// por Beatriz Lemos
Na semana de encontro do projeto Vocabulário Político para Processos Estéticos fui convidada para realizar uma fala na Casa Daros. A Casa Daros é uma instituição sediada no Rio de Janeiro desde 2007, pertencente à Coleção Daros Latinamerica, com sede na Suíça, que por sua vez pertence à Fundação Daros. (1) A Coleção da Fundação Daros é uma coleção voltada para arte contemporânea na América Latina e que no Rio vem atuando com o foco em programas de arte e educação, seminários e exposições a partir da própria coleção. Apesar do vínculo genealógico da Casa com sua Fundação mãe, parece querer-se omitir este dado, sendo a instituição sediada no Brasil, sempre correspondida apenas à Coleção Daros Latinamerica.
O convite feito pela Casa Daros para que eu participasse de uma conversa tratava-se de uma apresentação sobre a revista Elástica, publicação que edito ao lado dos artistas Thais Medeiros e Rafael Adorján, na ocasião do Seminário Publicações de Arte no Brasil, coordenado pela artista e teórica Katia Maciel. Elástica surgiu em 2010 e se encontra na terceira edição. Sua linha editorial busca o alargamento – elasticidade – dos interesses do meio de artes visuais e propõe diálogos entre diversas áreas a partir de colaborações de artistas e teóricos. É publicada pela editora Multifoco, porém a parceria se restringe a acordo apenas na impressão, sendo a editoração, projeto gráfico e produção por vias independentes e não remuneradas.
O encontro foi inédito no Brasil até então, logrando o atravessamento de iniciativas editoriais independentes, institucionais, comerciais e de artistas, contemplando um panorama nacional histórico e atual. A convergência de datas entre essa fala e o projeto do Vocabulário (acontecendo naquela semana no Capacete) que inicialmente não se apresentava como dificuldade dado à flexibilidade presencial que tais compromissos exigiam, foi crucial para o aprofundamento de questões que vinham me atravessando, mas subtraiu meu foco e presença do processo imersivo pedido pelo Vocabulário.
Isto porque até aquele momento, véspera de minha fala na Casa Daros, eu nada sabia (assim como, acredito que muitos latino-americanos não tenham conhecimento) do envolvimento da Fundação Daros – mais precisamente de seu presidente, o magnata suíço Stephan Schmidheiny -, em grandes desastres ambientais pelo mundo e da origem de sua fortuna familiar fundada em anos de extração e produção de amianto em cerca de 40 países em 4 continentes. Não somente desastres ambientais, como mortes e danos irreversíveis à saúde de milhares de pessoas, desencadearam processos em instâncias internacionais, como o “Juicio de Turin”, mas que devido a lógica financeira de mundo (que privilegia o lucro e não o respeito à vida), são silenciados ou abafados pela grande mídia, principalmente em contextos latino-americanos, onde, não por acaso, a Fundação Daros dedica sua pesquisa educacional. Para completar a rede sistêmica de sarcasmos do capital a mesma família ergue em 1994 a Avina, conhecida fundação de fomento às iniciativas para o meio ambiente, cujo principal objetivo é contribuir para promoção do desenvolvimento sustentável na América Latina. (2)
O seminário de publicações não pretendia nem endereçava trabalhar esta trama do império do amianto diretamente porém, não pude deixar de atentar para os limítrofes pessoais em nossa atuação – seja artista ou curador – e as ligações relacionais que estabelecemos a cada trabalho. O que é inegociável para você? O amianto foi um mineral condenado por seu grau de periculosidade já no final do século 19, sendo esse dado omitido por quase todo século posterior. Segundo pesquisas econômicas é visto como símbolo da modernidade industrial, pois projetou a atual divisão global do trabalho, se tornando um precursor do capitalismo sem fronteiras (ver texto de Guillermo Villamizar: Daros Latinoamericana: memorias de un legado peligroso). (3) Vínculos econômicos questionáveis parecem ser o ponto frágil de muitas instituições de arte e cultura em todo mundo. No Brasil grandes instituições como Inhotim, Itaú Cultural, Museu da Vale e MAR – Museu de Arte do Rio, para citar como exemplos de repercussão, são alvos de críticas e, em alguns casos, de ações ativistas de boicote ou denúncia.
Quando Bartleby, o personagem escrivão do conto do escritor Herman Melville, apenas “prefere não” (dando indício ao fazer determinada função), em 1853, acredito que sintetiza muito do que consiste a dinâmica de trabalho e relações com que lidamos hoje na arte. (4) O “preferiria não” como resposta às encruzilhadas políticas propostas corriqueiramente por nosso meio profissional me veio, não por acaso, através de interlocuções com colegas como Pedro França, Graziela Kunsch e Kamilla Nunes, sincronamente, semanas antes do episódio em relato, e com Yuri firmeza, no momento de escrita desta carta. Em seu texto original, Bartleby não menciona o verbo, o que indetermina o que ele rechaça. A potência de sua sentença enquanto função-limite se dá, de acordo com Deleuze, no aniquilamento do referencial na linguagem – com o outro, com algo -, desestabilizando, assim, os parâmetros do interlocutor. Ou seja, a força do personagem, é a força da atitude do tolo, que quebra códigos de padrão, mas sem quaisquer esclarecimentos, apenas tem a decisão de não participar de negociações dessa natureza.
Contudo, tal posicionamento de ausência se difere de uma negativa-afirmativa como por exemplo, no trabalho de Graziela Kunsch “Sem título (prefiro não fazer)”, em ocasião da exposição Caos e Efeito, no Itaú Cultural, São Paulo, com curadoria de Fernando Cocchiarale e Pedro França (2011). A artista recorre à sentença de Melville, expondo-a como sua obra, em um nítido movimento que indica sua insatisfação de estar presente. Neste caso, o “preferiria não”, encontra sua reportação de ação (o fazer e, neste caso, o estar presente), facilitando ao público identificar o endereçamento da crítica sem precisar ter conhecimento do histórico do trabalho. Assim, mesmo tendo a ação sido suscitada pelo não pagamento dos artistas participantes, sendo a exposição a pretensão de uma vasta “catalogação” da jovem produção contemporânea nacional, o sutil gesto de Kunsch se alarga e faz incidir sua crítica seja à instituição, à curadoria, ou às estruturas de poder, legitimação e remuneração empregadas na arte.
Em tempos onde a radicalidade pode cair em contradição, pois o sistema do capital se retroalimenta de todas as instâncias da vida (os modos de ser, as escolhas profissionais, a alimentação, o vestuário, a moradia, os meios de transportes, a educação, a saúde a política, etc), o NÃO e o SIM trocam de lado a cada novo trabalho/convite e (parece que) tudo pode ser relativizado, já que a verdade está mais no olhar do que naquilo que é olhado, preferir é escolher, mas não estamos acostumados a fazer passar a escolha necessariamente por negação. Entender que os vínculos do dinheiro que financia a arte em todo mundo são comprometidos diretamente com a perpetuação das desigualdades sociais faz de questionamentos sobre limites individuais e coletivos mantras de sobrevivência para os que ainda se incomodam. Ou seja, o SIM nunca deve ser absoluto e o NÃO sempre atento à coerência.
Em convergência, eu já vinha refletindo sobre meu real desejo de um modelo de revista, o qual não se aproxima da ideia linear de periódico de arte que dê conta das ansiedades do meio, tanto de conteúdo quanto de permanência. Ou seja, a Elástica participar em um “evento institucional de arte” não me parecia algo congruente. Afinal, para que mais uma revista de arte? (Essa fora a pergunta de nossa primeira edição.)
Deste modo, tendo como contexto e argumento os três temas levantados pela revista ao longo de história de suas edições (1. Pra que mais uma revista de arte?, 2. Sustentabilidade, 3. Invisível) propus para o corpo editorial da Elástica uma ação de “invisibilidade” através da leitura de uma carta que entrelaçava a indagação de porque existir enquanto revista, as escolhas de mundo que se pode fazer e o invisível como a decisão de não estar presente. Essa opção se daria eticamente, óbvio, por divergências políticas que ultrapassavam o fato do seminário.
Este encadeamento de fatos se deu em menos de dois dias antes da fala na Daros e durante os primeiros dias do Vocabulário. Para mim, tempo suficiente para tomada de posicionamento e decisão de invisibilidade. Para meus companheiros de revista, era um tempo curto para amadurecimento de ideias. Ou seja, a “ausência” como ação não aconteceu devido à incompatibilidade de opinião entre os editores.
Reproduzido aqui trechos da carta-invisível que não se fez visível:
A pergunta lançada na primeira edição retorna gerando outras dúvidas de posicionamento: Como não ter uma visibilidade óbvia (ou regular) no meio? Como tornar visível, para além da presença da revista, questões discutidas através dela? O quanto de elasticidade pode haver na ideia de revista? E por fim, como tornar o invisível a presença de uma questão?
Ser uma revista independente nos dá total liberdade de uma constante auto avaliação e reformulação de projeto, o que está intrinsecamente envolvido com nossos princípios e limites. Neste momento, estar com vocês desta forma, compreende o desejo de uma revista como algo que reverbere para além do formato publicação, que atravesse o pensamento em arte, tendo responsabilidade nas escolhas. E assim, acreditamos estar de total acordo com o que projetamos como conceito propulsor para Elástica.
O devir invisível não significa não existência ou a deficiência de visão. Seu prefixo IN já indica a existência de uma visão de dentro. Ou seja, ao deparar-se com as invisibilidades o meio é modificado – ou no mínimo friccionado.
A visibilidade das coisas nos dá o parâmetro do que é real ou não. Contudo, se propomos a invisibilidade presencial como resposta ao convite para este seminário é porque acreditamos que o invisível se torna visível quando é nominado.”
Assim, estive presente en persona, preferindo antes não, mas ciente que a autonomia do coletivo não é individualizada. A carta foi lida e contextualizada tendo como apoio os meus interesses na edição de uma revista de arte:
Esta carta foi escrita pensando na possibilidade de não estar presente fisicamente em um contexto como este, institucional, privado, legitimador, pois nossa maior premissa é como elevar ao máximo a ideia de elástico, pensar em proposições enquanto revista não sendo o que se entende a priori como revista. Este lugar estranho é onde almejamos chegar. Contudo, nos damos conta, todo momento, que trilhar um caminho não usual nem sempre é fácil, prático ou rápido. Pensamos sim em realizar uma ação de invisibilidade que suscitasse questionamento para o que está visível, retornando a pergunta: para que mais uma revista de arte? Esta não era somente uma pergunta existencial. Queríamos com ela repensar nossas próprias necessidades, enquanto editores, de atravessamentos e discurso no campo da arte.
O que é descrito aqui vem de encontro onde gostaríamos de chegar, quase como uma utopia editorial de extrapolar a própria ideia de independência como revista. Sabemos o que queremos como proposta, porém reconhecemos a dificuldade de alinhar desejo e prática, por uma série de negociações, imprevistos ou impedimentos internos ou externos.
Como o próprio o nome diz – Elástica – surgiu da vontade de elasticidade do termo arte. Queríamos um lugar onde pudéssemos reunir além da crítica, textos mais livres, também informativos, resenhas, poemas, pensamentos soltos ao lado de trabalhos de artistas, proposições, roteiros ou receitas. Que reunisse a instituição, a galeria, a academia, a rua e a fazenda. Enfim, uma curadoria, em seu sentido de rede de associações, como publicação (…)
Esta carta tenta reunir dois assuntos:
1. Prefiro não fazer
2. Por que editar uma revista de arte?
Assim, me pareceu coerente que pudéssemos “esticar” a Elástica para estar aqui (Vocabulário) / lá (Casa Daros) invisíveis, estar num devir além-do-não de Bartleby, que não somente sinaliza, mas se responsabiliza por um desacordo com o modo de funcionamento econômico da Fundação Daros, considerando seu envolvimento com a produção de amianto que, reconhecemos como anti-ética. Pela série de compromissos que eu já cumpriria naquela semana, pela realização/participação no seminário na Casa Daros e pela semana de imersão do Vocabulário percebo que fiquei um tanto “entre os espaços”, o que não necessariamente configurou uma ausência no Vocabulário, contudo me trouxeram uma sensação de “não imersão”. Foram essas as relações e confrontações que configuraram minha semana durante aquele período de oficina interna proposta pelo Vocabulário, me parecendo pertinente trazê-las para o Vocabulinário.
Notas
(2) Algumas referências em periódicos virtuais: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/tribunal-de-turim-condena-barao-do-amianto-a-18-anos-de-prisao-um-hino-a-vida.html, bit.ly/1pCRKUp e http://www.revistaelobservador.com/opinion/29-lecturas-impertinentes/5203-el-juicio-de-turin-contra-los-magnates-del-asbesto
(3) Villamizar, Guillermo. Daros Latinoamericana: memorias de un legado peligroso. Internet: Esferapublica.org. Publicado em 3/12/2012. http://esferapublica.org/nfblog/?p=53384
(4) Melville, Herman. Bartleby, o Escrivão. Novela do escritor norte-americano Melville (1819-1891). A história apareceu pela primeira vez, anonimamente, na revista americana Putnam’s Magazine, divida em duas partes. A primeira parte foi publicada em Novembro de 1853, e concluída na publicação em Dezembro do mesmo ano. A novela foi relançada no livro The Piazza Tales em 1856 com pequenas alterações. (Wikipedia)
// Tem artista na Maré?*
(V1)
Na Maré acaba que depois de um certo tempo, você mesmo não morando na Maré acaba sendo da Maré. A Maré depois que você começa acessar umas coisas parece que ela te toma, né!?
Tem uma situação interessante , vou citar uma coisa que acho que tem a ver. Foi criado um projeto na Maré tem essa ideia de criar trânsito, criar troca, aprendizagem…
Chegaram os curadores do projeto e apresentaram o projeto da exposição: todos os artistas já estão aqui, os nomes e tal. Então perguntei: quantos são da Maré? Nenhum, mas não tem ninguém da Maré? Eu era sempre o chato né, não tem nenhum da Maré? Não não tem nenhum da Maré. Mas porque que não tem nenhum da Maré? Parece que ouviram falar que na Maré não tem artista. “Na Maré não tem artista?”
Na Maré existe o Imagens do Povo, que é um projeto de fotografia do Observatório de Favelas, uma agência de formação. As pessoas trabalham por ali já que muitos se mantém de trabalhar com fotografia através dessa agência, e este é um espaço onde as pessoas também buscam fazer arte, né, cada um na sua forma.
Enfim, com essa a gente bateu na tecla. “Tem que ter, tem que ter, tem que ter. (um artista da Maré)” E emperraram dizendo que tinha uma verba limitada, que não sei que, não sei qual. Com a insistência abriram espaço para um “artista convidado”. “Artistas convidados” éramos nós que morávamos lá? Falei “Porra, vou escrever alguma coisa pra ser um convidado aonde eu moro?” E, aí foi legal, foi interessante né. Eu escrevi com a ajuda de alguns amigos. A minha ideia era fazer fotos de pessoas que moravam lá e que eram significativas praquele local. Que eram “vultos locais”, pessoas que eram conhecidas de alguma forma e botar essas pessoas na rua, a imagem delas na rua. A minha ideia era essa, que era pra mim o fato que eu estava comunicando com quem me interessava, que eram os que tavam ali que moravam ali. Ou seja eu achava que eu tinha de fazer aquela coisa ali falar com as pessoas dali também.
A exposição teve algumas ações. Tinha umas lonas eu não lembro qual a artista que concebeu, era tão alto que não dava pra ver… Foi uma coisa meio doida, era umas lonas que acabavam virando um filtro aí passava uma projeção, eu sinceramente acho que não funcionou muito bem. Tinha um que era bem interessante que era um letreiro que passava ao vivo, acho, em tempo real as cotações da bolsa, aquela porrada de numero passando. Só que era um negócio pequeno, assim … E eu “que porra é essa”? Aí um cara passou e falou assim “Essa porra é da bolsa cara! Da bolsa, nunca viu não? Na televisão, fica passando essa porra aí. Tinha umas relações legais assim…
(V2)
Isso era na rua?
(V1)
Era na rua em frente ao Redes. Tinha poucos trabalhos na rua, e eu lembro que quando eu falei pra fazer na rua, que eu queria fazer na rua, não tinha nenhum que eu lembrasse. A gente teve ideia de fazer as fotos em tamanho natural. Pensei assim: vou fotografar pessoas no local onde eu vou botar a foto em tamanho natural, então as fotos são gigantes 1m80 e tal. Ficavam no lugar onde tinham sido tiradas, então ficava uma coisa meio metalinguística aquela pessoa ali. De longe não se sabia se era o cara mesmo que tava ali, chegava perto e olhava … Uma foto era o Bira, um cadeirante e fotógrago, no lugar onde ele sempre fica na esquina, e outra era uma mulata assim dessas mulatas, né!? Era uma passista negra que tava sempre por ali, as pessoas conheciam, e foto era a mulher lindona assim parada… Só que ela tava numa foto no Piscinão de Ramos que é um lugar que o pessoal da Nova Holanda não vai, então eu queria também gerar uma coisa assim: “Onde é que essa mulher tá?” Um lugar bonito, ninguém sabia onde era, só quem era na Maré também.
Então eu falava com o de fora, e queria falar com o de dentro também, mas ficava uma coisa meio maluca, que era o que eu via ali pô,… “O que que tá acontecendo?” E ninguém sabia o que tava acontecendo, que a exposição estava acontecendo… As pessoas recebiam os panfletos, e se perguntavam “O que é isso? Onde é?” E o pessoal comentava: “Ah é lá tal lugar.” Enfim, teve essa luta em que fui eu que, tipo, o único que né furou ali a barreira, ai depois disso dizem que sempre vai ter um da Maré, e tal…
(V3)
Virou cota?
(V1)
É, a gente conseguiu, mas toda cota é na base da porrada. Tem gente que fala que não tem que ter cota, mas se não se forçar não vai ter cota. mas ai fica mea culpa as vezes, eu nao vou abrir essa questão com o espaço, então tudo é muito complexo…
*transcrição de um pedaço de conversa na oficina interna do projeto Vocabulário Político para Processos Estéticos.