da fogueira como lugar central da discussão política e historia oral. Há muitos rituais com falas e discussão política da terra ancestral, junto ao que Ache chama de beijo do beija-flor, que são pequenas doses de ayáwaskha (1) e em alguns momentos cheirar o rapé para ajudar na limpeza.
As cenas eram incríveis, pois no meio da discussão alguns vomitavam e se sentiam bem com isso, pois se assemelhava a vomitar toda porcaria ideológica ocidental na qual estamos imersos. Ache acredita que só haverá mudança no trato com a população indígena através de trocas interculturais com auxilio da atitude performática para ritualizar a política e torná-la parte de nossa existência.
Agora, de fato, com essas experiências, tenho a idéia mais clara de como pensar a estrada como um trato à terra ancestral, criar com o que temos uma conexão tribalizante. Ritualizar por uma nova política.
(imagem4)
Praças e encruzas
(imagem5)

(2) DG -1
Hoje o dia acordou cinza, fui pego por uma angústia que eu nem mesmo sabia identificar. Mas como não se angustiar pelo vazio que existe entre eu e a vítima. Nunca gostei da noção de vítima ou vitimização, os pretos também têm direito ao erro, à preguiça, à raiva. Digo como preto e suburbano, daqueles que vivem na beira entre o abismo e o Brasil, para aqueles que possam entender que em toda alma de um negro existe um pouco de desterro. O exílio para além dos golpes, sobrevivendo à vertigem colonial de um povo que nunca desembarcou. A deriva negra, tão solitária e triste, sem língua, sem voz, corpo transeunte de uso expropriado, alimenta um sonho ancestral. A condição negra, a condição favelada, negar o outro para negar a sim mesmo. Cordeiros de Nanã, descendente de homens livres, de sorrisos sinceros, um princípio de esperança no deserto.
(imagem)
Banana Mon Amour
Todos são problemas histórico. A questão social deve ser levar em consideração manobras econômicas e sociais, mas racismo parte de um problema de etnocentrismo. O que seria dos povos outros se o ocidente tivesse acolhido a subjetividade como princípio de existência? É uma pergunta que não chega a ser uma utopia, mas um posicionamento crítico para pensar novas formas de lidar com o mundo. O Mundo não tem um problema de evolucionismo, mas sim de imagem. Ninguém estuda de fato Darwinismo, mas se conforta com imagens abstratas de ancestrais primatas, seqüenciados pedagogicamente num linha evolutiva que nunca existiu. Como o equívoco dos Índios serem Indianos e Negros, expõe-se um elo perdido da humanidade branca.
Alicerces de um ponto de vista míope de homens cansados de si mesmos pela descoberta do outro. Alterações de um ego cada vez maior, cada vez mais só. Pensamos num tempo linear, cronometramos nossa vida, fazemos aniversário numa contagem sempre apocalíptica.
A única política vigente para as humanidades de alteridade é uma participação econômica numa cosmologia capitalista de produtos de consumo cada vez mais contaminados pelo cinismo escravocrata de países que lutam por um lugar na economia mundial, transformando os degredados desmemoriados dos trópicos numa fábrica de auto-eliminação. Operações absurdas de planejamentos celulares de campos de extermínio, construção de perímetros não abolidos, venda de uma liberdade de existência falseada pela participação infantilizada, militarização de corpos livres, banana eu como com aveia e mel, muito mel!
(imagem)
“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus.”
(Oswald de Andrade)
Notas
(1)    Fonte http://www.dicionarioinformal.com.br
(2)    DG era um ator e cantor morador do complexo Pavão-Pavãozinho. Ele foi torturado e assassinado por policiais da UPP do Pavão Pavãozinho nos dias em que estávamos reunidos no projeto do Vocabulinário. “DG – 1” dialoga com as camisetas de futebol que foram produzidas pelos diversos movimentos do #NãovaiterCopa.
(3) ayáwaskha: ‘cipó do morto’ ou ‘cipó do espírito’; de aya, ‘morto, defunto, espírito’, e waska, ‘cipó’; também chamada hoasca, daime, iagê ou mariri. Fonte: Wikipedia
 

 

Cavalo

Diagrama do Cavalo

 

cavalo_novo diagrama azul

 

Cavalgar em La Borde

// Félix Guattari

 

(…)

Nessa mesma via de compreensão polifônica e heterogenética da subjetividade, encontramos o exame de aspectos etológicos e ecológicos. Daniel Stern, em The Impersonal World of the Infant, explorou notavelmente as formações subjetivas pré-verbais da criança. Ele mostra que não se trata absolutamente de “fases”, no sentido freudiano, mas de níveis de subjetivação que se manterão paralelos ao longo da vida. Renuncia, assim, ao caráter superestimado da psicogênese dos complexos freudianos e que foram apresentados como “universais” estruturais da subjetividade. Por outro lado, valoriza o catáter trans-subjetivo, desde o início, das experiências precoces da criança, que não dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. Uma dialética entre os “afetos partilháveis” e os “afetos não-partilháveis estrutura, assim, as fases emergentes da subjetividade. Subjetividade em estado nascente que não cessamos de encontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento amoroso…

A ecologia social e a ecologia mental encontraram lugares de exploração privilegiados nas experiências de Psicoterapia Institucional. Penso evidentemente na Clínica de La Borde, onde trabalho há muito tempo, e onde tudo foi preparado para que os doentes psicóticos vivam em um clima de atividade e de responsabilidade, não apenas com  objetivo de desenvolver um ambiente de comunicação, mas também para criar instâncias locais de subjetivação coletiva. Não se trata simplesmente, portanto, de uma remodelagem da subjetividade dos pacientes, tal cmo preexistia à crise psicótica, mas de uma produção sui generis. Por exemplo, certos doentes psicóticos de origem agrícola, de meio pobre, serão levados a praticar artes plásticas, teatro, vídeo, música, etc quando esses eram antes Universos que lhes escapavam completamente.

Em contrapartida, burocratas e intelectuais se sentirão atraídos por um trabalho material, na cozinha, no jardim, na cerâmica, no clube hípico. O que importa aqui não é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão, é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas (des //dobramento / s ), que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar.

Assim se operam transplantes de transferência que não procedem a partir de dimensões “já existentes” da subjetividade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que procedem de uma criação  e que, por esse motivo, seriam antes da alçada de uma espécie de paradigma estético. Criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas da palheta que lhe dispõe. Em um tal contexto, percebe-se que os componentes os mais heterogêneos podem concorrer para a evolução positiva de um doente: as relações com o espaço arquitetônico, as relações econômicas, a co-gestão entre o doente e os responsáveis pelos diferentes vetores de tratamento, a apreensão de todas as ocasiões de abertura para o exterior, a exploração processual das “singularidades” dos acontecimentos, enfim tudo aquilo que pode contribuir para a criação de uma relação autêntica com o outro. A cada um desses componentes da instituição de tratamento corresponde uma prática necessária. Em outros termos, não se está mais diante de uma subjetividade dada como um em si, mas face a processos de autonomização, ou de autopoiese, em um sentido um pouco desviado do que Francisco Varela dá a esse termo.

(…)

Fonte: Felix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2006. (p. 16-18)

O título “Cavalgar em La Borde” foi atribuído por Cristina Ribas.

 

Antolhos

// Félix Guattari

 

“ […]  coloquem em uma área fechada cavalos com antolhos reguláveis: o coeficiente de transversalidade será justamente o ajuste dos antolhos. Imagina-se que se forem ajustados de modo a tornar os cavalos completamente cegos, se produzirá um certo encontro traumático. À medida que se for abrindo os antolhos, pode-se imaginar que a circulação se realize de modo mais harmonioso. […] de maneira que os homens se comportem uns em relação aos outros do ponto de vista afetivo.”
Félix Guattari , “ Transversalidade”, em Revolução Molecular, 1981, p. 96. Citado por Ricardo Basbaum em “Em torno do ‘vírus de grupo’”, artigo publicado na revista Lugar Comum 30, Rio de Janeiro, Universidade Nômade e UFRJ, 2012.

 

a foto 2  passarela mare_film grain

A autora da foto não pediu autorização para fotografar.
Passarela 7, Avenida Brasil, entre Maré e Bonsucesso, Rio de Janeiro, Abril de 2014.
Foto: Cristina Ribas

 

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Ato Unificado “Copa pra quem?”, organizado pelo Comitê Popular da Copa, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e a Articulação dos Povos Indígenas (APIB) Brasília, 27 de maio de 2014.
Foto: Mídia Ninja

 

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Ju saltando (Juliana Dorneles).

 

Poema do Cavalo

// Daniela Mattos

 

com força cavalar e gentil
o olhar do cavalo
bebe o ar e o faz atravessar fluxos
come e mastiga, senta na língua o que irá digerir com todo o corpo
lambe os fragmentos que seu desejo lhe mostra, transforma-os fazendo esfarelar
na boca

 vocabpol em 21122014 conversa, criação, diagrama, oficina

Forense Capenga

// por Raphi Soifer

pensando o capenga forensicamente (em voz alta e sotaqueada)

(conversa entre Raphi Soifer e Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento)

A linguagem socializa e racionaliza o pensamento.

o que é capenga é pensado e socialmente inserido, mas não consegue se racionalizar. o capenga age sobre o pensamento de uma maneira um pouco torta; desracionaliza, enselvagereia.

A linguagem literária tem 4 qualidades essenciais:

concisão
clareza
precisão
pureza

o capenga não sabe lidar precisa ou puramente, não busca clareza e nem concisão; na real, nem sabe que devia estar buscando. mesmo assim, é efetivo, acaba funcionando (mais ou menos). mas ele não apenas funciona, ele existe, se enuncia na própria falta dessas qualidades essenciais, se mostrando possível.

o capenga sabe mais: sabe que toda qualidade que se diz essencial é capenga por si só, guarda algo torto na sua base, no cerne da sua proposta de ser definitiva. uma tortura, porque articular uma linguagem que se diz forense requer excluir tantas outras cuja efetividade reside no afeto, requer expulsar tantas gírias queridas e acertações poéticas tidas como erradas. se a língua forense racionaliza, o capenga sente. e toca, e atinge.

O verbo ATINGIR é transitivo direto, isto é, rege objeto direto – sem a preposição A – no sentido físico de “tocar”, “chegar a”, “alcançar”, ou noutro de “compreender”, “perceber”, “dizer a respeito”.

se é que exista uma linguagem forense para explicar o capenga, ela é a gambiarra que consegue atingir o pensamento sem se socializar, sem exatidão, mas sempre funcionando. e aqui sou eu na maior gambiarrice, atingindo a cidade sem clareza nem concisão e sem a preposição A. eu mergulho estrangeiristicamente no rio de janeiro. eu me situo por aqui, funciono, alcance com um toque capenga.

voltando de uma primavera fria na gringolândia de onde venho, atinjo o rio de janeiro com toda a força do meu estrangeirismo. alguns dias depois, a polícia “pacificadora” do morro dos macacos consegue atingir um menino de 8 anos com uma bala na cabeça. mesmo acostumado com esse tipo de notícia (algumas semanas antes, logo depois de invadir a maré, militares mataram uma criança de 4 anos e uma avó de 67 em poucos dias) sinto-me mais pessoalmente atingido pelo acontecimento no morro dos macacos. conheço algumas crianças de lá, que descem de vez em quanto para jogar capoeira com o grupo onde eu treino (capengamente e sem nenhum equilíbrio). não sei responder, não faço nada diretamente sobre o acontecimento além de escrever algumas poucas linhas que não mostro para ninguém.

a violência também é capenga, mas nem por isso deixa de ser eficaz. o forense responde tentando enquadrar a violência dentro de um regime claro, conciso, puro e preciso. por isso mesmo, o forense é violento por si só: representa uma invasão definitiva e decisiva à base de palavras quase inevitáveis.

É impossível rejeitar uma palavra estrangeiro; quando vem denominando um objeto novo, uma invenção, uma idéia. Neste caso, o recomendável é aportuguesar a palavra, como temos feitos com boné, turismo, uísque, Nova Iorque, etc.

o estrangeirismo que persiste sendo falado também é eficaz e tão essencial, quase inevitável, que não pode ser substituído. dizem que não dá para traduzir a palavra “saudades”. nem a palavra “capenga”, e nem “gambiarra”.

não é o caso de eu me sentir à vontade aqui por achar o brasil um país capenga, mas talvez seja por eu não ter que essencializar ou traduzir o que eu tenho de capenga. talvez seja que minha vontade venha por eu sentir uma permissividade de ser uma figura capenga por aqui. talvez eu estaria meio torto em qualquer lugar, mas é bom saber que o que eu mais tenho de capenga seriam justamente meus estrangeirismos: meu sotaque, modo de andar, uma certa falta de esperteza (ou talvez de malandragem).

sou gambiarrista, ou de repente gambiarreiro, e diariamente capenga. (o capenga forense seria tanto o protocolo de prorrogação do meu visto de estudante quanto as minhas constantes tentativas de convencer novos conhecidos que eu sou de brasília, ou do acre). o estrangeirismo sempre será uma gambiarra, uma identidade bricolada que, na falta de uma ferramenta mais oficialmente estruturada e capaz, serve para juntar línguas, pensamentos identitários e ritmos de se conduzir no mundo.

(eu soube por facebook que a melhor tradução entre 2 línguas é o beijo. e de fato, não me lembro de alguma vez ter gostado de um beijo forense.)

A crase representa essa construção:

a – preposição – palavra invariável

a – artigo feminino – palavra invariável

a crase se encontra quase presa, pré-determinada pela construção de relações entre palavras invariáveis.

a crase só consegue fugir desta inevitabilidade através do estrangeirismo, que nem no próprio nome do Edmundo Dantès Nascimento.

ou seja, a crase só se liberta da preposição A, só consegue atingir diretamente quando sai das determinações invariáveis para se jogar em colocações minimamente exóticas e potencialmente capengas.

(ou seja, o capenga propõe sempre alguma saída.)

Referência:

Linguagem forense: a língua portuguesa aplicada à linguagem do foro de Edmundo Dantès Nascimento: revisão Ana Maria de Noronha Nascimento. 10 ed. atual e ampl., 7a tiragem. São Paulo:Saraiva, 1999. p. 3, 15, 32, 113.

 vocabpol em 09122014 conversa, entradas, gesto, oficina

Vizinhança

pequeno relato de uma experiência de vizinhança.

 

// por Enrico Rocha

O Poço da Draga existe ali, no centro de Fortaleza, pertinho da praia, há mais de 100 anos. Para a maioria da cidade, que não consegue ver suas centenas de casas por detrás de galpões vazios a espera de bons negócios, o Poço quase nem existe, nunca existiu. Para os governos, que nunca lhe concederam nem mesmo o direito de saneamento básico, mesmo localizado em área tão nobre da cidade, ele também não existe ao certo. Para mim, que escolhi como lugar de morada a sua vizinhança, o Poço é um convite, ou uma convocatória, para pensar no sentido de existência.

As pessoas que lá vivem, que são o sentido  principal do que chamamos Poço da Draga, seguem uma ocupação que se deu no momento da construção do primeiro porto de Fortaleza. A pouca profundidade do mar na costa da cidade exigia a ação de dragas para que os navios se aproximassem. Daí o nome. Lá, gente vinda do interior, quase sempre fugindo das ameaças da seca, encontrou trabalho e logo fixou residência próximo à cancela do porto. Aliás, o sobe e desce da cancela deu outro nome ao lugar, Baixa Pau, que é confundido pelo resto da cidade como sinônimo de violência.

De sua origem eu sei pelo que me contam os moradores com quem hoje convivo. O encontro com alguns deles se deu há bastante tempo, em situações que se definem por nossas afinidades eletivas. O convívio de vizinhança é recente e se intensificou quando nos sentimos igualmente ameaçados. É que o governo do estado do Ceará deu início na proximidade do Poço e de minha casa, a uma grande obra, dessas que se acompanham de muita publicidade e fantasia de desenvolvimento. Nossa reação foi enfrentar a ameaça de exclusão que seria consequência do projeto Acquário Ceará e a partir daí passamos a nos encontrar frequentemente, a nos contagiar uns dos outros, a nos comprometer com interesses comuns, a enfrentar os conflitos que se apresentam a partir de nossas diferenças, a tecer relações de confiança.

Não é a primeira vez, e desejo que não seja a última, que eu me envolvo com uma situação de conflito urbano, dessas que nos exigem um posicionamento claro. Entretanto, em meio a essa experiência com o Poço, venho assumindo com mais entusiasmo uma posição que me permite enfrentar minhas próprias condições de existência sem me deixar guiar por falsos conflitos, como opor prazer e trabalho, profissionalismo e cidadania. Ou rimar amor e dor.

O Poço da Draga se apresenta a mim como uma realidade material e concreta que não me é alheia. Levo ao Poço a mesma inquietação que mobiliza em mim um interesse pela produção de arte. É a partir da relação sensível com o mundo e da nossa capacidade de intervir sobre a sua forma, de articular seus sentidos, que me ponho no Poço e compreendo que transformar a matéria do mundo é uma necessidade urgente e cotidiana. No entanto, não há manuais práticos, projetos definidos ou qualquer outro instrumento que oriente a ação. O desafio é constituir uma relação e agir tomando-a como necessária. Um processo contínuo de experimentação e de aprendizado das limitações e potencialidades que essa relação apresenta.

Nesse processo, a transparência é uma exigência, e certo nível de opacidade uma condição que deve ser compreendida. Estou ali com todas as minhas idiossincrasias e sou convocado a responder porquê. Afirmo, então, que desobedeço a ordem imposta pelo modo como a maioria experimenta a cidade e ouso enfrentar uma fronteira com a expectativa de conquistar uma cidade que não se produz pelo medo da violência, mas a partir do desejo e dos encontros. Conviver com o Poço da Draga e me envolver em seus desafios mobiliza-me desejos,  faz-me enfrentar a produção intensiva de neuroses  e seguir acreditando que outro mundo é possível e sua construção é urgente.

“O corpo é de luta e não de perfumaria”.  Esta frase da Hilda Hilst me comoveu desde a primeira leitura. O convívio com o Poço da Draga é, portanto, um convite à luta e à invenção de um sentido para essa palavra. Não se trata de ir ao Poço motivado a promover um modo de existência que busca acomodar-se em lugares pré-definidos, como poderia ser a atuação de um artista profissional interessado em se posicionar no circuito das artes, tão ávido por colaborações; ou a atuação de um político profissional interessado em conquistar eleitores. A luta que se inventa na relação com o Poço é contra o mundo estabelecido, normatizado, incluindo o campo da arte (pretenciosamente sem normas) e o da poítica (pretenciosamente normatizador); incluindo nossas noções de sujeito e de ação. E aqui evitaria qualquer idealização dessa relação e das pessoas que moram no Poço da Draga, pois elas também são parte nesse e desse conflito, luta-se também contra suas/nossas identidades enrijecidas.

No entanto, quando a luta se realiza como tarefa cotidiana, mobilizada em rede, sem comando centralizado, sem doutrina a obedecer, um corpo perfumado é também convocado. O encontro com o Poço da Draga mantém-se fundamentalmente como experiência afetiva. Pois entendo que a disputa de sentido do mundo, de sua forma, pode também se dar em um beijo, como aquele de Adélia: “a vida é tão bonita,/ basta um beijo/ e a delicada engrenagem movimenta-se,/ uma necessidade cósmica nos protege”. Afinal, é sempre um impulso amoroso o que nos move a transformar o mundo.

#lugar

ainda que fossem dimensões separáveis da vida humana, tanto a política quanto a arte se produzem como uma disputa de sentidos para o mundo, ou melhor, como atividades de invenção do mundo. e por mundo, compreendo o lugar onde habitamos. lugar que não só nos abriga, mas que também é constituído por nossos corpos e nossas ideias. lugar onde necessariamente convivemos.

sinta seus pés no chão. olhe ao redor. o mundo está bem aí. todo lugar é matéria e expressão do mundo.

 

**

#Radicais* que atravessam o texto

#vizinhança
a partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode está cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizinhança. diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. bom acreditar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. em qualquer escala.

#com-
conviver, conversar, confiar, comprometer, confabular etc. há diversas ações, fundamentais para a vida comum, que não realizamos sozinhos. as relações de vizinhança são tecidas por ações como essas. é necessário disposição e disponibilidade para conjugar ações com esse pressuposto da existência do outro.

#art-
arte: exercício experimental da liberdade. assim propôs o crítico Mário Pedrosa, em 1970, que compreendêssemos o que fazem os artistas. liberdade é também matéria da política. o mundo transforma-se em uma constante tentativa de superação da natureza em direção à cultura. também nas tentativas de superação de estados de dominação de certas culturas em relação a outras. compreendamos liberdade, então, não como a afirmação da vontade de um indivíduo, mas esse movimento coletivo do homem em busca de sua própria humanidade. e compreendamos arte como o exercício, a atividade, que experimenta e dá formas a esse movimento constituinte do mundo, que coloca o mundo em obra. dos artefatos que produzimos às articulações que promovemos, é sempre o mundo que está em obra.

#trans-
transformação: talvez essa seja a condição formal de nossa existência. uma experiência transitiva. cotidianamente agimos sobre o mundo, incluindo nosso próprio corpo, para que ele se transforme, ainda que nossa ação seja para manter o mundo aparentemente o mesmo. experimente não escovar os dentes ou não varrer a casa ou não coletar o lixo, por exemplo. e pense que outras ações podem ter consequências menos diretas, mas que também são transitivas, transformam uma situação em outra, ainda que seja para manter a aparência, a mesma forma como se dá aos sentidos, a mesma condição de partilha. daí, conclua que há também ações que transformam uma situação em outra provocando diferenças. quero crer que a arte e a política são ações transformadoras nesse sentido da produção de diferenças.

 

*Estes radicais foram escritos por Enrico Rocha. Os #radicais são uma proposta conjunta dos participantes do Vocabulário político para processos estéticos. Eles desejam criar leituras transversais às entradas. Vá para a página dos #radicais para conhecer os demais.

 vocabpol em 21112014 contexto, conversa, entradas, índice, manifestações

vocabulário cruzado

// por Kadija de Paula

vocabulário cruzado pb 2

Resposta: todas as palavras que estiverem ao alcance da sua habilidade de resposta. As palavras estão doentes e só você tem a cura, a plena habilidade de buscar o que pro-cura. Responsabilidade não é nenhuma arte obscura. Responsa é a habilidade de responder ao mundo ao seu redor de forma propositiva e não reativa. Não é uma questão de controle, senão de conduta. Responsa é a não-indiferença para com as suas ações e resultados. Não é uma questão de moral, senão de ética. Assuma, a resposta é toda sua.

 vocabpol em 20112014 atelier, contexto, conversa, diagrama, entradas, escrita, índice

Manifesto Afetivista

// por Brian Holmes

 

No século XX, a arte foi julgada de acordo com o estado existente do meio. O que importava era o tipo de ruptura que fazia, os elementos formais e inesperados que surgiam, a maneira como eram deslocadas as convenções de gênero ou da tradição. A recompensa final do processo de avaliação foi um novo sentido do que a arte podia ser, um novo campo de possibilidades para a estética. Hoje tudo isto mudou definitivamente.

O pano de fundo no qual a arte agora se apresenta é um estado particular da sociedade. O que uma instalação, uma performance, um conceito ou uma imagem mediada podem fazer é marcar uma mudança possível ou real das leis, costumes, medidas, noções de civilidade ou dispositivos técnicos e organizacionais que definem como devemos nos comportar e como podemos nos relacionar com o outro num determinado momento e lugar. O que procuramos na arte é uma maneira diferente de viver, uma oportunidade nova de coexistência.

E como acontece essa oportunidade? A expressão desata o afeto, e o afeto é o que nos move. A presença, a gestualização e a fala transformam a qualidade do contato entre as pessoas, podendo as afastar e/ou unir, e as técnicas expressivas da arte podem multiplicar essa transformações em mil possibilidades, pelos caminhos da mente e dos sentidos. Um evento artístico não necessita um julgamento objetivo. Você sabe que ele aconteceu quando graças ao eco que produz agregamos algo a mais à nossa existência. O ativismo artístico é um afetivismo, ele expande territórios. Esses territórios são ocupados pela partilha de uma dupla diferença: a divisão do eu privado, onde cada pessoa foi anteriormente colocada, e da ordem social que impõe esse tipo particular de privacidade ou privação.

Quando um território de possibilidades emerge ele muda o mapa social , como uma avalanche, uma inundação ou um vulcão fazem na natureza. A maneira mais fácil da sociedade para proteger a sua forma atual de existência é a negação simples, fingindo que a mudança nunca aconteceu: e isto realmente funciona na paisagem das mentalidades. Um território afetivo desaparece se não for elaborado, construído, modulado, diferenciado e prolongado por novas descobertas e conjunções. Não adianta defender esses territórios, e até mesmo acreditar neles é apenas um simples começo. O que eles precisam urgentemente é serem desenvolvidos, com formas, ritmos, invenções, discursos, práticas, estilos, tecnologias – em suma, com os códigos culturais. Um território emergente é apenas tão bom quanto os códigos que o sustentam.

Cada movimento social, cada mudança na geografia do coração e da revolução no equilíbrio dos sentidos precisa de sua estética, sua gramática, sua ciência e sua legalidade. O que significa que cada novo território tem necessidade de artistas, técnicos, intelectuais, universidades. Porém o problema é que os órgãos especializados existentes são fortalezas que se defendem contra outras fortalezas.

O ativismo tem de enfrentar obstáculos reais: a guerra, a pobreza, opressão racial e de classes, fascismo rasteiro, neoliberalismo venenoso . Assim sendo, o que nós enfrentamos não são apenas os soldados com armas, mas também com o capital cognitivo: a sociedade do conhecimento é uma ordem terrivelmente complexa . O mais impressionante do ponto de vista afetivo é a natureza zumbi desta sociedade, seu retorno ao piloto automático, sua governança cibernética.

Uma Sociedade neoliberal é densamente regulada , fortemente sobrecodificada. Uma vez que os sistemas de controle são feitos por disciplinas com acesso estritamente calibrado para outras disciplinas, a origem de qualquer esforço nos campos do conhecimento tem que ser extradisciplinar. Começa fora da hierarquia de disciplinas e se movimenta através dela transversalmente, ganhando estilo, conteúdo, competência e vigor discursivo ao longo do caminho. Crítica extradisciplinar é o processo pelo qual as idéias afetivamente carregadas – ou artes conceituais – se tornam essenciais para a mudança social. É de vital importância manter a ligação entre a idéia infinitamente comunicável e a performance isoladamente incorporada.

A sociedade mundial é o teatro de arte afetivista, o cenário onde ele aparece e o circuito onde se produz significado. E como podemos definir essa sociedade em termos existenciais? Em primeiro lugar, esta claro que uma sociedade globalizada já existe, com as comunicações globais, redes de transporte, sistemas de ensino aferido, tecnologias padronizadas , instalações de consumo franqueadas, finanças internacionais, direito comercial e moda midiática. Essa camada de experiência é extensa, porém fina; só pode reivindicar parte do mundo vivo(ou real) . Para se envolver com arte afetivista, para criticá-la e recria-la, temos que saber não apenas onde os novos territórios de sensibilidade emergem – em que local , em que geografia histórica – mas também em que escala. A existência na sociedade mundial é experimental, ou se torna estética, como um jogo entre escalas.

Em adição ao global, existe uma escala regional ou continental, baseada na agregação de populações em blocos econômicos. Pode se ver isso claramente na Europa, mas também na América do Sul e do Norte, no Oriente Médio e na rede do Leste Asiático.

Não nos enganemos, já existem afetos nesta escala, e movimentos sociais e novas formas de usar o gesto e a linguagem, e muito mais que por vir no futuro. Depois, há a escala nacional, aparentemente familiar, a escala com os conjuntos mais ricos de instituições e os mais profundos legados históricos, onde os teatros da representação em massa são esmagadoramente estabelecidos e afundados em uma fantasmagórica inércia . Mas a escala nacional no século XXI também está em um estado febril de alerta vermelho contínuo, hotwired em excesso e por vezes até mesmo capaz de ressonância com o radicalmente novo. Depois vem a escala territorial, considerada por muito tempo a mais humana: a escala de mobilidades diárias, a cidade, a paisagem rural, onde estão as dimensões arquetípicas da sensibilidade. Esta é a morada de expressão popular, das artes plásticas tradicionais, do espaço público e da natureza tendo uma igual presença com a humanidade: a escala onde a subjetividade primeiro se expande para encontrar o desconhecido.

E assim, finalmente atingimos a escala da intimidade, da pele , dos batimentos cardíacos e sentimentos compartilhados, a escala que vai de famílias e amantes a pessoas juntas em um canto da rua, em uma sauna, uma sala de estar ou um café. Parece que a intimidade é irremediavelmente sobrecarregada em nosso tempo, sobrecarregada com dados e vigilância e sedução, esmagada com a influência determinante de todas as outras escalas. Porém a intimidade ainda é uma força imprevisível, um espaço de gestação, e portanto, uma fonte de gesto, a mola biológica onde os afetos se nutrem. Só nós podemos atravessar todas as escalas, tornando nos “outro” ao longo do caminho. Da cama dos amantes para o abraço selvagem da multidão ao toque alienígena de redes, pode ser que a intimidade e suas expressões artísticas serão o que surpreenderá o século XXI.

 

 

Este texto foi originalmente traduzido por Luciane Briotto para o site/projeto http://www.cpp.panoramafestival.com/

 

 

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