// por Rodrigo Nunes
Evento é um conceito-chave da filosofia contemporânea que atravessa, diretamente com este nome ou operativo sob outras formas, a obra de pensadores tão distintos quanto Heidegger, Whitehead, Bachelard, Althusser, Foucault, Deleuze, Simondon, Derrida, Badiou e Rancière – mas que poderíamos fazer remontar ainda mais longe, ao occursus (encontro) de Spinoza, à occasione (ocasião) de Maquiavel ou à plaga e ictus (colisão) de Lucrécio. Sua importância e ubiquidade provém da quantidade de funções que é chamado a cumprir: dar conta da emergência do novo e de sua possibilidade; instituir uma ruptura com a causalidade, a temporalidade e a historicidade lineares; fazer a novidade passar nem do lado do sujeito, nem do lado do objeto, mas ao mesmo tempo entre os dois, constituindo-os; com isso, promover a temporalização do transcendental, que deixa de ser uma estrutura estática para se tornar transformável (e, paradoxalmente, transformável desde o empírico); assegurar o primado da prática sobre o pensamento e a teoria, da formação sobre a forma, da individuação sobre o indivíduo, da contingência sobre a necessidade, num registro, contudo, de impessoalidade: o evento (nos) acontece mais que nós o fazemos acontecer.
Jacques Derrida propôs uma distinção entre “futuro” e “por-vir”: enquanto o primeiro é aquilo que podemos, desde o presente, projetar como esperado ou previsível, o segundo se refere ao inesperado, ao imprevisível, aquilo que chega inopinadamente, que nada nos fazia aguardar ou antever. Num certo sentido, o verdadeiro evento é aquele que cria seus próprios antecedentes. É apenas retrospectivamente, à luz de sua eclosão, que se pode descobrir os sinais que anunciavam sua possibilidade, os materiais dos quais ele seria feito. Mas essa possibilidade só aparece a posteriori, porque o evento, justamente, é uma ruptura, um excesso por sobre a linearidade, por sobre o mecanicismo. Ele nos pega de surpresa, ainda que não venha do nada.
Eventos têm uma estrutura complexa. O mesmo evento acontece em diferentes níveis e, de certa maneira, mais de uma vez; é simultaneamente uma descontinuidade concentrada num ponto e um processo que se desenrola no tempo, um “eventar” contínuo. Para cada evento, haverá várias camadas de causalidade distintas, em escalas temporais diferentes, com maior ou menor extensão e alcance (um conjunto de problemas estruturais de longa data, uma série de frustrações coletivas, um histórico recente de humilhações pessoais…). Mas aqueles que estão sujeitos a estas causas ainda estão, num primeiro momento, operando dentro de um espaço pré-estabelecido de possibilidades que restringe o que é imaginável, as ações que se pode pensar tomar. Algo ferve sob a superfície, mas não encontra escape. De súbito, porém, uma pequena mudança, uma causa nova e talvez aparentemente irrelevante, pode condensar as diferentes camadas causais num só ponto; a partir daí, um limiar virtual foi cruzado. A situação se enche de novos potenciais, há uma mudança de sensibilidade: o estado atual de coisas tornou-se intolerável. De certa maneira, o evento já aconteceu: o que era impensável perde a estranheza, o inimaginável passa a ser concebível, o impossível agora é possível.
Este é o evento como “puro devir”, uma transformação virtual abstraída ou subtraída de estados de coisas atuais. Mas o evento não é apenas puro devir, ele também é um devir alguma outra coisa. À “mutação virtual” do puro devir se segue uma “mutação atualizante”, por meio da qual o deslocamento da sensibilidade vai ganhando forma, vai tomando corpo: novas palavras, atos, condutas, a inscrição atual e perceptível de transformações virtuais e sensíveis. Por meio desta atualização, o evento se comunica, se propaga, agindo sobre o mundo a seu redor de forma a alterá-lo. Pode ser que apenas algumas pessoas tivessem inicialmente cruzado aquele limiar; mas uma vez que esta transformação as tenha tornado alguma outra coisa, a potência transformadora poderá ser comunicada e compartilhada. É assim que o evento, que já acontecera uma primeira vez numa mutação virtual, e uma segunda vez em novas individuações, pode acontecer muito mais vezes à medida em que se propaga.
O evento é o momento em que se registra, de maneira inequívoca, que uma transformação dos corpos, das sensibilidades, das palavras e dos desejos ocorreu. É também por isso que ele gera, naqueles que afeta, um sentimento de transformação irreversível – de que o tempo se divide em um “antes” e um “depois”. Não que tudo mudou, mas que uma coisa mudou, jogando luz nova sobre tudo mais e criando possibilidades antes inexistentes. Dessa forma, o evento gera uma divisão, mais ou menos consciente entre aqueles que estão em sua vizinhança, entre um “nós” e um “eles”: aqueles para quem algo de incontornável se produziu, e aqueles que acreditam que nada mudou, que negam que algo tenha mudado, ou que admitem a mudança, mas buscam confundir ou reprimir o seu significado.