/ por Cristina Ribas
Primeiro
Escrever me alegra. (Suely Rolnik)
Escrever me assusta. Eu diria também, assim como disse Suely que a alegra. E também me alegra, claro. Mas me assusta. Escrever complexifica, expõe, radicaliza, nomadiza linhas de pensamento. Sensação e pensamento. Pensamento e impressão. Expressão. A escrita é assustadora.
Quando digo da escrita, essa que assusta, digo da escrita como ato primário, como tradução humanotécnica, como capacidade de cognição. Como quando desenhava sem desenhar por 40 segundos uma natureza morta (e nem natureza, nem morta) sobre o papel branco, com lápis. Escrever como ato primário é trabalhar numa fidelização das linhas-pensamento, das suas linhas de vôo, do pensamento a nu, da sua diagramática. Escrever é um ato que se descola desse corpo, que provoca uma separação, ou uma tradução. Para uns está mais perto (escrita mais perto da noção de si). Para outros está mais longe (escrita como ato árduo, de algo que não se consolida como prática de si).
É belo também quando Suely Rolnik diz que há uma cartografia. Me refiro ao texto “Pensamento, corpo, devir” (1993). Ela fala da relação entre a escrita e uma cartografia do pensamento, que o pensamento é uma espécie de cartografia conceitual cuja matéria prima são as marcas (aquilo que provoca mudanças na nossa compreensão de si, de um “eu sou assim”, afetado por marcas desviantes de si que trazem o “outro em nós”…) e que funciona como universo de referência dos modos de existência que vamos criando, trazendo figuras de um devir. Ela diz também que é na escrita que o pensamento rende o mais que pode, visto que ela convoca o trabalho do pensamento, e lhe traz maior acuidade e consistência. Ela diz que escrever tem o poder de ampliar a escuta e suas reverberações, pois escrever é traçar um devir. Ao escrever colocamos as marcas em estado de proliferação. É nesse ponto que ela diz: escrever me alegra.
Essa escrita também provoca, ainda que seja desviante, uma consignação, uma conjugação de mundo.
Segundo
A escrita, doutra maneira, está em códigos. Em algoritmos (1). Em data bases. There is a form of writing in each and cada coisa. Uma escrita como codificação. Como segredo. Construída por sistemas, ou construtora de sistemas de escrita. Por trás de cada dígito, um cálculo algorítmico, de combinações, e de números. Essa escrita, essa aqui que se lê, é transcrição pura. Porque existe o escrever em código que permitir escrever em letras. Há uma mecanização ou uma automação da escrita, senão, ela não se faz. Outrossim, de um lado avesso, a escrita é toda uma elipse. Ela esconde e revela, revela assim como essa que se transcreve nos seus olhos: uma complexidade.
A escrita passa pelo legível, e portanto, também ilegível. A escrita impregna pela presença dessa palavra de poder metafísico as tantas suas formas. Há um trabalho de fundo da escrita. Há um trabalho de produção de verdade, como disse, Peter Pál Pélbart: “a verdade da relação, não a relatividade do verdadeiro.” Essa escrita seria aquela que chamo agora de escrita política. Escrita impregnada da construção de uma verdade que sabe da sua temporalidade.
Por isso penso agora numa escrita-streaming, de puro fluxo, de passagem, de pura atualização. Nas escritas feitas pelo agregador digital Agrega Lá (2), nos diversos grupos de midia livre que surgiram, como o Coletivo Mariachi (3), o RionaRua (4) e a Mídia Ninja (5). Há diferença em como cada grupo se organiza, e há processos de apropriação e reapropriação das escritas-streaming também. O streaming, para aqueles que estranham a sua presença aqui na entrada da escrita, é a passagem, como um fluxo aberto, de uma informação-vídeo ou áudio ao vivo pela trama da web… São escritas em formas alogarítmicas, pixeladas ou chiadas, que são feitas a partir de muitos pontos de vista diferentes, que dão vazão aos protestos do Brasil | brasiu | Brazis, multiplicando a sobrecodificação da informação da grande mídia e suas narrativas limitadas. Essas escritas se relacionam diretamente com o movimento, são o movimento ele mesmo, e não uma representação dele, tal como já aconteceu na Praça Tahrir no Egito, no Parque Gezi e na Praça Taksim em Istambul, na Praça do Sol em Madrid.
Algumas escritas se perdem no fluxo ao vivo que as sustenta, outras são recapturadas e constróem ferramentas de proteção, como as muitas câmeras de um mesmo evento que revelam, a nu, que se uma bomba saiu da mão de um homem, ele não era, definitivamente, aquele homem que a justiça ou a polícia acusaram. A forma como a mídia construiu o caso do acidente que teve por consequência a morte de Santiago Andrade, o cinegrafista da Band, levou à prisão de Caio Silva e Fábio Raposo, ainda presos. A Rede Globo trabalhou junto com a Polícia construindo a criminalização de ambos, tentando associar o estouro de um rojão ao então Deputado Estadual Marcelo Freixo e o movimento Black Bloc. O que se provou uma grande farsa, também porque o advogado inicialmente arranjado para os acusados, Jonas Tadeu, era o mesmo advogado de um miliciano da Baixada Fluminense – Natalino Guimarães, preso em 2008. Jonas Tadeu abandonou o caso. #liberdadeparatodosospresospoliticos
A escrita como movimento, que é fluxo puro, é também a escrita que incorpora o #hashtag os encadeamentos da escrita @twitter. São as cartografias reais dos sms cruzando a Espanha e construindo o 15M. São as leituras diagnósticas dos fluxos de informação, sintomatológicas de tomadas de posição sociais, como aquelas visualizadas por softwares e codificadas por Fabio Malini e seus alunos na UFES. (6) Tais escritas-signo de tom ágil e virtual, são escritas muitas vezes dessubjetivadas, que viajam e informam, que sobretudo convocam (essa é sua verdade), convocam subir um assunto, um evento, uma luta, no trend. São escritas políticas de uma verdade absurda, monstruosa. Expostas em chocante escala continental… Significam doutro lado, e voltam ao emissor, e transmitem-se a outros. Escritas que provocam, escritas que informam, escritas que transportam, escritas que se perdem.
(((a Sementeira num carrinho de supermercado))) (((o Rio na Rua e a narração de voz forte da voz da Clara))) ((descrever essa iniciativa)) (((O radio como escrita))) (((O streaming-escrita))) (((a reapropriação da escrita na Midia Ninja))) (((o arquipélago de escritas ))) (((a propriedade das escritas)))
Terceiro
A escrita, de alguma maneira, é a c r e n ç a desse vocabulinário. Escrita que é feita tanto de algoritmos legíveis e de imagens algorítmicas. A escrita é solicitada nesse projeto como processo estético, processo no qual nos envolvemos a codificar nossas ideias, mas não sem repensá-las, sem colocá-las novamente no confronto da experiência. Por isso a escrita aqui é crença de um análise, de uma análise de nossos vocabulários, de nossas posições, de nossas miscigenações.
Tomar a escrita depois de uma semana de conversas num Abril de Rio de Janeiro (((em chamas, e gás lacrimogênio))) é ao mesmo tempo instrumento de memória, mas também de novidade, abrindo o vocabulinário como espaço relacional (com a escrita, com a experiência e com o pensamento, com o leitor por vir), social (não escrevemos sozinhos, ainda que quando escrevemos possamos estar sozinhos), de estranhamento (sem fidelização àquele evento). A escrita que configura o Vocabulário político é como um prolongamento e uma complexificação daquelas conversas, de tudo o que elencamos como importante para constar aqui, nessa publicação sobre o sobre os fluxos entre os processos políticos e os processos estéticos. Quando digo crença, digo crença como aposta, como ferramenta que se coloca na dobra lash registro/legível, e provocadora de efeitos e funções. Efeitos e funções de escrita, efeitos e funções estéticas, efeitos e funções políticas.
Quarto
A escrita tem uma topologia. Ela acontece aqui, registro na superfície desse papel. Ela se dobra num prolongamento, como dito, sem fidelidade (não é essa verdade). A escrita pode ser pensada como uma das topologias, no sentido de provocar lugar (relacionar a lugar, da Inês) e provocar transformação (relacionar a trans), nos vocabulários vivos, nos vocabulários falados e também silenciados. A escrita pode portanto revelar, como forma de topologia privilegiada (porque permanece – como a tinta da ‘caneta arquivística’ que encontrei no Capacete) aquilo que não se disse ou que passou não visto, em dado lugar, em dada situação. A escrita, em seu potencial expressivo, trabalha como uma máquina de expressão. (((Máquina porque não trabalha sozinha, trabalha com outras máquinas.))) Há uma provocação de “agenciamentos coletivos de enunciação”, fazendo falar para além do grupo e para além do isolamento individual. Como agenciamento, a escrita acontece criando partilhas ou estranhamentos (((uma escuta? ou violência?))). A escrita como máquina de expressão, como agenciamento coletivo de enuncição, chama a falar mais alto, solicita um ato de conjugação com o mundo, com os mundos. A escrita, portanto, como coisa que é capaz de provoca devires, disse Suely. Uma escrita fora de si. Afinal é preciso desnaturalizar e desapropriar-se das maneiras do escrever, assim como do ler, para reinventar. E definitivamente escrever mais, e ler mais e mais…
ler mais e mais… ler mais e mais… ler mais e mais… ler mais e mais… ler mais e mais…
((((referência))))
Rolnik, S. “Pensamento, corpo, devir”, 1993
Notas
(1) Algoritmo: combinações ou cálculos numéricos que inscrevem operações funcionais.
(2) Agrega.la http://www.agrega.la. Portal de coletivos de midia, grande parte surgiu no ciclo das manifestações a partir de Junho 2013. A Nova Democracia, Carranca, CMI, Coletivo Mariachi, Comitê Popular, Linha de Frente Audiovisual, Maré Vive, MIC, Ninja, Ocupa Alemão, Ocupa Câmara Rio, Ocupa Copa, Ocupa Rio, Olhar Independente, Projetação, Rio na Rua, Vinhetando, Vírus Planetário,Voz das Ruas.
(3) Coletivo Mariachi https://www.youtube.com/user/coletivomariachi
(4) Rio na Rua. http://rionarua.org/
(5) Midia Ninja. https://ninja.oximity.com/org/NINJA-1
(6) Labic. http://www.labic.net/