Brasil | brasiu | Brazis

// por Cristina Ribas

Brasil | brasiu | Brazis

Um Brasil? Não, não tem um só. À distância também são muitos. Há camadas de intensidade e de profundidade. Cada um tem um Brasil projetado, cartografia projetiva, e um Brasil radicalizado, conhecido, pé na terra. Tem gente que tem um Brasil urbano, do asfalto do metro a metro. Outros têm um Brasil de interior, de procurar cachoeira, curva e plano inclinado. Tem gente que tem Brasil pra fora, que vive fora dele e que o alimenta como se alimenta passarinho na gaiola. Tem gente que vive fora dele, porém dele nunca saiu. Quem vem de fora e quer chegar no Brazil, esse encontra outro também. Quem escreve Brazil, já diz a que vem. brasiu menor tem também.

Brazil | brasiu | Brasis. Significações em disputa. Um sonho moderno não consumado. Por ninguém. Como querer consumar um projeto moderno, quando na verdade não há consumação que chegue? Quando a consumação é equação, valendo mais como instrumento de mais valia, de incitar a máquina produtivista, de fazê-la espremer a estômagos vazios algo que se toma por Crescimento? … Consumação de algo, que não se consuma, e Poder. Há um cansaço da repetição dessa diretiva. Há uma reclamação pela proliferação de sentidos desse Brasil. Não faz muito que novamente fomos tomados por uns afetos grandiosos e impossíveis de conter: palavra Crescimento. O crescimento do Brasil seria imagem mais poética se não fosse dolorosa.

Quem opera, incólume, os bits das máquinas desenvolvimentistas? E quantos bits. Quantas estatísticas por encima daqueles que recebem seja na perfuração do corpo a bala seja na destruição de seus modos de vida, camadas de concreto armado sobre suas terras? Afetos duros esses de fazer crescer e exportar a torto e a direito mais valia de nós: “Engenheiros, mais engenheiros!”, disse Dilma.

Protesto Indígena em Brasília. Foto:  Mídia Ninja

Protesto Indígena em Brasília. Foto: Mídia Ninja

Todo mundo que menciona – Brasil – , agencia, todo mundo que habita, mais também. Aqueles que o fazem, desde dentro, do brasiu pequeno, desses jeitos de fazer dessa terra, tem segredos. Porque é assim que se faz Brasil | brasiu | Brazis. De maneiras diferentes. O brasiu pequeno escapa pelos discursos ostentatórios e promissores, como se não ouvisse, pela sua preguiça mixta de resistência, o que dizem essas vozes robustas, que anunciam desmedidos roubos, que arrasam desmedida gente.  brasiu no toque das coisas daqui na palma da mão, e entre mãos e batatas de pernas e escápulas, suor e sono sonâmbulos no transporte público, e frita quente o pastel e queima e refresca pela concessão diária dos pequenos prazeres e das pequenas curas. brasiu mamão formosa cresce no fundo do quintal de quem tem casa ou cresce na rachadura do concreto daquela pirambeira no Alemão. brasiu código pequeno de sabor gigantesco, bula de sobrevivência essa sua toda medicina. Camarão seco cruza o país, chega aqui perto, cozido bem cozido entrou no estômago com cheiro de jambu e tudo mais da alquimia do que eu não sabia. cheguei. brasiu inteiro. interno. como acordar as 5 da manhã.

Quando eu era criança cruzamos o país em um ônibus. Foram três ou quatro dias. Minha mãe nos levou para o Maranhão. Rio Grande do Sul—Maranhão. Vixe Maria. Mudança da paisagem, claro, nem posso relatar tudo. Buriticupu. Imperatriz. São Luis do Maranhão. Conheci Maria-do-socorro, a tia avó dos meus primos. Eu olhava pra ela, que era dona de farmácia, ou enfermeira, não sei, e pensava “que nome! Que nome!” Que apropriado era, ainda mais pra mim na minha cabeça de criança. Ela tinha todos os jeitos do cuidar. (infraestrutura) Maria-do-socorro me faz pensar hoje no brasiu das pequenas medicinas, das pequenas curas, dos sabores… num brasiu pequeno e íntimo, que vem pelo gesto de se aproximar, de saber e pela intimidade. Um brasiu hoje confrontado… Um brasiu com menos espaço pra ser antropofágico, e que vem sendo apressado…

Na escala nacional, qual seria nossa Maria-do-socorro? Como será que esse país-cuida-de-si? Parece que nas transições Brazil | brasiu | Brasis se precisa de várias Marias-do-socorro… a todo o tempo. Este vocábulo não é, contudo, mister nem em remédios, nem em análise política. É uma maneira de relatar uma percepção. Na memória do recente, no plano da política do estado, parece ser impossível não refletir o que se tem agora com o que se tinha antes, quando antes o plano do governo sustentava diferencialmente os fluxos do desejo dos movimentos e das singularidades. Na memória afetiva, é como se houvesse um rompimendo do humanismo escala um-pra-um no Lula dos seus começos (dos seus pequenos remédios!), que desapareceu sob as estatísticas Dílmicas grandiloquentes, visto que meio que de repente nos interpela com sua violência feminina de presidenta, não que não soubéssemos de sua inclinação, traindo em parte, para muitos de nós, sua própria história militante…

No governo anterior a esse que já se despede (provável…) muitos se ocuparam temporariamente em sustentar uma tradução de projeto e de escala, com capacidade, com manobra política. Quanto esforço, quanta inviabilidade. Parecia que havia uma certa pedagogia, ou o experimento de potencialidades que dependiam evidentemente de uma contaminação mais fresca entre práticas dos movimentos sociais, seus representantes e os conselhos criados na busca de aplicar metodologias territoriais, porventura radicais, sobre os mecanismos cansados da máquina estatal. O que poderia ser renovado nas linhas da produção, reprodução e mobilização social num projeto talvez inaugural de abertura democrática? Mas algo disso se perdeu, aos poucos, e bastante, e quase tudo.

Ouvi de Célio Turino uma vez que o estado que ele pensava e praticava era um “estado educador”, quando ele ainda estava no Cultura Viva. (E hoje ele faz crowdfunding para publicar seu livro sobre Pontos de Cultura?) O estado educador foi portanto sendo enxugado e desmelhorando numa versão mais efetivista, retirando gente mais do que incluindo nos programas de fomento à cultura pela remodelação ou orientação à economia criativa. Nos últimos anos vivemos, portanto, uma disputa mais dura de usos e significações da terra Brasil-Brazis, colocado entre o superavit da economia (mais precisamente das empresas privadas), e a criação de programas de distribuição de renda, ou o aumento de serviços e assistência por parte do governo federal que são determinantes no crescimento do país a partir da mobilização da economia de bens de consumo, do aumento do poder de compra, do Bolsa família, de dignidade, de casa própria, de acesso a estudo, bolsas de estudo, etc. “Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades.” (Cocco, 2013) A disputa entre dimensões de tamanha distância não é só por valores, mas é por posses, pela manutenção das classes sociais estratificadas por parte daqueles abastados, ou pela subida ou atravessamento delas, como têm desejado alguns fluxos do governo… Por tudo isso somos BRICs lá fora, de forma glamurosa mas, e aqui dentro? Ao passo que há uma inclusão na economia (a retirada da extrema pobreza) há ao mesmo tempo um crescer em bloco, ou seja, aquele abastado também está crescendo numa equação que afeta por demais o brasiu menor. É perceptível então que afeto/efeito desenvolvimentista se mantém por meio de um tônus que faz adoecer gente e mais gente de afetos moles, afetos frágeis. Pobres da periferia, corpos índios em suas casas, camponeses nas suas nesgas(*), modos de vida, nas suas matas. Nessa cena confusa entre a floresta e a barragem, o grande verde-amarelo que é vendido é um Brazil colonizado por si mesmo, pequeno império regional.

Agricultura familiar e de pequenos produtores corresponde à cerca de 70% da produção de alimentos no Brasil. (dados do Ipea)

Brazis. Tanta gente, tanta gente. Se mistura e se multiplica com capacidade de proliferação incontrolável. A escrita antropofágica de Giuseppe Cocco em “Mundobraz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil” (2009) marca uma nova maneira de pensar o Brasil. Brasil arrebatante, intensivo, recuperado nas suas forças antropológicas e, claro, antropofágicas. É a partir de uma ética da potência dos pobres, de linhagem negro-negriana (de Antonio Negri) que ele vai traçar a análise desses Brasis que sacodem a relação significação/valoração no modo produtivo do capitalismo contemporâneo e colocam a criação como valor. A proliferação de modos de vida nesses Brasis seria não um arquipélago de multiculturalismos como se pensa nos discursos da globalização, mas uma hibridação, miscigenações, ou seja, mundialismos. Capacidade de criação do mundo, seguindo o pensamento de Jean Luc Nancy. Na perspectiva do trabalho, isso significa uma capacidade inventiva das formas de trabalhar, nas variações da cooperação social e da produção de renda. O Brasil é para Cocco um híbrido complexo. E na luta política a radicalização da democracia é o grande desafio donde surge uma construção imanente, a sociedade como constituinte, como processo. Um nervosssssso*

O Brazil desenvolvimentista por sua vez, na minha parca percepção, convoca a entrar numa linha de produção que é mais ainda da ordem de uma auto-exploração (assim como do território), que cobra uma espécie de fidelidade, o comprometimento com aquele Crescimento. O que não parece estar em discussão, contudo é o modelo de desenvolvimento, um modelo que nos leva para a mesma falência ambiental e social que já vimos em tantos outros países desenvolvidos. O Brasil é formado, evidentemente,  por todas as variações possíveis de forma de produtividade e lucro, o que lhe dá essa característica plural e complexa. E a precariedade que marca o trabalho na contemporaneidade não é uma característica apenas do Brasil ou dos países menos desenvolvidos. O ideal do emprego não seria, portanto, salvaguardar de um perigo, visto que a precarização se acentua mais ainda com o novo modelo de acumulação. O novo modelo, o capitalismo financeiro (ou financeirista), desloca o lucro da produtividade de bens propriamente ditos e acontece por meio do aumento da circulação, seja de informação, seja de saberes, de funções. Ou seja, há mais lucro quanto mais há de circulação da informação, e do valor que um produto agencia, por exemplo – imagem da publicidade ela mesma no mundo digital. Jean Baudrillard chama isso de “fim da referencialidade”. Franco (Bifo) Berardi fala em uma “autonomização do dinheiro”, que passa a circular por si, separado também da força-trabalho do trabalhador. O fim da referencialidade é também a des-papelização do dinheiro, que se soma à essa des-fisicalização do dinheiro relacionado tanto à força-trabalho como ao produto ele mesmo. Encurtando uma boa parte da história, o “crescimento econômico” hoje em dia é baseado também em estatísticas de aumento de poder de compra, ou capacidade de aquisição de crédito (dinheiro des-papelizado), e portanto, de endividamento. Não é à toa que para Maurizio Lazzarato na atualidade o homem e a mulher se tornam sujeitos “endividados”, ou seja, por mais que o lucro na dimensão mais abstrata do capital esteja desrefencializado, a dívida sempre será paga na medida do trabalho do corpo.

A chamada que faz o Estado para uma pactuação com o aumento da auto-exploração de cada um de nós sem uma radicalização da democracia, desenha um mapa total do território que passa por cima das diferenças que são constitutivas dos povos brasileiros. O enunciado do Crescimento pelo Poder do Estado tenta convocar uma simbiose, e de alguma maneira induzir à força, pela força da repressão. E não só aqui, o território Brasil-Brazil, na promessa do Crescimento que pode levar junto de si outros países latinos ou países do Sul mundial, se estende para Bolívia, Venezuela, Cuba, Argentina. Engole a África, velha mãe, e lhe provê recursos, tecnologia, mão de obra – caminhos de mão dupla da criação e da inclusão em uma economia.

Esse Brazil que reproduz dentro de suas tramas colonialismos cujas linhas de poder nunca sumiram, que os convoca desde a esquerda como a direita, de repente recebe um levante. (manifestações) Susto nos discursos do poder, susto nos discursos arraigados de que há um povo pacífico, que tudo assimila e que a tudo se adapta, que tudo digere – e até mesmo seus 5,2 litros individuais de agrotóxico por ano. 2013 um ano que marca um rompimento. O rompimento que diz um basta, que escancara a rebelião da periferia e que reclama no asfalto seus corpos sumidos na favela. Cadê o Amarildo?  ((Anti herói anônimo)) Enquanto insurge um poder de ruas e de redes, os colonialismos, variando-se e confundindo-se em fascismos, militarismos e diabo a quatro se afirmam com mais força, instituindo um momento em que a violência passa a escancarar que esse é o último recurso do Poder. Repressão. Brasis em conflito, não um Brasil homogêneo, ele mesmo contra o Estado. Mas uma multiplicação, uma multifacetação da potência-criação-vida (potência concisa da vida cotidiana, assim pode ser tomada, como na palavra biopolítica), insurgindo e diferindo, debatendo suas significações, enfrentando de frente e de baixo as linhas visíveis e invisíveis de Crescimento, Poder e Repressão.

Pinheirinho, ninguém nunca viu. Saíram de foices, facões, capacetes, e barricada inventada, galão de óleo. Fogo. Potência rizomática pura, transversal, integração doutra ordem.

Rafael Braga Vieira condenado a 4 anos e 8 meses de prisão, sem crime qualquer, derivava pela rua, passou pela manifestação de 20 de Junho de 2013, ‘portava’ uma garrafa de pinho-sol, trabalhava com limpeza, quando foi preso.

Nos últimos anos o Brasil se transforma paulatinamente em um grande balcão de negócios, tornando-se uma espécie de teatro mambembe de mega eventos, Copa do Mundo, Olimpíadas e grandes outras vendas e espetáculos que deixam mais explícita a incongruência social da diretiva economicista. Brazil. Negócios de brasileiros com brazileiros, negócios de brasileiros com estrangeiros, negócios de extrangeiros com estrangeiros. O que sigifica então ser brasileiro por direito diante de uma semiotização máxima como tal, diante de um tipo de engajamento generalizante, macropolítico do tipo que o Crescimento e os megaeventos formalizam? Sendo o Brasil ele mesmo uma coisa trans, #só tem bicha nessa cidade!, transnational, e não dizente apenas dos processos internos do Brasil-no-meu-quintal, a que servem os discursos de Brasil? De uma Brasilianização? De brazilianismos? De a certain braziliannnessss? De Brasis? Esse é um tema que Cocco trata com profundidade em parte de Mundobraz, livro cuja extensão e complexidade trago apenas drops. Cocco recorta esse trecho de Paulo Arantes em “A fratura brasileira do mundo. Visões do laboratório brasileiro  de mundialização” (2001):

“Ocorre que a tal ‘brasilianização’ do mundo (…) indica justamente a contaminação da polarização civilizada em andamento do núcleo orgânico do sistema pelo comportamento selvagem dos novos bárbaros das suas periferias internas, que se alastram propagando a incivilidade dos subdesenvolvidos, de sorte que a grande fratura passa a ser vista também como a que separa os que são capazes e os que não são capazes de policiar suas próprias pulsões. (…)”

O Brazil portanto não é só aqui, expresso no território geográfico mensurável. O Brazil se faz lá fora, também nos foras desse território. Desejo olhar, contudo, mais para esse brasiu menor, insurgente, esse da ordem dos bandos e dos bárbaros, que encanta pela capacidade de quebrar as representações totalizantes de um Brasil-estado, de sucumbir àquela semiotização máxima – Brazil=potência. São partes dele que se movem e desafiam as determinações da polarização, e bem por isso não é à toa que o que caracteriza essa brasilianização é a proliferação de modos produtivos, embrenhados de invenção, jeitinho, gambiarrice… sobrevivência. (hidrosolidariedade + etnoempoderamento)

O Brasil-Brazil como coisa vendável é uma malha flexível, serve a tantos usos quantos modos de vida habitam esse território. Por isso o Brasil nas suas variações enfrenta um conflito de representações, visto que aquilo que define esse território são os modos de vida e seus movimentos desgarrados, suas insurgências contra o poder repressivo, inflexões Brazis-brasiu. O brasiu de corpos vem sendo maltratado nas segregações do poder, julgado e excluído da sociedade de direitos, criminalizado tanto pela esquerda no poder e como pela direita no poder,  pela criação de proibições, pelo achatamento da potência criativa que insurge nos protestos. O brasiu cabe dentro do Brazil (**), mas esse maior não cabe dentro do menor. Nos códigos de desenvolvimento financeirista, naquilo que tem direcionado a economia, se desvela que as linhas de sub // desenvolvimento não é que sejam incapazes de serem semiotizadas no progresso, no crescimento, na competitividade, … o Brazil mesmo é que não quer aceitar tanta diferença e portanto opera expulsando a rodo gente de centros urbanos, por exemplo, enquanto que políticas urbanas de planejamento mais cuidadosas poderiam ser implementadas; e o que falar da dizimação de muitos e muitos grupos de índios, expulsos de suas terras, … Sobra um brasiu menor onde só há resistência, um brasiu de pobrezas que são o oposto daquela pobreza descrita logo nacional: “País rico é um pais sem pobreza”.

O brasiu das diferenças, das aldeias de índios urbanos que segundo alguns não parecem índios, ou que se tornaram índios, ou de rolezinhos de jovens negros de periferia nos shopping centers só acirra mais a crise da representação do Brasil, que é também a crise da representação da política, dos modelos da política. Na entrevista “Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial nas metrópoles”, Giuseppe Cocco analisa o ciclo de manifestações no Brasil a partir de junho de 2013 como sendo em parte uma consequência positiva dos 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, isso não aconteceu porque o governo tenha sido de “esquerda” ou socialista, mas porque “tenha se deixado atravessar – sem querer – por ume série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.” Na (( conspiração )) de que algo pudesse estar sendo implementado pelo privilégio de estar no poder (o socialismo?), Cocco avalia que o que o poder pode fazer, contudo é “apenas ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.” Contudo essa não parece ter sido a sensibilidade expressa pelo governo Dilma nos últimos meses, visto que, por exemplo, o modelo repressor das manifestações públicas primeiramente adotado para a Copa das Confederações em 2013 se extendeu não apenas evidentemente para o megaevento Copa do Mundo (sendo parte dela a Lei Geral da Copa) mas também para as favelas elas mesmas, como no caso da Maré, no Rio de Janeiro, onde se acopla com o curso de ‘pacificações’ ordenado pelo Governo do Estado. Ou seja, o megaevento é igualmente um aparelhamento militar do país, ele sela a compra e a implementação de políticas de ‘segurança pública’ que atuam, ao contrário, na repressão das periferias.

O posicionamento do governo diante das manifestações, a criminalização dos movimentos organizados, a prisão preventiva por “crimes que poderiam ser cometidos”, o julgamento de inocentes que portavam ‘artefatos’, assim como o extermínio incessante de jovens negros de periferia, crianças e velhos, reforça uma política de controle social que vem instaurando sensações e dúvidas sobre que tipo de poder, na verdade, ocupa o Planalto Central. As conspirações de que estamos ou continuamos em um regime de ditadura foi uma constante na passagem 2013-2014, ao passo que muitos movimentos de favela e contra o extermínio de jovens negros nunca deixou de assinalar “a ditadura (na favela) nunca acabou.” Essa espécie de zum zum zum e medo fez proliferar uma série de textos, dentre eles o que destaco de Bruno Cava, “A ditadura perdeu pero no mucho”, em que ele analisa como a ditadura na atualidade está constrangida, acuada, pela mobilização social.

“Não é que, com a redemocratização pós-1985, vivamos uma aparência de democracia encobrindo a perseverança da ditadura. Mas, sim, que continuamos a viver a própria ditadura, agora entranhada na democracia representativa, uma ditadura molecularizada, convertida em princípio interno de reprodução das relações sociais desiguais, nos mais diferentes níveis (renda, origem, racial, gênero, sexualidade), por dentro da democracia representativa.”

Cava afirma – junto com os movimentos – que “é preciso derrotar a ditadura sempre.” Mas esse derrotar a ditadura dos movimentos não é a mesma perpetração da “paz” da maneira como ela tem sido impressa pelo estado, no Rio de Janeiro no caso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), chamada pelos movimentos de Unidade de Porrada em Pobre. Dilma convidou os presentes em um discurso no começo de 2014 no Fórum de Davos na Suíça para a “Copa das Copas”, que seria para ela um momento de afirmar a paz, o papel principal do futebol… Mas bem, se a paz era o que se via dentro dos estádios – frequentado por uma maioria branca e abastada -, não era o que se via fora deles…

Há quem diga agora que a Copa de fato não aconteceu –  ainda mais pela literal derrota da seleção do Brasil 0 x 7 Alemanha. Já gritavam os movimentos antes dela #Nãovaitercopa!  Seria essa derrota um feito de (( conspiração )) ? Ou de corrupção? Ou uma grande mandinga dos movimentos sociais para quebrar o encanto de uma simbiose Estado desenvolvimentista=seleção, marcando uma perda histórica que destitui a força do Brasil-Brazis, e nos devolve os cuidados do brasiu menor?

Verdade é que sabemos bem quando as ruas reiventam gritos que estão exaltando mais e mais as linhas ativas dos estados vitais, das transformações sensíveis e da política como criação ela mesma. Nas passagens Brazil | brasiu | Brasis abrimos nossos mapas de análise de relações de força e de poder, tornando-nos mais atentos aos cheiros das ervas e das ervas daninhas.

No brasiu menor acho que somos todos Marias-do-socorro.

 

 

(*) Nervossssso, um tipo de nervoso que bate no osso, coisa constitutiva… definido por mim segundo expressão de Margit Leisner nos encontros do Vocabulário Político no Rio

(**) Querelas do Brasil, Maurício Tapajós e Aldir Blanc

Referências

Berardi, Franco (Bifo) (2012). The Uprising: On Poetry and Finance

Bruno Cava. “A ditadura perdeu pero no mucho”, 08/04/2014

Giuseppe Cocco (2009) MundoBraz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil. Rio de Janeiro: Record

Entrevista Giuseppe Cocco “Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles”, 25/06/2013

 

 

Querelas do Brasil

// por Aldir Blanc e Maurício Tapajós

 

(1978)

 

O Brazil não conhece o Brasil

O Brazil nunca foi ao Brasil

Tapir, jabuti, liana, alamandra, alialaúde

Piau, ururau, aqui, ataúde

Piá, carioca, porecramecrã

Jobim akarore

Jobim-açu

Oh, oh, oh
Pererê, câmara, tororó, olererê

Piriri, ratatá, karatê, olará
O Brazil não merece o Brasil

O Brazil ta matando o Brasil

Jereba, saci, caandrades

Cunhãs, ariranha, aranha

Sertões, Guimarães, bachianas, águas

E Marionaíma, ariraribóia,

Na aura das mãos do Jobim-açu

Oh, oh, oh
Jererê, sarará, cururu, olerê

Blablablá, bafafá, sururu, olará
Do Brasil, SoS ao Brasil

Do Brasil, SoS ao Brasil

Do Brasil, SoS ao Brasil
Tinhorão, urutu, sucuri

O Jobim, sabiá, bem-te-vi

Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê

Madureira, Olaria e Bangu, Olará

Cascadura, Água Santa, Acari, Olerê

Ipanema e Nova Iguaçu, Olará

Do Brasil, SoS ao Brasil

Do Brasil, SoS ao Brasil

 vocabpol em 23122014 entradas, índice, manifestações, narrativa

Carta de não participação imersiva aqui por uma tentativa de preferir não lá

// por Beatriz Lemos

Na semana de encontro do projeto Vocabulário Político para Processos Estéticos fui convidada para realizar uma fala na Casa Daros. A Casa Daros é uma instituição sediada no Rio de Janeiro desde 2007, pertencente à Coleção Daros Latinamerica, com sede na Suíça, que por sua vez pertence à Fundação Daros. (1) A Coleção da Fundação Daros é uma coleção voltada para arte contemporânea na América Latina e que no Rio vem atuando com o foco em programas de arte e educação, seminários e exposições a partir da própria coleção. Apesar do vínculo genealógico da Casa com sua Fundação mãe, parece querer-se omitir este dado, sendo a instituição sediada no Brasil, sempre correspondida apenas à Coleção Daros Latinamerica.

O convite feito pela Casa Daros para que eu participasse de uma conversa tratava-se de uma apresentação sobre a revista Elástica, publicação que edito ao lado dos artistas Thais Medeiros e Rafael Adorján, na ocasião do Seminário Publicações de Arte no Brasil, coordenado pela artista e teórica Katia Maciel. Elástica surgiu em 2010 e se encontra na terceira edição. Sua linha editorial busca o alargamento – elasticidade – dos interesses do meio de artes visuais e propõe diálogos entre diversas áreas a partir de colaborações de artistas e teóricos. É publicada pela editora Multifoco, porém a parceria se restringe a acordo apenas na impressão, sendo a editoração, projeto gráfico e produção por vias independentes e não remuneradas.

O encontro foi inédito no Brasil até então, logrando o atravessamento de iniciativas editoriais independentes, institucionais, comerciais e de artistas, contemplando um panorama nacional histórico e atual. A convergência de datas entre essa fala e o projeto do Vocabulário (acontecendo naquela semana no Capacete) que inicialmente não se apresentava como dificuldade dado à flexibilidade presencial que tais compromissos exigiam, foi crucial para o aprofundamento de questões que vinham me atravessando, mas subtraiu meu foco e presença do processo imersivo pedido pelo Vocabulário.

Isto porque até aquele momento, véspera de minha fala na Casa Daros, eu nada sabia (assim como, acredito que muitos latino-americanos não tenham conhecimento) do envolvimento da Fundação Daros – mais precisamente de seu presidente, o magnata suíço Stephan Schmidheiny -, em grandes desastres ambientais pelo mundo e da origem de sua fortuna familiar fundada em anos de extração e produção de amianto em cerca de 40 países em 4 continentes. Não somente desastres ambientais, como mortes e danos irreversíveis à saúde de milhares de pessoas, desencadearam processos em instâncias internacionais, como o “Juicio de Turin”, mas que devido a lógica financeira de mundo (que privilegia o lucro e não o respeito à vida), são silenciados ou abafados pela grande mídia, principalmente em contextos latino-americanos, onde, não por acaso, a Fundação Daros dedica sua pesquisa educacional. Para completar a rede sistêmica de sarcasmos do capital a mesma família ergue em 1994 a Avina, conhecida fundação de fomento às iniciativas para o meio ambiente, cujo principal objetivo é contribuir para promoção do desenvolvimento sustentável na América Latina. (2)

O seminário de publicações não pretendia nem endereçava trabalhar esta trama do império do amianto diretamente porém, não pude deixar de atentar para os limítrofes pessoais em nossa atuação – seja artista ou curador – e as ligações relacionais que estabelecemos a cada trabalho. O que é inegociável para você? O amianto foi um mineral condenado por seu grau de periculosidade já no final do século 19, sendo esse dado omitido por quase todo século posterior. Segundo pesquisas econômicas é visto como símbolo da modernidade industrial, pois projetou a atual divisão global do trabalho, se tornando um precursor do capitalismo sem fronteiras (ver texto de Guillermo Villamizar: Daros Latinoamericana: memorias de un legado peligroso). (3) Vínculos econômicos questionáveis parecem ser o ponto frágil de muitas instituições de arte e cultura em todo mundo. No Brasil grandes instituições como Inhotim, Itaú Cultural, Museu da Vale e MAR – Museu de Arte do Rio, para citar como exemplos de repercussão, são alvos de críticas e, em alguns casos, de ações ativistas de boicote ou denúncia.

Quando Bartleby, o personagem escrivão do conto do escritor Herman Melville, apenas “prefere não” (dando indício ao fazer determinada função), em 1853, acredito que sintetiza muito do que consiste a dinâmica de trabalho e relações com que lidamos hoje na arte. (4) O “preferiria não” como resposta às encruzilhadas políticas propostas corriqueiramente por nosso meio profissional me veio, não por acaso, através de interlocuções com colegas como Pedro França, Graziela Kunsch e Kamilla Nunes, sincronamente, semanas antes do episódio em relato, e com Yuri firmeza, no momento de escrita desta carta. Em seu texto original, Bartleby não menciona o verbo, o que indetermina o que ele rechaça. A potência de sua sentença enquanto função-limite se dá, de acordo com Deleuze, no aniquilamento do referencial na linguagem – com o outro, com algo -, desestabilizando, assim, os parâmetros do interlocutor. Ou seja, a força do personagem, é a força da atitude do tolo, que quebra códigos de padrão, mas sem quaisquer esclarecimentos, apenas tem a decisão de não participar de negociações dessa natureza.

Contudo, tal posicionamento de ausência se difere de uma negativa-afirmativa como por exemplo, no trabalho de Graziela Kunsch “Sem título (prefiro não fazer)”, em ocasião da exposição Caos e Efeito, no Itaú Cultural, São Paulo, com curadoria de Fernando Cocchiarale e Pedro França (2011). A artista recorre à sentença de Melville, expondo-a como sua obra, em um nítido movimento que indica sua insatisfação de estar presente. Neste caso, o “preferiria não”, encontra sua reportação de ação (o fazer e, neste caso, o estar presente), facilitando ao público identificar o endereçamento da crítica sem precisar ter conhecimento do histórico do trabalho. Assim, mesmo tendo a ação sido suscitada pelo não pagamento dos artistas participantes, sendo a exposição a pretensão de uma vasta “catalogação” da jovem produção contemporânea nacional, o sutil gesto de Kunsch se alarga e faz incidir sua crítica seja à instituição, à curadoria, ou às estruturas de poder, legitimação e remuneração empregadas na arte.

Em tempos onde a radicalidade pode cair em contradição, pois o sistema do capital se retroalimenta de todas as instâncias da vida (os modos de ser, as escolhas profissionais, a alimentação, o vestuário, a moradia, os meios de transportes, a educação, a saúde a política, etc), o NÃO e o SIM trocam de lado a cada novo trabalho/convite e (parece que) tudo pode ser relativizado, já que a verdade está mais no olhar do que naquilo que é olhado, preferir é escolher, mas não estamos acostumados a fazer passar a escolha necessariamente por negação. Entender que os vínculos do dinheiro que financia a arte em todo mundo são comprometidos diretamente com a perpetuação das desigualdades sociais faz de questionamentos sobre limites individuais e coletivos mantras de sobrevivência para os que ainda se incomodam. Ou seja, o SIM nunca deve ser absoluto e o NÃO sempre atento à coerência.

Em convergência, eu já vinha refletindo sobre meu real desejo de um modelo de revista, o qual não se aproxima da ideia linear de periódico de arte que dê conta das ansiedades do meio, tanto de conteúdo quanto de permanência. Ou seja, a Elástica participar em um “evento institucional de arte” não me parecia algo congruente. Afinal, para que mais uma revista de arte? (Essa fora a pergunta de nossa primeira edição.)

Deste modo, tendo como contexto e argumento os três temas levantados pela revista ao longo de história de suas edições (1. Pra que mais uma revista de arte?, 2. Sustentabilidade, 3. Invisível) propus para o corpo editorial da Elástica uma ação de “invisibilidade” através da leitura de uma carta que entrelaçava a indagação de porque existir enquanto revista, as escolhas de mundo que se pode fazer e o invisível como a decisão de não estar presente. Essa opção se daria eticamente, óbvio, por divergências políticas que ultrapassavam o fato do seminário.

Este encadeamento de fatos se deu em menos de dois dias antes da fala na Daros e durante os primeiros dias do Vocabulário. Para mim, tempo suficiente para tomada de posicionamento e decisão de invisibilidade. Para meus companheiros de revista, era um tempo curto para amadurecimento de ideias. Ou seja, a “ausência” como ação não aconteceu devido à incompatibilidade de opinião entre os editores.

Reproduzido aqui trechos da carta-invisível que não se fez visível:

A pergunta lançada na primeira edição retorna gerando outras dúvidas de posicionamento: Como não ter uma visibilidade óbvia (ou regular) no meio? Como tornar visível, para além da presença da revista, questões discutidas através dela? O quanto de elasticidade pode haver na ideia de revista? E por fim, como tornar o invisível a presença de uma questão?

Ser uma revista independente nos dá total liberdade de uma constante auto avaliação e reformulação de projeto, o que está intrinsecamente envolvido com nossos princípios e limites. Neste momento, estar com vocês desta forma, compreende o desejo de uma revista como algo que reverbere para além do formato publicação, que atravesse o pensamento em arte, tendo responsabilidade nas escolhas. E assim, acreditamos estar de total acordo com o que projetamos como conceito propulsor para Elástica.

O devir invisível não significa não existência ou a deficiência de visão. Seu prefixo IN já indica a existência de uma visão de dentro. Ou seja, ao deparar-se com as invisibilidades o meio é modificado – ou no mínimo friccionado.

A visibilidade das coisas nos dá o parâmetro do que é real ou não. Contudo, se propomos a invisibilidade presencial como resposta ao convite para este seminário é porque acreditamos que o invisível se torna visível quando é nominado.”

Assim, estive presente en persona, preferindo antes não, mas ciente que a autonomia do coletivo não é individualizada. A carta foi lida e contextualizada tendo como apoio os meus interesses na edição de uma revista de arte:

Esta carta foi escrita pensando na possibilidade de não estar presente fisicamente em um contexto como este, institucional, privado, legitimador, pois nossa maior premissa é como elevar ao máximo a ideia de elástico, pensar em proposições enquanto revista não sendo o que se entende a priori como revista. Este lugar estranho é onde almejamos chegar. Contudo, nos damos conta, todo momento, que trilhar um caminho não usual nem sempre é fácil, prático ou rápido. Pensamos sim em realizar uma ação de invisibilidade que suscitasse questionamento para o que está visível, retornando a pergunta: para que mais uma revista de arte? Esta não era somente uma pergunta existencial. Queríamos com ela repensar nossas próprias necessidades, enquanto editores, de atravessamentos e discurso no campo da arte.

O que é descrito aqui vem de encontro onde gostaríamos de chegar, quase como uma utopia editorial de extrapolar a própria ideia de independência como revista. Sabemos o que queremos como proposta, porém reconhecemos a dificuldade de alinhar desejo e prática, por uma série de negociações, imprevistos ou impedimentos internos ou externos.

Como o próprio o nome diz – Elástica – surgiu da vontade de elasticidade do termo arte. Queríamos um lugar onde pudéssemos reunir além da crítica, textos mais livres, também informativos, resenhas, poemas, pensamentos soltos ao lado de trabalhos de artistas, proposições, roteiros ou receitas. Que reunisse a instituição, a galeria, a academia, a rua e a fazenda. Enfim, uma curadoria, em seu sentido de rede de associações, como publicação (…)

Esta carta tenta reunir dois assuntos:
1. Prefiro não fazer
2. Por que editar uma revista de arte?

Assim, me pareceu coerente que pudéssemos “esticar” a Elástica para estar aqui (Vocabulário) / lá (Casa Daros) invisíveis, estar num devir além-do-não de Bartleby, que não somente sinaliza, mas se responsabiliza por um desacordo com o modo de funcionamento econômico da Fundação Daros, considerando seu envolvimento com a produção de amianto que, reconhecemos como anti-ética. Pela série de compromissos que eu já cumpriria naquela semana, pela realização/participação no seminário na Casa Daros e pela semana de imersão do Vocabulário percebo que fiquei um tanto “entre os espaços”, o que não necessariamente configurou uma ausência no Vocabulário, contudo me trouxeram uma sensação de “não imersão”. Foram essas as relações e confrontações que configuraram minha semana durante aquele período de oficina interna proposta pelo Vocabulário, me parecendo pertinente trazê-las para o Vocabulinário.

 

Notas

(1) http://www.casadaros.net

(2) Algumas referências em periódicos virtuais: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/tribunal-de-turim-condena-barao-do-amianto-a-18-anos-de-prisao-um-hino-a-vida.html, bit.ly/1pCRKUp e http://www.revistaelobservador.com/opinion/29-lecturas-impertinentes/5203-el-juicio-de-turin-contra-los-magnates-del-asbesto

(3) Villamizar, Guillermo. Daros Latinoamericana: memorias de un legado peligroso. Internet: Esferapublica.org. Publicado em 3/12/2012. http://esferapublica.org/nfblog/?p=53384

(4) Melville, Herman. Bartleby, o Escrivão. Novela do escritor norte-americano Melville (1819-1891). A história apareceu pela primeira vez, anonimamente, na revista americana Putnam’s Magazine, divida em duas partes. A primeira parte foi publicada em Novembro de 1853, e concluída na publicação em Dezembro do mesmo ano. A novela foi relançada no livro The Piazza Tales em 1856 com pequenas alterações. (Wikipedia)

 

 

// Tem artista na Maré?*

 

(V1)
Na Maré acaba que depois de um certo tempo, você mesmo não morando na Maré acaba sendo da Maré. A Maré depois que você começa acessar umas coisas parece que ela te toma, né!?

Tem uma situação interessante , vou citar uma coisa que acho que tem a ver. Foi criado um projeto na Maré tem essa ideia de criar trânsito, criar troca, aprendizagem…

Chegaram os curadores do projeto e apresentaram o projeto da exposição: todos os artistas já estão aqui, os nomes e tal. Então perguntei: quantos são da Maré? Nenhum, mas não tem ninguém da Maré? Eu era sempre o chato né, não tem nenhum da Maré? Não não tem nenhum da Maré. Mas porque que não tem nenhum da Maré? Parece que ouviram falar que na Maré não tem artista. “Na Maré não tem artista?”

Na Maré existe o Imagens do Povo, que é um projeto de fotografia do Observatório de Favelas, uma agência de formação. As pessoas trabalham por ali já que muitos se mantém de trabalhar com fotografia através dessa agência, e este é um espaço onde as pessoas também buscam fazer arte, né, cada um na sua forma.

Enfim, com essa a gente bateu na tecla. “Tem que ter, tem que ter, tem que ter. (um artista da Maré)” E emperraram dizendo que tinha uma verba limitada, que não sei que, não sei qual. Com a insistência abriram espaço para um “artista convidado”. “Artistas convidados” éramos nós que morávamos lá? Falei “Porra, vou escrever alguma coisa pra ser um convidado aonde eu moro?” E, aí foi legal, foi interessante né. Eu escrevi com a ajuda de alguns amigos. A minha ideia era fazer fotos de pessoas que moravam lá e que eram significativas praquele local. Que eram “vultos locais”, pessoas que eram conhecidas de alguma forma e botar essas pessoas na rua, a imagem delas na rua. A minha ideia era essa, que era pra mim o fato que eu estava comunicando com quem me interessava, que eram os que tavam ali que moravam ali. Ou seja eu achava que eu tinha de fazer aquela coisa ali falar com as pessoas dali também.

A exposição teve algumas ações. Tinha umas lonas eu não lembro qual a artista que concebeu, era tão alto que não dava pra ver… Foi uma coisa meio doida, era umas lonas que acabavam virando um filtro aí passava uma projeção, eu sinceramente acho que não funcionou muito bem. Tinha um que era bem interessante que era um letreiro que passava ao vivo, acho, em tempo real as cotações da bolsa, aquela porrada de numero passando. Só que era um negócio pequeno, assim … E eu “que porra é essa”? Aí um cara passou e falou assim “Essa porra é da bolsa cara! Da bolsa, nunca viu não? Na televisão, fica passando essa porra aí. Tinha umas relações legais assim…

(V2)
Isso era na rua?

(V1)
Era na rua em frente ao Redes. Tinha poucos trabalhos na rua, e eu lembro que quando eu falei pra fazer na rua, que eu queria fazer na rua, não tinha nenhum que eu lembrasse. A gente teve ideia de fazer as fotos em tamanho natural. Pensei assim: vou fotografar pessoas no local onde eu vou botar a foto em tamanho natural, então as fotos são gigantes 1m80 e tal. Ficavam no lugar onde tinham sido tiradas, então ficava uma coisa meio metalinguística aquela pessoa ali. De longe não se sabia se era o cara mesmo que tava ali, chegava perto e olhava … Uma foto era o Bira, um cadeirante e fotógrago, no lugar onde ele sempre fica na esquina, e outra era uma mulata assim dessas mulatas, né!? Era uma passista negra que tava sempre por ali, as pessoas conheciam, e foto era a mulher lindona assim parada… Só que ela tava numa foto no Piscinão de Ramos que é um lugar que o pessoal da Nova Holanda não vai, então eu queria também gerar uma coisa assim: “Onde é que essa mulher tá?” Um lugar bonito, ninguém sabia onde era, só quem era na Maré também.

Então eu falava com o de fora, e queria falar com o de dentro também, mas ficava uma coisa meio maluca, que era o que eu via ali pô,… “O que que tá acontecendo?” E ninguém sabia o que tava acontecendo, que a exposição estava acontecendo… As pessoas recebiam os panfletos, e se perguntavam “O que é isso? Onde é?” E o pessoal comentava: “Ah é lá tal lugar.” Enfim, teve essa luta em que fui eu que, tipo, o único que né furou ali a barreira, ai depois disso dizem que sempre vai ter um da Maré, e tal…

(V3)
Virou cota?

(V1)
É, a gente conseguiu, mas toda cota é na base da porrada. Tem gente que fala que não tem que ter cota, mas se não se forçar não vai ter cota. mas ai fica mea culpa as vezes, eu nao vou abrir essa questão com o espaço, então tudo é muito complexo…

*transcrição de um pedaço de conversa na oficina interna do projeto Vocabulário Político para Processos Estéticos.

 vocabpol em 22122014 conceito, entradas, índice

Conspiração

// por André Mesquita

Em grupo, ______________* arquitetam juntos as tramas secretas do mundo. Lançam murmúrios na rede. Desenham associações obscuras. Jogam com complôs e boatos. Teorias conspiratórias passam por regimes de elucubração coletiva, mistificações, sinais de paranóia, estados de cinismo. É possível revelar estruturas de poder autoritário, de controle ou de governança sem basear-se em especulações, falsos testemunhos e opiniões delirantes? Conspirações trabalham com incertezas, desvios e falhas de informação. Algo está sempre escondido. Tentam provar aquilo que não sabemos, ou aquilo que deveríamos saber. As provas se encaixam? Que pedaços de histórias podem juntas nos mostrar a verdade?

Instituições burocráticas e militares do Estado são responsáveis por manter, reservar e classificar como secretos conhecimentos “ameaçadores”. O “poder concentrado do segredo” é algo que Elias Canetti apontou como característico dos regimes ditatoriais. (1) Hoje, nos governos ditos “democráticos”, organismos normativos, agências de segurança e sistemas de vigilância usam informações confidenciais para controlar e dominar nações. Tudo o que uma teoria da conspiração quer é não explicar, mas produzir suspeitas para construir suas “verdades”. A ansiedade de querer conhecer o que não se sabe, de procurar enxergar o que está escondido nas sombras, ou até mesmo diante de nossos olhos, aponta para uma busca incessante pela transparência.

A ideia de transparência sobre um segredo que precisa ser trazido à público só evidencia o paradoxo de dizer que tudo está claro quando, na verdade, existe algo a ser resguardado. Somos tomados pela incerteza de não saber a verdade que se esconde por trás das cortinas, pois quanto mais se esconde, mais inegável torna-se a prova de que a informação é administrada e regulada. Evocar a “presença da ausência”, como fizeram as madres da Praça de Maio para comprovar as torturas e os desaparecimentos durante a última ditadura militar na Argentina, ou a recente pergunta “onde está o Amarildo?”, nos convocam publicamente a pensar que nem sempre a verdade que se encoberta pode ser enterrada por intimidações e sintomas de amnésia.

Teorias conspiratórias nunca são transparentes e lógicas. Para seus perpetradores, sempre existirá algo a mais no mundo que precisa ser provado. A desconfiança cresce. A intriga torna-se ilimitada. Expor um segredo não nos mostra a presença de um mundo “clandestino” ou um poder “paralelo” agindo em concomitância com o real. Ao invés disso, tal exposição enfatiza que esse mundo e esse poder atuam dentro de um espaço de disputa onde as nossas relações sociais cotidianas são construídas. O que mais falta à conspiração são pistas de suas teses e um sentido claro de suas ligações. Como provar associações sem cair nas falácias e armações da grande imprensa, ou nos memes disparados nas redes sociais? Criminalizar movimentos pode passar pelo viés conspiratório da acusação sem provas concretas.

É da natureza conspiratória falsear ou limitar informações. A internet é um grande repositório de teorias conspiratórias exóticas e fantasiosas, com páginas cheias de detalhes sobre o governo totalitário dos illuminati, sobre a presença de extraterrestres entre nós, sobre os segredos da morte de líderes políticos e religiosos, ou sobre o perigo de um controle mundial pelos fundamentalistas religiosos e grupos extremistas. Fatos, profecias e evidências confusas querem provar a verdade que não sabemos. Na rede, tudo parece estar sendo revelado, dando-nos a falsa sensação de que agora sabemos o que antes não conhecíamos. No entanto, o aumento da quantidade de informação circulando na web não significa maior clareza de entendimento.

No início dos anos 1980, Fredric Jameson (2) já havia apontado em sua crítica ao pós-modernismo a urgência de se produzir uma “estética de mapeamento cognitivo” como algo que nos ajudasse a cartografar os processos de integração global. Jameson também se referiu à necessidade de produzir uma arte política que conseguisse representar o espaço transnacional do capitalismo para que pudéssemos entender os nossos posicionamentos individuais, ajudando-nos a recuperar a capacidade de agir e lutar, então neutralizada pela nossa confusão espacial e social. Quase trinta anos depois, uma pergunta ainda deve ser feita: podemos articular a totalidade de um sistema social sem cair em uma análise conspiratória? Para Jameson, a conspiração tenta representar algo que não pode ser representável por meio de uma analogia do mundo real, simplificando estruturas de poder e distorcendo sistemas sociais. O fato de hoje tudo nos parecer conectado não significa que conseguimos desvendar a rede completa de uma trama.

 

* Inclua nesse espaço nomes de corporações ou organizações em conluio com atores influentes formando alianças ocultas e sigilosas.
Notas

(1) CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

(2) Jameson, Fredric. The geopolitical aesthetic: cinema and space in the world system. Bloomington/Londres: Indiana University Press and BFI, 1992.

 vocabpol em 19122014 conceito, contexto, entradas, índice

Escuta

// por André Mesquita

Em Rhythmanalysis (1992), Henri Lefebvre situa a figura do “ritmanalista” como alguém atento não apenas à informação, mas dedicado a ouvir o mundo com todos os seus ruídos, as coisas sem significado, os vazios e os silêncios. Primeiro, o ritmanalista mergulha na escuta interna de seu corpo (a respiração, o coração, os músculos e os membros). Depois, percebe os ritmos externos – odores também marcam ritmos. O corpo do ritmanalista, diz Lefebvre, é um metrônomo.

O ritmanalista solicita todos os seus sentidos. Ele baseia sua respiração, a circulação de seu sangue, as batidas de seu coração e a pronúncia de seu discurso como pontos de referência. Sem privilegiar qualquer uma dessas sensações, criadas por ele na percepção dos ritmos em detrimento de outros. Ele pensa com seu corpo, não de forma abstrata, mas na temporalidade vivida. (1)

O ritmanalista não se coloca em posição superior, ou como produtor de uma disciplina especializada. Ao contrário, todas as pessoas produzem seus próprios ritmos integrando o interior e o exterior, chegando ao concreto por meio da experiência. O corpo que dança, o corpo que se movimenta pela rua, o corpo que luta, o corpo que colide com outro corpo. Todos esses corpos criam ritmos, são focos de experiência e de sons: a escuta e a execução de diferentes partituras.

As pessoas deveriam ouvir mais as outras pessoas. Artistas deveriam escutar mais. Artistas falam em “diálogo com um público mais amplo”, mas até que ponto suas respostas já não estão prontas? Artistas falam em colaborar com a comunidade, mas quantas vezes a voz do outro é diminuída ou não considerada? Projetos colaborativos propõem-se a trocar ideias e experiências, a produzir discursos através das diferenças. Um espaço de convívio mútuo não garante um lugar democrático onde os conflitos são apagados – como propõe o modismo de um conceito como “estética relacional”, atrelado ao confinamento do mundo da arte e da cultura empresarial em atividades com a inclusão do “outro social”. Esse tipo de prática domestica situações de encontro para encenar “micro-utopias” falsamente democráticas e exploradas no espaço protegido das instituições. Quando a própria voz da colaboração com a comunidade não é ouvida ou abafada, o “outro” transforma-se em “coadjuvante” e o artista/coletivo passa a valorizar apenas a sua própria agenda de interesses, êxitos e méritos. Sem aumentar a sua capacidade de escuta coletiva, o artista pode assumir um papel paternalista de falar em nome do outro considerado “desprivilegiado”. Ou realizar uma forma de “turismo”, para o qual uma comunidade serve como um lugar que precisa ser “melhorado” por suas ações – o artista/coletivo age como um Robin Hood às avessas. Escutar requer um momento crítico de abertura, de não-ação como aprendizado, produzindo consensos mas também dissonâncias. (2) Ouvidos em tensão. O processo é a soma de diferentes ritmos e pulsações.

Notas

1. LEFEBVRE, Henri. Rhythmanalysis: Space, Time and Everyday Life. New York: Continuum, 2004. p. 21.

2. Ultra-red. Five Protocols for Organized Listening, 2012. Disponível em: <http://www.ultrared.org/uploads/2012-Five_Protocols.pdf>.

 

 

//  (((caos-complexidade-escuta))) *

V1: Queria trazer um pouco pra nós aqui as noções de caos e complexidade. O que é um possível caos das coisas, e o que é uma complexidade que a gente possa construir. Pensando que há uma relação entre caos e complexidade, podemos propor uma complexidade temporal, fragmentária, que funciona como uma imagem protótipa, que abre o contexto de uma situação com a qual queremos lidar, por exemplo. Não quero totalizar a definição da complexidade como sendo complexa por si e impossível de criar uma entrada. Quando eu falo complexidade eu quero me endereçar a uma coisa mais possivelmente material, real, que é no nosso caso aqui um assunto comum, o terreno comum das manifestações no Brasil que se intensificam a partir de Maio/Junho de 2013. A ideia de complexidade poderia servir de um modo se a gente quisesse dar conta da maior quantidade de assuntos e temas e expressões que surgem no contexto das manifestações, é óbvio que a gente não vai (conseguir) fazer isso, a gente não aqui nesse pouco tempo/espaço. Proponho que a gente pense aqui a questão da complexidade como sendo assim um arranjo, um arranjo temporal em que algumas coisas se articulam e que a gente pode visualizar o que é que tá acontecendo a partir de pontos de vista diferentes em um mesmo contexto. Uma maneira de operar que não pretende totalizar o assunto, mas por meio da qual  conseguimos visualizar alguns pontos que identificamos como básicos, e seus contrapontos. Assim podemos, num primeiro momento, trazer alguns pontos que nos parecem importantes abordar no aspecto das manifestações no Brasil como um momento importante de produção estético-política; e num segundo momento partir para uma conversa que coloca em tensão os pontos que foram trazidos, relacionando assuntos, sujeitos, relatos, perspectivas.

Para produzir via construção de uma complexidade a partir de um coletivo temporal, contingente, eu vejo o exercício de trabalho coletivo como sendo um exercício de escuta. A escuta pode ser pensada como uma ferramenta que qualifica os intercâmbios, nos processos coletivos, sociais, comunicativos e etc. Há vários modos de pensar e praticar a escuta, e todos dependem claro da capacidade auditiva e da atenção relacionadas. Um deles que pode ser interessante de trazer aqui é a noção de escuta como sendo uma escuta atenta que permite que …eu… por alguns segundos, …eu… meio que esqueça um pouco das minhas certezas e me deixe permear um pouco por aquilo que está sendo trazido pela outra pessoa. Então a escuta seria em uma instância o exercício de um escuta não preconceituosa, seria uma escuta desmontada de pré-concepções, que aceita o que vem sendo dito, e que claro, mientras tanto analisa, …não que eu vá abraçar imediatamente o que o outro está me dizendo, claro, mas pelo menos eu esteja num estado de latência um pouquinho mais aberto que me deixa ouvir mais do que eu pudesse estar ouvindo.

V2: Mas é possível isso?

V1: É isso que estou dizendo, não quer dizer agente vá se incorporar ao modo de vida do outro, é só escuta. No sentido de que o ouvido tá aberto e de que há uma escuta, uma escuta da diferença. Repensar a escuta pode servir para quebrar a ideia da escuta como algo natural, algo que acontece mesmo que eu não queira, a ideia de que “meu ouvido tá sempre aberto”. Pode servir para incorporar a observação da operação cognitiva da escuta, pensar o processo da análise ou da atenção que vem junto com a escuta. Porque a gente tem filtros, que estão sempre operando quando a gente tá escutando tudo ao redor. E esses filtros são nossa garantia ética também, claro, que provocam distinções naquilo que estamos ouvindo.  Acredito que nossa escuta fica ainda mais “armada” quando a gente está numa situação pública, coletiva, sei lá, numa palestra por exemplo, numa conversa de um determinado assunto, em uma reunião de movimentos com modos de operar e referências diferentes. A gente até usa o termo “policiando” (!!) para pensar em como estamos “policiando discursos”, para descrever essa condição da atenção!

V3: Se antecipando…

V1: Antecipando… o discurso do outro. Que pode ser em vários sentidos, né?

V2: Mas ao mesmo tempo também você está ali com algumas lacunas abertas que você quer preencher. Então eu acho que até quando você descobre um termo, as vezes é porque você tem questões ao redor dele. Imagina, você tá precisando acessar melhor alguma questão mas você não tem um termo, daí você ouve “gentrificação”, ufa!, entrou né! Tipo, preencheu aquilo que você andava ao redor. E você já começa a usar. Vejo que é muito isso assim. E ao mesmo tempo você também rejeita, no sentido de que você pode rejeitar um vocabulário que já é, já não expande mais nada. Tipo tem discursos que já não movem mais coisa alguma e as pessoas persistem nele porque meio que elas se sustentam assim.

V1: É que a subjetividade se constrói muito pelos discursos, né. “Eu sou assim, eu penso assim. Eu me movo assim no mundo…”

V4: Não necessariamente da mesma forma o tempo inteiro…

V1: Não, não. Claro… às vezes a gente percebe uma mudança de posição, e isso é bem interessante. É até uma escuta de si, será?

Com essa coisa da escuta, de escuta da diferença tem mais dois pontos. Um que eu tava trazendo pra gente pensar era essa noção de pontos de vista diferentes. Que na nossa oficina seria a gente pelo menos passear por isso, passear pelas nossas conversas, percebendo o que é que a gente pode aprender. Então antes de pensar em incorporar o discurso do outro, há algo na sua fala e na sua experiência que pode nos ensinar algo, será?… Se bem que aqui a gente tá num processo super curtinho assim, são dois dias de oficina, né. Na oficina da semana passada, que foi de uma semana, foram acontecendo várias coisas interessantes que mostravam que a gente tava um pouco mais permeável um ao outro. e que havia possibilidade de estar pensando algumas possibilidades assim. E nem tanto de um-pra-um, tipo “eu aprendi aquilo com ele/ela pra mim”, mas de criação juntos… Então outro aspecto da escuta, que tem a ver com essa escuta que vai além da escuta como coisa natural e dada, e que podemos seguir conversando é a escuta de elementos não discursivos, que estão além da literalidade do que vem sendo dito. E essa é mais complicada por que ela depende de um misto de atenção e análise mas de colaboração, criação, e ainda… não de julgamento do outro.
* Transcrição de conversa da Oficina na Aldeia Gentil, Abril/2014

 vocabpol em 14122014 ação, entradas, índice, metodologia

Estratégia

// por Julia Ruiz

Eficácia e acúmulo, mas não só. Pensamento, inteligências de luta, conhecimento a cavalo entre o futuro e o presente, entre o desejo e mundo: medir distâncias, calcular possibilidades, prioridades e objetivos. Sacar – a duras penas – das múltiplas tensões da vida, o metal precioso dos objetivos e prioridades.

A palavra estratégia é difundida em seus usos militares pela obra de Karl von Clausewitz (1780-1831), que Lenin gostava de citar. De fato, é depois da Revolução Russa que o conceito militar de estratégia começa a figurar em manuais programas políticos como uma categoria específica, que diz respeito à luta revolucionária pela tomada do poder. Na segunda metade do século XX, embora ganhe tom subversivo nos contextos das lutas sociais na América Latina, a estratégia parece se desgastar, como faca que perde o corte, na medida em que seu uso prolifera nos mais diferentes campos da organização social e da ação coletiva – dos partidos e sindicatos às ONGs; principalmente em sua apropriação pelo mundo empresarial e pelo marketing publicitário.

Em busca de outras novas formas de fazer política, chegamos a detestá-la: a estratégia torna-se sinônimo de um ponto de vista único, da centralização, do direcionismo, do “de cima para baixo”, do silenciamento de todo o resto. Pelas repetidas vezes em que vimos nossas melhores intenções apropriadas pelas máquinas infernais do autoritarismo e da mercantilização, preferimos muitas vezes esquecê-la, evitá-la. Depositamos nossas esperanças na proliferação espontânea das diferenças em vez de nos metermos (de novo?) a arquitetar hierarquias. Deixamos para depois, ou para outrem, a indelicada tarefa de traçar rotas – acreditamos assim evitar o perigo das lâminas afiadas.

Mas a estratégia está sempre lá. O cálculo, o corte, a manipulação das relações de força estão em operação onde quer que haja um sujeito de querer e de poder. Antes de estar referida a algum objetivo, a estratégia é o gesto que postula um lugar “próprio”: esse “nós” ou esse “aqui” separado do resto do mundo. É a definição desse “próprio”, ainda que transitória, que possibilita a ideia de manipular relações com aliados, alvos e ameaças “externos”: amigos, inimigos, concorrentes e colaboradores ocasionais, públicos, objetos e objetivos.

A estratégia nesse sentido está presente em todo processo criativo: não é apenas uma relação entre a ação e um objetivo a ser conquistado, mas um gesto pelo qual efeitos de totalidade são produzidos na experiência individual e coletiva. A possibilidade de que um conjunto de eventos, ou mesmo uma intenção colaborativa entre diferentes sujeitos, possa ganhar um nome próprio é impensável sem este gesto que circunscreve um espaço político. Mesmo riscada do dicionário, a estratégia segue operando em qualquer coisa, processo, coletivo etc – que esteja se constituindo como lugar de onde projetar visões, mensagens, análises, imagens, propostas, campanhas, acusações, conspirações, inspirações etc.

Frequentemente, com um pé atrás diante de tudo que pretende organizar o mundo a partir de um lugar de querer e poder, preferimos imaginar a nós mesmos como dotados de uma criatividade sempre móvel, como nômades, como seres intersticiais. É um problema que a estratégia – como vocábulo político – caia em desuso entre “nós”. Por que precisamos deste “nós”, “nosso” problema é esse. Mesmo quando se trata de “espaços abertos” e “processos horizontais”, que querem ser diferentes dos modelos frustrantes da organização política moderna, uma proposição política coletiva é sempre enunciada como um lugar de saber, querer e poder, como um lugar de onde se espera manipular relações de força.

A horizontalidade e a abertura concebidas como modelos de organização, em que estaria abolida a manipulação de relações de poder, podem também favorecer o ocultamento da separação entre aqueles que formulam e traçam as rotas e aqueles que as seguem. É preciso lembrar que o capitalismo neo-liberal ou pós-moderno é ele mesmo construído sobre redes não hierárquicas e opera dentro dessa lógica. Mas um “espaço horizontal”, em seu sentido político, pode ser também um jeito de descrever uma experiência de renovação de laços, em que a intensa contaminação se confunde com a “esperança de um mundo diferente”; um momento experimentado como uma espécie de ‘grau zero’ da política, em que todo mundo se encontra em um mesmo nível de ação.

A esperança, expectativa, euforia, o sentimento de confiança e mesmo de frustração vividos e compartilhados nesses momentos cumprem um papel crucial na produção dos “nossos” lugares comuns. Essas sensações e conflitos nos lembram que todas as relações, inclusive as ditas “horizontais”, não são dadas ou mágicas, mas sempre construídas. Lembram o quanto de nós precisamos investir para criar um espaço político aberto, porque um espaço aberto precisa ser aberto por alguém – exige as dores e delícias de um querer e de um gesto de poder.

A estratégia tem a ver precisamente com o envolvimento no trabalho prático de cortes, separações e reduções implicadas na produção do espaço comum: mesmo a menor das decisões, como sabemos, é no final uma decisão política. O grau zero da política não está na recusa das escolhas estratégicas, mas na experiência comunal de imersão nessas escolhas, nesses exercícios de engajamento pleno, corporal e afetivo com o poder, com as tomadas de decisão e suas consequências, onde se originam nossas maiores frustrações, mas também o prazer e a esperança que tornam as experiências políticas inesquecíveis e irreversíveis.

 vocabpol em 13122014 cartografia, contexto, entradas, índice

Experiência

// por Breno Silva

Uma questão de não saber. Limitações de linguagens. Bocas espumantes. De um visco que engasga e engrossa quanto mais se quer dizer. Transbordamentos. Não se confunde com a interioridade do acúmulo vivido nem tampouco se contenta com as definições em geral. A experiência é avessa à representação. Olhos virados. Apontados entre o fora e o interior num grau de coincidência com o sol escaldante. Olhos fritos. Riscos de aparição. Lampejos neons no escuro forçando as vistas. Intuições vagas. Disposição ao perigo numa travessia perigosa. Aderências elétricas epidérmicas. Já estava ali, mas não se sabia da situação. Coincidia com disposições desenquadradas. Quando se menos espera, abalos. Deslizamentos dos rostos por insurreição das montanhas sobre a domesticação daquelas esculturas modelos em Rushmore. Perder a cabeça. Acontecimentos silenciosos. Ceder sem querer. Uma avalanche em achatamento temporal. Fervilham outros. Alterações em movimento. As insubordinações de outrora assumem tantas formas movediças. Intensidades lançando a garantia do sujeito ao limite de sua exterioridade. Violências elementares. Fora de si, uma coincidência com vários outros, inclusive com aqueles que o dilaceram. Desprendimentos. Radical livre: alter. Em alteração, uma estranha “comunidade” emerge da fervilha. Tentativa frágil de se agarrar na avalanche. A paisagem já era. As ações, as pessoas, seres diversos, objetos, fluxos de pensamentos e desejos, inomináveis, dançam sem coreografia. Num instante fulgurante, a vida nas diferenças em excessos de presentes atualizando sua nudez. Furos à brasa na realidade. Aberrações à vista. Derivam arranjos de sociabilidades improváveis. Escapes para rearranjos políticos obscuros? Dobras entre línguas úmidas. Gostosas aberturas. Para quem experimenta, tais arranjos até fazem algum sentido em expressão poética. Tudo mais simples que essa escrita. Sensações de tufões.  Horror e maravilhamento. Enterrando o sublime. Uma comunicação fraca sibila ao redor. Algo não identificado, porém, risível. Comunicação da experiência. Para quem viu de fora, escutou ou leu depois, aquilo parecia um êxtase inexplicável, algo imperceptível, um escândalo. Um mistério instantâneo. Pregnâncias. Um fio tênue de duração cindindo para outras experiências.

 vocabpol em 11122014 ação, atelier, encontro, entradas, índice

Grupo de Educação Popular

Grupo de Educação Popular

// por André Bassères

Esse texto nasce de um problema, na mais forte acepção desta palavra: como força que vem de fora, me põe em movimento e me faz pensar. Uma questão que sempre me acompanha, que enquanto educador (ou alguém que se pretende educador), nunca posso deixar de colocar. Este problema que me move, esta inquietação que é a minha, imagino, deve aparecer de diferentes formas, com inúmeros nomes, a todos aqueles que vivenciam o espaço pedagógico na qualidade de “professor”, buscando com isso fazer das suas vidas e do seu ofício uma experiência de libertação, de aumento de potência, transformação de si, dos seus alunos, e do mundo. Esse problema, portanto, creio eu, é comum, comum ao menos a todos aqueles comprometidos com uma educação para a vida, para a liberdade, para a transformação da realidade (atividade que me parece intrínseca a todos aqueles comprometidos com a vida, em qualquer espaço, em qualquer ocupação).

De toda forma, trago aqui este “problema comum” na singularidade da minha experiência com ele. Este texto é uma pequena expressão de como eu sinto, vivo e penso a educação, e sobre também como penso e construo em conjunto com outros – não a resposta ao problema (insolúvel, devo dizer) – mas sentidos possíveis, aberturas conquistadas, rachaduras nas velhas muralhas claustrofóbicas que constrangem a vida, buscando apequena-la, sufocando resistências e diferenças. Não pretendo escrever um artigo acadêmico, ou algum tipo de “projeto” já acabado acerca de uma educação que seria a ideal. Trata-se aqui apenas do desenvolvimento de uma questão, uma breve narrativa acerca de algumas experiências, movida a partir de angústias, mas plena também de profundas alegrias.

Nomeemos, portanto, o problema: como pensar a educação como instrumento de libertação? Como fazer da educação um processo de emancipação comum a mim, ao outro engajado nesta relação comigo (o aluno, o colega), ao mundo? O problema, podemos colocar dessa maneira, embora o nome seja o que menos importa: como fazer educação popular?

Não é uma questão nem um pouco fácil de responder. No Brasil, talvez, seja ainda mais difícil que em outras partes, onde todos os poderes estabelecidos, todas as relações institucionais, parecem conspirar contra qualquer experiência minimamente transformadora de educação. Por aqui (não sei se é tão diferente assim em outras partes, mas enfim…), o sistema educacional é de uma perversidade absoluta, por que ele se constitui enquanto ferramenta fundamental na clivagem entre aqueles que irão se manter em confortáveis posições de privilégio e a vasta maioria relegada ao subemprego e ao desemprego; uma ferramenta racista, dura, onde qualquer princípio de uma suposta “igualdade” é destruído desde a creche. A distinção entre escolas públicas e as caras escolas privadas corresponde quase que perfeitamente à distinção entre as posições sociais que serão futuramente desempenhadas pelos respectivos “públicos”. Nossa educação traduz um elitismo quase estamental, onde a subordinação de um sujeito a uma vida de opressão e trabalho precarizado é assegurado desde a primeira infância; o mesmo valendo para aqueles que serão os seus senhores.

Mas o problema, entretanto, no seu cerne, naquilo que ele tem de mais íntimo, não é em sua natureza brasileiro, não se resume às agruras que se vive na educação aqui, nos salários baixos, carreira desvalorizada, péssimas condições de trabalho para os professores e alunos, etc. O problema, realmente, não é mesmo só esse, por que o problema é anterior, é mais profundo, constitutivo da própria noção de educação como entendida contemporaneamente: ele é antes de tudo a própria escola.

É um problema que se faz sentir no corpo e na alma de qualquer educador que se queira libertário, que se queira um elemento de composição e fortalecimento com os seus alunos, ao invés de guarda castrador, juiz e sacerdote dos “limites”. A pergunta que o problema suscita é imediata: para que foi feita a escola? Qual o seu sentido? O que se pretendia quando a universalização do ensino se tornou palavra de ordem nos centros do nascente capitalismo (ali, por detrás “das boas intenções”, dos “nobres ideais”), para depois ser exportado mundo afora? Que tipo de estratégia nascia ali, com que finalidade, apontando para que tipo de sujeito?

Todos estamos, é claro, cansados de saber a resposta (duvido que um único professor não a reconheça, mesmo que não queira pensar sobre isso, ou antes, abrace a sua “missão civilizadora”): o propósito sempre foi a formação como formatação. A construção de vidas adaptadas, conformadas a uma nova organização econômica, política, social: corpos dóceis, disciplinados (sinto calafrios ao lembrar que todos somos professores de “disciplinas”), prontos e preparados para uma nova realidade produtiva, um novo tipo de trabalho (que é antes um novo tipo de trabalhador), em suma, para as exigências agora impostas pelo Capital (em uma realidade que transcende a diferença entre classes, mesmo que sua estrutura fosse sempre adaptada a distinções classistas). Escola, hospital, fábrica, hospício, reformatório, e, aquele que constitui o modelo privilegiado, o paradigma dos demais: prisão. Eis as instituições disciplinares, e a sua finalidade nunca pôde ser outra que aquela de formar vidas para o capitalismo, nem mais nem menos.

O mundo, claro, mudou. E é necessário reconhecer que, se ainda há essa escola disciplinar, se ela ainda persiste em muitos de seus elementos (e é um fato que persiste), ela também vem sendo paulatinamente criticada, desconstruída, reformulada. De fato, o velho capitalismo fabril, monolítico, vertical (como os buracos de uma toupeira), tem dado lugar a formas bem mais sutis de dominação, a relações até certo ponto flexíveis, sinuosas (como os caminhos de uma serpente), a relações de poder e práticas discursivas que vêm transformando inteiramente os velhos campos institucionais que antes se colocavam unicamente como espaços de adestramento dos corpos, como produção de subjetividades passivas e prontas para um trabalho mecanizado, repetitivo.

Neste novo mundo que traduz um capitalismo modificado (e, portanto, pleno de novos sentidos e novas exigências), a educação é muitas vezes apresentada como já “liberta” de suas velhas amarras, suas constrições, suas jaulas. Seu íntimo parentesco com a prisão produz hoje horror (quer a ironia da história que os bons sentimentos de hoje muitas vezes não reconheçam os de ontem). Os grandes “reformadores” do discurso pedagógico contemporâneo vieram “libertar” a todos da escola-prisão. Assim como os grandes heróis da reforma psiquiátrica na Europa do final do XVIII, vêm ao nosso auxílio pedagogos, neurocientistas, psicólogos, psicopedagogos, e uma miríade de novos especialistas (que incluem, por mais pitoresco que isso possa parecer, economistas, administradores – até mesmo o Banco Mundial, vejam vocês, se tornou autoridade em educação). Graças a eles recebemos as boas novas: “não temam mais, viemos salvar os alunos de um ensino tirânico e opressivo; viemos também reformular a administração escolar, tornando-a eficiente, dinâmica, baseada em coeficientes de produtividade, trazemos conosco a modernidade para a sala de aula!” Ao menos nas escolas particulares por aqui, trazem também na bagagem seus smartboards – quadros interativos – e outros gadgets. Tecnologia de ponta: a grande facilitadora do processo de “ensino-aprendizagem” contemporâneo.

Em grande medida, esta “revolução” pedagógica se assenta em dois princípios (me refiro, é claro, aos “saberes” que têm sido apropriados de maneira hegemônica na educação brasileira, principalmente na pública, mas também na privada, e não a todo e qualquer esforço pedagógico; como queremos argumentar, este é um campo – como sempre – em disputa): a administração de uma escola deve se assemelhar cada vez mais a uma gestão empresarial, e o mais aterrorizante é que isso deve ocorrer mesmo em seus aspectos estritamente pedagógicos, na própria aula, na própria relação direta entre professor-aluno, libertando o aluno da “opressão” do modelo fabril, prisional, que, de certa forma, os professores ainda representam (não à toa, o ensino à distância ganha cada vez mais força: o professor é, neste modelo, cada vez mais dispensável).

Entretanto, salvar os alunos não é apenas modificar a estrutura escolar, e mesmo a forma como os professores dão aula (ou se eles dão aula de todo), introduzindo mecanismos de “eficiência corporativa”. É preciso realmente salvá-los! E, como o louco “resgatado” por Pinel e Esquirol dentre inúmeras figuras que infestavam os sanatórios do século XVIII, os “reformadores” de hoje vêm resgatar a criança doente da confusão indistinta que antes se fazia (a criança doente se separa das outras “anômalas”: as desobedientes, as preguiçosas, as agressivas, as mal-educadas, etc.).

Transtorno Desafiador Opositor; Transtorno de Déficit de Atenção (com ou sem Hiperatividade); etc.: muitas são as doenças que “assolam as crianças”, e muitos (e caros) são os remédios para trata-las. Hoje, cada vez mais, substitui-se a condenação moral sobre a conduta do jovem por uma avaliação psiquiátrica e neurológica. Nada a ser “punido”, mas sim “tratado”. O que se vê é uma verdadeira epidemia de medicalização da infância, assustadora mesmo que não entremos na penosa discussão sobre se tais “patologias” possuem uma “existência em si”, ou se elas são o outro lado do mesmo saber médico que as “descobre”.

Esses dois recortes pedagógicos que busquei desenhar (de maneira por demais genérica, esquemática e pessimista, é bem verdade), todavia, de forma alguma se excluem mutuamente, como se houvesse uma ruptura cronológica e hoje nada restasse da escola “clássica”. Muito pelo contrário: nas escolas do Rio de Janeiro o que se vê é a mais perfeita fusão desses distintos “modelos” de educação: temos uma secretaria de educação que avalia seus alunos e professores através de índices de produtividade (claramente tomados de empréstimo do modelo empresarial) medidas em provas regulares e outros mecanismos (interferindo diretamente no salário desses professores), mas que coloca, ao mesmo tempo, policiais na porta dos colégios para “cuidar da segurança”; temos uma educação que medicaliza seus alunos por “transtornos de aprendizagem”, mas sem jamais pôr realmente em questão a sala de aula, a quantidade de alunos em uma aula, a obrigatoriedade da presença, as notas, medidas punitivas, etc. Está lá todo o velho arsenal da escola “tradicional” que faz com que seja corriqueiro encontrar jovens na escola que a reconhecem claramente como a velha prisão, mas com nova roupagem.

E o professor libertário, não libertador, que compreende a educação como um processo coletivo, que não está separado (e nem pode se separar) das demais condições do mundo em que vivemos, deve procurar seu caminho nesta densa floresta de espinhos, entre o martelo da escola disciplinar conservadora e os mecanismos “modernos” de gerência da vida (até mesmo do ponto de vista da química cerebral), postos em prática pelos discursos “flexíveis” da lógica empresarial. É um caminho obviamente difícil, mas é o caminho da educação popular.

A crítica mais poderosa que se pode (e que sempre se pôde) fazer à escola e à educação é que elas estavam (como ainda estão, sem desconsiderar as novas relações de poder em jogo) a serviço da produção de um mundo desigual, doente, opressivo; a serviço da produção de subjetividades apaziguadas, submissas, prontas para um mundo de subordinação e exploração, cultivando as “competências e habilidades” necessárias para desempenhar suas futuras “funções sociais”. Buscar uma educação que liberte é, antes de mais nada, se despojar da indumentária da educação (tão presente na educação de hoje como foi na de outrora); é esvaziar os lugares instituídos de poder (em primeiro lugar, é claro, na sala de aula); é buscar um caminho com os alunos, abandonar a pretensão despótica de lhes “educar” (o que não significa que não haja transmissão de conhecimento, é claro que há, mas sempre numa via de mão dupla, de troca e de respeito pelas diferenças e vivências de cada um). É Paulo Freire sim, em cada palavra, mesmo que ele também, tragédia da história (ninguém é dono do seu próprio pensamento) seja apropriado pelos “reformadores escolares” que querem mudar tudo para não mudar nada. É, por mais que a palavra seja um clichê, uma atividade que se faz com amor, com entrega e disposição de se ver desprovido de um papel central e preenchido de autoridade. Por isso a educação popular, libertária, é uma militância, constante, feita dentro desses espaços a que chamamos “escolas” e fora deles.

E o bonito quando se faz essa educação com amor, essa militância pela liberdade na (e através da) educação, é que dificilmente se fica sozinho. A diferença busca a diferença: surgem sempre aqueles que também se indignam com as correntes, todas elas, da educação, há sempre aqueles a quem dar o braço, e seguir experimentando uma educação que não seja “dona da verdade”, que não opte por reforçar simplesmente saberes instituídos, em detrimento de toda uma infinidade de experiências, de discursos, de práticas. Uma educação que não busque perpetuar relações de poder institucionalizadas (sancionadas por aqueles saberes), que busque um espaço de trocas horizontal. Um espaço onde, nessa vivência, alunos se misturem com professores, suas figuras se diluem e se combinam, e onde, em uma assembleia na qual assuntos que são do interesse de todos são discutidos (desde questões práticas sobre aulas, até demandas da comunidade local), se torne difícil distinguir quem “chegou ali como professor e quem chegou ali como aluno”.

Aqui no Rio existem (como em qualquer grande cidade, imagino) alguns grupos que se engajam particularmente nessa luta. Um deles é o GEP, Grupo de Educação Popular, do qual faço parte.

Somos educadores populares (ou antes, buscamos a educação popular em nosso trabalho), agimos dentro das escolas públicas da cidade e fora delas, em diferentes experiências comunitárias. O grupo começou há sete anos, com um pré-vestibular popular no morro da Providência, após as “forças militares” que, naquela época, garantiam a “pacificação” da favela (como hoje fazem as UPPs) sequestrarem três jovens e os entregarem a uma facção criminosa rival daquela que controlava o tráfico de drogas no morro e na região. Os jovens foram barbaramente torturados e mortos.

O grupo inicial, muito deles militantes oriundos do movimento sem-teto no centro do Rio (que contava com algumas fortes ocupações, como a Quilombo das Guerreiras, a Zumbi dos Palmares, a Machado de Assis e a Chiquinha Gonzaga – única dessas que não foi removida pelo Estado), decidiu construir um projeto de educação popular que pudesse ir além da sala de aula, além do trabalho importante de tentar garantir o acesso de jovens negros e pobres à universidade, um dos espaços mais excludentes da sociedade brasileira. O que se buscou desde o começo foi um forte engajamento nas lutas e demandas não apenas da Providência, mas de uma das regiões do Rio que se tornou um dos alvos prioritários desse capitalismo predatório e selvagem ao extremo que o Estado e a iniciativa privada vêm experimentando no Rio: a região portuária. Um processo de violência que não se iniciou com a morte dos três rapazes, mas que certamente vem experimentando um recrudescimento da brutalidade somente proporcional à ganância dos investidores (à medida que a região vem se valorizando cada vez mais no mercado). Inúmeros despejos aconteceram nos últimos anos, comunidades inteiras arrasadas para dar lugar à especulação imobiliária, como a ocupação Quilombo das Guerreiras, despejada no começo do ano após meses de verdadeiro terror imposto pelo Estado.

Apesar do aumento da repressão e da violência estatal na região, o grupo cresceu e hoje somos muitos: educadores, alunos dos projetos que desenvolvemos (de modo absolutamente autônomo e independente), estudantes universitários, alunos de escolas públicas de diversas partes do Rio. Além de trabalhadores da região e militantes com outras experiências de luta. Na Providência, o pré-vestibular continua e um curso de alfabetização de adultos já funciona há vários anos. Buscamos estar presentes nos espaços comuns, e ajudar a fomentá-los, como assembleias populares da região e também de atos coletivos que combatem às inúmeras arbitrariedades que acontecem ali todos os dias. Hoje também atuamos fortemente como parte do apoio da ocupação Chiquinha Gonzaga, com oficinas para as crianças do prédio e outras atividades que ajudamos a organizar com pessoas da ocupação e de fora. Mais recentemente, nasceu um braço do GEP na Uerj e no morro da Mangueira, com, entre outras atividades que buscam cruzar a esmagadora fronteira que divide esses dois espaços na realidade tão próximos fisicamente (favela e universidade), um novo curso de alfabetização de adultos. Também atuamos em diversas escolas públicas do Estado, e no sindicato dos professores (SEPE), tendo uma presença forte nas lutas dessa categoria, em especial, nas últimas duas greves. O GEP educação pública une professores que pensam um novo modelo pedagógico e que lutam cotidianamente pelas melhorias materiais das escolas públicas, com os próprios alunos, aqueles que mais sentem a opressão dessa “negligência” e desse “projeto de educação” sobre as suas vidas.

O que faz deste um belo processo de educação popular é exatamente o fato de conjugarmos a crítica ao que normalmente entendemos como educação (e a construção de sua alternativa) com a luta popular, cotidiana, entendendo que o processo coletivo da educação deve, ao mesmo tempo em que se reinventa, apontar para uma transformação de mundo. São, na realidade, atividades análogas (ou mesmo, dois aspectos da mesma atividade), pois reinventar o que se entende como “relações de ensino-aprendizado” é já produzir uma singularidade no mundo, e todas as vivências e lutas das quais participamos são já um profundo processo de aprendizagem. Daí a inexistência de uma distância real entre o trabalho que muitos de nós fazem em escolas (em sala de aula e fora dela, mas ainda vinculados à escola pública, como nas greves e atos) e o trabalho comunitário que fazemos cotidianamente em espaços vivos e cheios de vida, de experiências belas e trágicas, de lutas e violências de uma brutalidade que não podem ser expressas por meio de palavras, como as ocupações e as favelas da Providência e Mangueira.

A própria educação popular é quebrar os muros da escola (mesmo quando não podemos fazê-lo fisicamente); é já um gesto de libertação. E a própria luta comunitária, cotidiana, é um intenso processo pedagógico de formação para a transformação, é educação no sentido mais pleno e poderoso que essa palavra pode assumir: troca, composição, afeto, construção coletiva. É já, na luta para mudar o mundo, a criação de um outro mundo, em cada uma daquelas relações, em cada pequena experiência: na rua ou na sala de aula, é emergir outro e apontando para outro mundo.

Talvez seja por aí (menos do que nas “justificativas oficiais”) que devemos buscar a real explicação para a pesada e inclemente perseguição do Estado, que recentemente emitiu ordens de prisão preventiva (por sermos “perigosos demais” para aguardar o julgamento em liberdade) contra sete militantes do grupo, além de outras dezesseis pessoas de outros grupos. Se estamos “a solto” nas ruas, nos nossos trabalhos, nas nossas vidas, é apenas graças a um Habeas Corpus emitido por uma instância superior do judiciário, não sem antes termos de passar (como os outros perseguidos políticos) duas semanas presos ou foragidos, sob a alegação (sem nem uma única evidência concreta que incrimine os acusados) de “promovermos atos de violência nas manifestações” de Junho e dos meses subsequentes.

A acusação, de tão absurda e dramática, me faz lembrar o rótulo de “terrorista”, preferido pela ditadura militar para se referir àqueles que a combatiam. Atuamos com educação popular em espaços absolutamente abandonados pelo poder público (abandonados de políticas públicas, que fique claro, de nenhuma maneira abandonados das relações de poder e violência sistemática de todas as formas do capitalismo contemporâneo: aponto a prática fascista de pintar em casas da Providência a sigla da Secretaria Municipal de Habitação seguida de um número: a maneira pela qual a prefeitura achou por bem informar centenas de famílias que suas casas seriam derrubadas). Buscamos, pela educação e trabalho cotidiano, construir relações libertárias e potentes, compondo forças com os gestos de resistência que encontramos pelo caminho, gestos (ou melhor, gritos) que devem ser sufocados, vidas que devem ser esmagadas. E por que lutamos com eles, sem querer levar nada, nem salvar ninguém, sem almejar cargos públicos, nem verbas públicas ou privadas; por que queremos apenas juntar nossa voz às deles nesse grito, não nos podem perdoar. Paciência. A vida segue, e a repressão que estamos vivendo é ainda ínfima quando comparada com a violência reservada aos moradores de favela, aos pobres, às “classes perigosas”. A luta continua e o aprendizado também.

Concluo mencionando um trabalho que estamos fazendo, por nenhum motivo especial a não ser o de acha-lo bonito e de pensar que ali já acontece uma experiência de educação popular que vale divulgar: o trabalho que o apoio da Chiquinha Gonzaga (e muitos de nós do GEP estamos lá) tem feito na ocupação. Ali, vem nascendo nesta mesma semana em que escrevo essas linhas, um novo e potente espaço para uma educação popular, libertária, uma educação para transformação. Estamos angariando recursos e, braços dados, fazendo mutirões para reformar e reestruturar um amplo galpão que jazia abandonado há anos. Lá iremos continuar atividades que já vêm acontecendo e criar novas possibilidades. E elas são inúmeras: a alegria é sonhar com o que pode ser feito, com as múltiplas experiências horizontais, coletivas, companheiras, de educação que poderão nascer ali.

Mas certamente esse já querido espaço nasce sob bons auspícios: sua primeira atividade, no seu salão ainda vazio, sua estrutura ainda precária, foi uma oficina de Teatro do Oprimido para educadores populares.

 

 vocabpol em 08122014 entradas, índice

Hidrosolidariedade

// por Giseli Vasconcelos

Neol. 1) Solidariedade solúvel: a) Oportunidade de sistematizar as ações realizadas e apresentar o resultado daquilo que pensamos e executamos b) Processo de colaborações e associações entre artistas ou agitadores culturais c) Encontros d) Parcerias e) Envolvimento. (1)

 

Localizado no extremo norte do país, entre os estados do Pará e Amapá, o delta recebe águas de centenas de rios menores transbordando o Rio Amazonas em direção ao oceano Atlântico. É nessa desembocadura que se encontra o fenômeno da POROROCA (o tupi “poro’rog” = ‘estrondar’), quando as águas oceânicas se elevam e invadem a foz do rio num confronto que promove o surgimento de grandes ondas, mais evidente nas mudanças de fase da lua, principalmente Lua Cheia e Nova.

A solidariedade solúvel

A produção da rede aparelho aconteceu entre encontros que por vezes chamamos de reuniões e que transbordavam em ações de rua. Para cada ação proposta se constituía uma pequena rede de relações afetivas que se relacionavam às redes maiores, através dos meios digitais ou não, como: associação de bairro, terreiros, botecos, rádios comunitárias, listas de discussão e quilombos. Ao longo do tempo, espalhados entre tantos esporos, fomos coletivizando pela cidade debates em torno da liberdade de criação, expressão e ação como direito comum e público. Os assuntos amplificados discorreram sobre a pirataria, economia informal, a autonomia na produção artística e cultural e principalmente, cultura livre. Num devir impregnado pelo mote “o que ocorrer…”, experimentávamos uma composição poética política que tentava reunir fragmentos de tudo e todos entre textos, resenhas, música, vinhetas, entrevistas e cineclubismo de maneira fluida e atemporal. Estávamos na intercessão com os nascidos e crescidos ao Norte e entre viajantes, convivendo nesse tempo-espaço de comunhão em meio ao Delta do Amazonas – esse imenso grandes lábios molhados pelos rios Amazonas e Tocantins-Araguaia. Durante todo o tempo em que estivemos juntos, a hidrosolidariedade foi incorporada de modo orgânico à nossa fala, entre notas e trocas de e-mails sem muito se preocupar com as origens ou contextualização do termo.

Há-braços

Arthur Leandro (2) que traz do Rés-do-chão (3) o conceito de hidrosolidariedade para dentro do [aparelho]-:. Em maio de 2009, respondendo a uma entrevista proposta por Denis Burgierman e encaminhada para a lista de discussão CORO, Arthur sinaliza exatamente quando o termo se incorpora às nossas ações:

Re: [CORO] Re: entrevista coletiva com um coletivo de coletivos – pergunta 1
https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/corocoletivo/conversations/messages/11280
Date: Fri, 1 May 2009

Por que “coletivo”? O que esse tipo de organização permite que o trabalho individual ou os grupos tradicionais – empresa, cooperativa, ong – não permitem? Enfim, o que vocês querem com esse negócio de coletivo, diabos?

Eu vejo diferenças entre hierarquia e liderança, mas a identificação das lideranças pelas relações sociais que nos circundam – e não conseguem nos circunscrever na hierarquia de poder…, como desejam -, faz com que nos identifiquem com palavras como “coordenador”, ‘chefe’, ‘manda-chuva’… Nós resolvemos por aqui com a auto-identificação como ‘agitadores’…, adjetivo também usado pelos que nos olham ‘de fora’, mas com a multiplicidade de interpretação que nos interessa.

daí o ‘agitador chefe’ vai depender muito de qual é o universo e de onde vem a identificação, por exemplo, no micro-universo do campus do Guamá da UFPA… Para a faculdade artes o chefe sou eu, mas nos bloco de ciências humanas já foram Luis e Angelo e hoje talvez seja a Bruna… No micro universo das culturas afro-amazônidas: nas comunidades de terreiro sou eu…, no hip-hop é a Yá Maré ou Perna, e no tec nobrega é a Giseli… Na comunicação comunitária é o Angelo, pros artistas de rua é o Rodrigo, na ilha de Colares e na baía do sol é o Fernando, pro pessoal das cênicas talvez já seja o Pedro… e por aí vai… é rede de relações… quem é o coordenador/chefe?

pra mim interessam as trocas, eu também atuo em outros coletivos e/ou grupos de outras cidades onde morei, como o Urucum em Macapá; e em outras formas de des-organização como o Rés do Chão, no RJ, ou em grupos virtuais como este coro que diverge tanto que nem faz coro…. Dai aqui na rede [aparelho]-: sou eu que trago do Rés o conceito da hidrosolidariedade…. E nossa primeira ação realmente coletiva e colaborativa se chamava “Potoca free-style, ou cineclube hidrosolidário, ou projeção de filmes para Yemanjá no dia 2 de fevereiro, ou esperando um novo nome pra batizar…”; também sou eu quem impregna a rede de informações das artes visuais…, mas eu não sabia (ou não sei) n ada de só-fi-tu-ér livre, e aprendo muito disso com a proximidade com a Yá Maré, como de edição de som com o Angelo, de Mônadas com a Bruna e por ai vai, é rede de relações….

ELEMENTOS DE UM RIO
fluência, afluência, confluência, leito, margem, montante, nascente, foz.

Com o passar do tempo, na tentativa em rescrever esses processos, percebemos um conjunto de significações potentes por detrás desse vocábulo que vai muito além da nossa micropolítica: a palavra desvela intrinsecamente nosso comportamento grupal, tribal e tropical-amazônico carregados de uma alegoria fundada num horizonte plano, infinito e líquido – somos sinônimos de água procedente de qualquer secreção corporal (o suor, as lágrimas, a baba…), do suco das frutas, do líquido que escorre das árvores, da bebedeira e do rastros espumantes das embarcações. A palavra também simbolicamente remete nossa história entre hidrovias, furos e recortes de rios, elaborados por gente em civilizações provavelmente antes da descoberta da América. E ainda, esses fluxos de passagem, relatados entre tantas viagens, desvelaram um imaginário de olhares mais de longe que de perto exauridos entre agonia e empatia.

Oxum

Oxum: orixá feminino que reina o amor, a intimidade, a beleza, a riqueza e a diplomacia sobre a água doce dos rios.

Proposta de com-viver

Em 2005, Arthur Leandro apresenta os Reslatim, uma série de relatos de viagem que culminaram nos registros de um ritual-de-passagem durante sua residência ao sul da França. Estávamos trabalhando juntos na seleção de parte desse diário (compartilhado pela lista de discussão do Rés-do-chão) para a publicação Digitofagia (4). Os Reslatim expõem caprichosamente a tensão de uma experiência individual de um amazônida diante da adversidade e desentendimento travados noutra cultura. O norte hemisférico, pautado na homogeneização de valores e comunicação padronizando conduta, sentimento, imaginação e linguagem.

O autor contrariado com o comportamento europeu, se desdobra por vezes na reflexão sobre o uso comum da expressão “desolee” (o que no português diríamos “sinto” e no inglês é o equivalente ao “sorry”) para discorrer sobre um modo coletivo ausente de solidariedade para com o outro: “O desolee é um vazio semântico, é o contrário de guerra que lança a palavra e seu significado ao encontro de novas circunstâncias, vejo o desoles como a atitude da muralha de comunicação. é muralha do eu para com a comunidade com que se com-vive.

Diante da nossa compreensão amazônida, o outro é afluente de vida. O outro é o que corre ao teu lado, atravessa e trespassa e cruza, como um rio. Nossos redários se formam por fruição, experimentando um curso de água, e desvendando as tecnologias possíveis como fora a canoa para a cabanagem e o regatão, para o jornal e televisão. E assim também, como na pororoca, a sobrevivência é um encontro estrondoso de movimento brusco que provoca na diversidade, as ideias, os desentendimentos, as redescobertas e outras linguagens.

Nesse diário de memórias, carregado de um comportamento tropical-úmido percebemos o clamor por trocas solidárias, fluidas e frouxas desmensurável, quase análogo ao nascimento de um rio buscando seu curso: (…) e talvez eu seja muito radical, mas quero continuar a viver na hidrosolidariedade e na hidrogenerosidade que faz a gente trabalhar junto por um projeto coletivo que ninguém sabe o que é. como a liberdade, mas que tem a participação de toda comunidade, com liberdade. Juntos!!!

Portanto, esse relacionar-se íntimo presente nessa terra do meio tropical, espelha-se num tempo que pára com as chuvas, que segue entre o aguaceiro penetrando nos solos para assim encontrar espaços vazios entres brechas e furos até chegar a um outro corpo d’água. E como num movimento solidário, um rio maior precisa se hidratar recebendo águas de rios menores, e então estes se tornam seus afluentes num fluir que compartilha o que não fica, que vai e escorre.

Estrela do Norte

PARÁ = RIO GRANDE. Do Brasil, sentinela do Norte.

Esse rio é minha rua

A imagem que se tem a respeito da Amazônia é formada por um imaginário por vezes edênico e satânico representada arbitrariamente por quem a olha de fora. Esta representação perpetuada pelas mídias, também mimetiza esse imaginário entre os fatos, denominando como único o que é diverso, e impondo uma identidade única a uma pluralidade de culturas, de naturezas e de sociedades.

A imaginação que normalmente se tem da região é, quase sempre, “mais uma imagem SOBRE a região do que DA região” como produto resultante de um contexto marcado por relações de poder. De uma geografia diversa, da nascente do extenso Rio Amazonas até a sua foz, a visão que temos do extremo norte é um rio de horizonte-infinito de onde muito de nossa poesia se referencia. De Belém vive-se conflitos de uma cidade cosmopolita que não sabe se é uma pequena metrópole ou uma grande província. Belém é um constelário de ilhas que representam 69% da superfície da cidade, nasceu por assim dizer sob o signo insular. É uma cidade portuária que recebe pessoas de todo o mundo sendo um ponto de partida de riquezas ancestrais. É onde o arcaico e moderno coabitam o mesmo espaço, a vanguarda e retaguarda com-vivem, o sagrado e o profano não se separam.

Di-versos

“Quanto a este mundo de águas é o que não se imagina. A gente pode ler toda a literatura provocada por ele e ver todas as fotografias que ele revelou, se não viu, não pode perceber o que é.” (5)
Enquanto reunia notas para este verbete deparei-me com um pequeno artigo “um grau ao sul” de Maria Christina que rememora a carta de Mário de Andrade encaminhada a Manoel Bandeira datada em junho de 1927. Esta carta denominada deliciosamente “Por esse mundo de águas” discorre sobre desejo sexual e arrebatamento em torno de suas experiências em Belém do Pará. Ela faz parte de uma série de registros entre fotografias, cartas e notas que Mário de Andrade manteve durante sua viagem à Amazônia, que dizia ser um diário despretensioso do que foi a viagem mais importante na vida do autor.

Neste relato que Mário denominou de “O turista aprendiz: viagens pelo Amazonas até o Peru pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega!” se percebe numa espécie de adesão à civilização tropical, descoberta sentimental intelectual de sua interpretação de um Brasil numa concepção plural de civilização mais sincrética que sintética. A viagem começa no início de maio e termina em meados de agosto de 1927. Já nos 10 primeiros dias o autor anuncia o espanto do seu olhar europeizado diante da desmesura e singularidade do mundo amazônico: “Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintarão que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjinho que ainda tenho dentro de mim (…)”.

A experiência de viagem de Mário de Andrade na região mesmo que curta for fundamental para sua meditação sobre uma civilização tropical. É durante esta viagem que o autor complementa as notas para versão de Macunaíma (redigido um ano antes mas totalmente aberto para inserções e colagem, lançado no ano seguinte), esboça a narrativa Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, além de experimentar a fotografia moderna.

Assim como nos Reslatim, as cartas e notas de Mário sobre a Amazônia sempre marcam de modo contumaz e por vezes irônico a ótica européia tecnicista, marcada pela hegemonia de um pensamento sintético e científico. Mesmo em tempo espaço diferentes, dum campo de visão deslocado (um amazônida na Europa versus um paulista europeu na Amazônia), esses relatos vem carregados de uma tensão que misturam a paisagem com estados afetivos que direcionam a escrita e o pensamento, propondo quase uma oração mental que nos ajuda a seguir profundamente sobre esse horizonte fluido.

Discorrer sobre um vocábulo que confirma-nos em ação é trazer à margem um translado de raízes e rotas que nos representam traduzindo signos e significados que nos semeiam. A hidrosolidariedade não deixa de ser uma utopia amazônica – quando pretendemos seguir um caminho solidário, frouxo e volúvel seguindo a natureza do comportamento das águas, desconsiderando o contágio e a assimilação como caminho único de civilização em direção ao progresso, sucesso e desenvolvimento. A hidrosolidariedade é a intenção – quando muitos juntos se dispõem como fluidos – correndo como a água, vagando a trocar experiências e conteúdos por uma re-produção, distribuição e reciclagem de tudo, aos VIVOS.

Ursa Maior

Ursa Maior

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci… Não é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e traçando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. (Macunaíma – Capítulo XVII: Ursa Maior)
Notas:

(1) Hidrosolidariedade faz parte do glossário sugerido para o projeto de pesquisa [Nu]-: aparelho: Relatos sobre coletivos, arte e colaboração baseado em entrevistas e ações envolvendo agitadores da rede aparelho, em Belém do Pará. A definição é proposta por Bruna Suelen, em sua tese de mestrado em artes na Universidade Federal do Pará.

(2) Arthur Leandro ou Etetuba (homem-forte) é pai-de-santo, guerrilheiro-artista, amigo-amado, pensador e professor na Universidade Federal do Pará.

(3) Rés-do-chão, foi um espaço autônomo na casa do artista Edson Barrus que promovia vivências, criação e discussão em arte. O Rés produziu uma série de publicações independentes além de experimentações entre performances e vídeos, compartilhada entre listas de discussã o, transmissão online, exibições etc.

(4) ROSAS, Ricardo; VASCONCELOS, Giseli (Org.). Net_Cultura 1.0: Digitofagia. São Paulo: Radical Livros, 2006.

(5) ANDRADE, Mário de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

(6) Relato crítico de Maria Christina para 31ª Bienal de São Paulo, acesso disponível em: http://www.31bienal.org.br/pt/post/634

 vocabpol em 07122014 conceito, entradas, índice, movimento, transformação

Tarifa Zero

//  Graziela Kunsch

O que a Tarifa Zero, os bancos e as concessionárias de automóveis poderiam ter em comum mas ainda não têm

 

Colaborou Daniel Guimarães

A contribuição que eu havia pensado originalmente para o Vocabulário Político era contar, desde a minha experiência, como vi a expressão “Tarifa Zero” no transporte coletivo aparecer, ser debatida (inclusive negada) e se transformar ao longo dos últimos nove anos. Eu queria contar da emoção que eu e pessoas de luta próximas como Lúcio Gregori (criador do projeto Tarifa Zero nos anos 1990) e Daniel Guimarães (criador do website TarifaZero.org em 2009) sentimos hoje toda vez que uma multidão de rua grita “Tarifa Zero”, porque foi um longo processo até essa expressão ter sido assumida por todos os coletivos do Movimento Passe Livre e, pouco a pouco – com muito trabalho de base em escolas e comunidades, além dos materiais impressos e das manifestações de rua -, ser apropriada por tantas pessoas. Não cheguei a redigir esse texto e, no processo de organização desta publicação, acabei escrevendo e publicando um outro texto relacionado ao tema, objetivando contribuir diretamente em um processo político, mais que em processos estéticos. A Cris perguntou se eu não teria vontade de publicar este texto também aqui no Vocabulário e, inicialmente, achei que não fazia muito sentido. Ao voltar ao texto, lembrei que seu objetivo principal era trazer para o debate público a Tarifa Zero, no momento em que a grande imprensa escolheu ofuscá-la, colaborando no processo de criminalização das lutas por mudanças sociais e espaciais. E o que é este Vocabulário, senão tornar visíveis certos termos e contextualizá-los?

Não sei se o texto que segue irá colaborar em processos estéticos – espero que sim -, mas estou muito contente de contribuir na publicação desde os movimentos políticos.

Grazi

Originalmente publicado no TarifaZero.org, em 26/6/2014

 

Escrevo este texto a partir da experiência da manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre no dia 19 de junho de 2014 em São Paulo e a sua repercussão na imprensa. Esclareço desde já que o texto é assinado por mim individualmente e que não falo em nome de ninguém. Busco apenas contribuir como pessoa que estava presente no ato e que ainda se choca com as distorções desleais feitas por alguns jornalistas dos veículos de imprensa hegemônicos, que estavam igualmente presentes. Farei uma reflexão sobre o que o ataque a agências bancárias e concessionárias de automóveis poderia ter a ver com a luta pela gratuidade no transporte, mas que no ato do dia 19 não teve; além de uma crítica à criminalização dos movimentos sociais. Escolhi me posicionar diante do que considero uma tática equivocada para o nosso momento atual, mas tenho a clareza de que a verdadeira violência é promovida pelo Estado, tanto pela sua polícia como pelas suas políticas públicas distorcidas, que servem mais a interesses privados.

Começo comentando o título dado pelo Movimento Passe Livre ao evento. No lugar do mote “Não vai ter copa”, limitado ao momento específico que estamos vivendo, o MPL propôs “Não vai ter tarifa”, que expressa a luta de mais de nove anos de existência do movimento e dos anos futuros. Eu tendo a não gostar muito desses títulos que operam pela negativa; acho que funciona mais ser propositivo (algo como “Vai ter Tarifa Zero”). Ao filmar o ato eu tinha que fazer um certo esforço para enquadrar a faixa “Não vai ter tarifa” inteira. Se algumas pessoas se posicionassem na frente do “Não”, lia-se “vai ter tarifa”, e talvez esta parte da frase fique impregnada no nosso inconsciente. Ainda assim considerei a escolha do movimento pertinente, pois se a Copa no Brasil em breve irá terminar, outros tantos problemas (incluindo aqueles causados pela FIFA) permanecerão por aqui (1). Além de se solidarizar com quem é contra a FIFA e contra o mau uso do dinheiro público – o “Não vai ter copa” está implícito no “Não vai ter tarifa”, é a origem do novo nome -, o movimento sugere um foco mais específico. E faz todo sentido pautar o transporte coletivo no contexto da Copa, porque a maior parte dos investimentos do governo para a Copa foram, supostamente, em mobilidade urbana. Digo supostamente porque as obras realizadas (ou planejadas, muitas não chegaram a ser construídas ou finalizadas) não necessariamente implicaram em uma maior mobilidade das pessoas pelas cidades (2).

Havia também outro contexto para o acontecimento da última quinta-feira em São Paulo: a comemoração de um ano na revogação do aumento de vinte centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trem, em 19 de junho de 2013, acompanhada pela redução de tarifas no transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras. Vez ou outra vejo pessoas dizendo que as revoltas de junho não tinham objetivos claros ou que não tiveram conquistas concretas, que “não deu em nada”. A redução no preço das tarifas do transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras é uma conquista concreta e tanto, que faz uma enorme diferença na vida de muita gente (3). Apenas é insuficiente, e esta insuficiência foi expressa no subtítulo que o MPL deu ao ato, tanto no cartaz de convocação como no panfleto distribuído: “Agora só faltam 3 reais” (4).

Falta mais que três reais, alguns vão dizer, assim como, no ano passado, disseram que não era por vinte centavos. Mas aqui irei me deter nas reivindicações específicas do Movimento Passe Livre, que é um movimento de transporte. Para o MPL, o transporte é um direito essencial, que tem o potencial de articular espaços urbanos e outros direitos. Só existirá educação pública de verdade – acessível a todas as pessoas – se o transporte também for público de verdade; do mesmo modo que hospitais, parques e espaços culturais gratuitos só serão economicamente acessíveis a todas as pessoas se não houver mais tantas catracas no meio do caminho (as catracas dos ônibus, dos terminais e das estações de trem e metrô) (5). Lutar pela gratuidade no transporte não é pouca coisa e é importante os leitores deste texto terem isto no horizonte. Esta luta não exclui a necessidade de outras tantas lutas por mudanças sociais e transformações urbanas, mas exige foco e adensamento para ser bem feita.

Os objetivos do ato do dia 19 foram publicamente declarados desde o início do ato, durante a leitura coletiva de um manifesto, amplificada na forma de jogral por quase todos os presentes. Entre outras frases, o jogral afirmava que “Se a Copa é dos ricos” – e um jogo começava no Itaquerão naquele exato momento -, “a cidade é nossa!” (6). Estávamos ali pela comemoração de um ano da revolta popular que barrou o aumento nas tarifas; pela readmissão de 42 metroviários injustamente demitidos; e, principalmente, por Tarifa Zero. Digo principalmente porque a maior parte dos cartazes, das faixas e das ações realizadas tinham como foco a gratuidade no transporte coletivo (7).

A primeira ação do dia, completamente ignorada pela imprensa hegemônica, na Praça do Ciclista, foi a coleta de assinaturas para o projeto de lei de Tarifa Zero de iniciativa popular. Para um projeto de lei municipal ser apresentado pelas pessoas comuns (e não por vereadores) são necessários dados e assinaturas de 5% do eleitorado. Em São Paulo este número equivale a aproximadamente 500 mil pessoas – um número bastante alto, sendo que não valem assinaturas virtuais, como acontece nas petições online. O trabalho de conversa e coleta de assinatura na escala um-pra-um vem acontecendo desde 2011, e quem se interessar por conhecer o texto do projeto de lei e em colaborar nesse processo pode acessar a página da campanha (8)

Uma das últimas ações do ato, que desceu toda a Av. Rebouças e ocupou a Marginal Pinheiros, foi a queima de diversas catracas simbólicas, de papelão, seguida da leitura coletiva de um novo manifesto, com um “recado bem claro”, direcionado principalmente aos empresários que lucram com o deslocamento dos paulistanos: “Agora é o povo que vai mandar no transporte” (9).

Após a queima de catracas, os organizadores do ato puseram música para tocar (um carro com aparelhagem de som foi posicionado na via) e um pequeno campo de futebol foi desenhado no asfalto. Os presentes pularam as catracas ainda em chamas, dançaram e jogaram futebol em plena Marginal (os manifestantes são contra a Copa elitista e higienista da FIFA, não contra o futebol). Bandeirinhas juninas e uma grande bandeira com a expressão “Passe Livre” foram penduradas em postes e na ponte Eusébio Matoso.

A beleza de se realizar uma festa em plena Marginal foi ofuscada na imprensa hegemônica pela ação isolada de uns poucos presentes, que haviam quebrado vidraças de agências bancárias ao longo da Av. Rebouças e, ao final do ato, vidraças e automóveis de uma concessionária da Mercedes Benz. Essas ações foram claramente uma espécie de protesto paralelo, ao ponto de militantes do Movimento Passe Livre terem se posicionado de braços dados diante de agências bancárias da Rebouças, buscando dialogar com quem queria quebrar símbolos do capitalismo (no caso, bancos e concessionárias), explicando que o objetivo do ato não era quebrar nada, mas realizar uma festa popular – em contraposição à festa da elite dentro dos estádios caríssimos – por Tarifa Zero.

Esses militantes orientavam as pessoas a seguir para a Marginal e a grande maioria de manifestantes fez côro com eles, gritando para o ato seguir até a Marginal, de acordo com o planejado e publicamente divulgado (com o conhecimento da imprensa e da polícia). Surpreendentemente, uma repórter do jornal O Globo interpretou que “seguir para a Marginal” significava “não vamos quebrar nada na Rebouças, somente na Marginal”. Só posso pensar que se trata de desonestidade ou de um erro grave de interpretação, pois qualquer pessoa presente sabia que seguir até a Marginal significava tão somente não dar atenção para esse protesto paralelo e seguir o curso planejado para a manifestação.

Em nota divulgada no dia 21 de junho (10), o Movimento Passe Livre se recusa a julgar o que estou chamando de protesto paralelo, afirmando que não cabe ao movimento legitimar ou deslegitimar impulsos de indivíduos revoltados, mas deixa claro que essas ações não estavam entre os objetivos do ato organizado. O movimento critica o uso do termo “mascarados” pela imprensa, lembrando que todas as pessoas têm o direito de preservar a sua identidade (a manifestação foi amplamente fotografada e filmada) e se proteger de uma eventual perseguição e criminalização por parte da polícia (o que não é uma remota possibilidade, mas um fato recorrente). Historicamente, o uso de panos para cobrir os rostos tem também outro sentido, muito lindo: os zapatistas cobrem seus rostos com lenços com a intenção de configurarem um só rosto; uma forma de dizer “Agora não sou mais eu, somos nós”.

Nem todas as pessoas que tinham seus rostos cobertos no dia 19 se envolveram em depredações, concentrando seus esforços coletivos (e não seus impulsos individuais) em uma ação que pode ser considerada muito mais radical e inovadora que quebrar coisas: bloquear uma das maiores vias para automóveis da cidade com uma festa. Uma festa pública, com a presença de milhares de pessoas (11).

Quebrar bancos e concessionárias não necessariamente chama a atenção dos governos – a não ser para mobilizar seu lado mais autoritário e mais repressor -, e não gera melhores serviços públicos (estou supondo que estas eram algumas das intenções dos meninos que realizaram essas ações, pois foi o que declararam para a TV Folha) (12). Também não quebra o capitalismo. Alguém poderia argumentar que essas ações possuem potencial força simbólica, mas só teriam força de fato se refletissem uma revolta ou um desejo coletivos, o que não foi o caso do dia 19. O que vimos ali foi um espetáculo repetitivo, construído junto com a imprensa e com a polícia. Havia fotógrafos e cinegrafistas posicionados diante de agências bancárias antes mesmo de a manifestação passar por esses pontos e uma total ausência de policiais – a não ser nas duas extremidades do ato (Praça Mal. Cordeiro de Farias – perto do túnel da Av. Dr. Arnaldo – e Marginal) e, possivelmente, na presença de policiais à paisana ao longo do trajeto.

A polícia alega que o movimento se declarou responsável pela segurança do ato, mas a preocupação do movimento, segundo a mesma nota anteriormente citada, era tão somente que se evitasse uma presença ostensiva da polícia militar em um ato que se propunha a ser uma comemoração, uma festa; pois normalmente a presença da polícia e a atitude de alguns policiais contribui para que ações como essas aconteçam. Isso é parte do espetáculo midiático, que inclusive sempre coloca jovens vestindo moletom e atirando pedras em igualdade de forças com policiais fortemente armados e com seus corpos totalmente protegidos. Outra preocupação expressa pelo movimento na imprensa era que o ato fosse reprimido antes mesmo de começar, como havia acontecido, uma semana antes, no protesto contra a Copa nos arredores do Itaquerão, entre outros protestos recentes violentamente reprimidos. Além disso, quem coordena a polícia é a Secretaria de Segurança Pública/o governo do Estado, não o movimento social. É desonesto a polícia se colocar numa posição passiva, culpabilizando o movimento por sua omissão. Ao que parece, tudo isso foi construído com o objetivo de reavivar o inquérito policial nº 1/2013 do DEIC, que investiga manifestantes e é considerado ilegal pelos advogados e integrantes do movimento, uma vez que não apura crimes, mas persegue e criminaliza pessoas (13).

De todo modo, o que me motivou a escrever este texto foi discorrer um pouco mais sobre a ineficiência de se quebrar agências bancárias e concessionárias como forma de superar o capitalismo e levar a discussão pública para o verdadeiro foco do ato do dia 19. As vidraças, os caixas eletrônicos e os automóveis quebrados já devem ter sido repostos, ou serão repostos muito em breve. Esses espaços provavelmente possuem seguro, de modo que os quebra-quebras sequer implicam em altos prejuízos aos seus donos. Por que será que a imprensa hegemônica escolhe sempre dar ênfase às depredações feitas por bem poucas pessoas (no dia 19 devem ter sido, aproximadamente, 10 entre 2.000 pessoas – 0,5 % dos manifestantes), ao invés de noticiar as ideias que são verdadeiramente perigosas? A proposta de Tarifa Zero do Movimento Passe Livre tem o potencial de atacar o capital de um modo muito mais interessante: a taxação dos mais ricos, aí incluídos os donos de bancos e de concessionárias de automóveis.

A expressão “Tarifa Zero” foi proposta pelo engenheiro e músico Lúcio Gregori no começo dos anos 1990, quando ele foi secretário de Transportes em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, primeira prefeitura do Partido dos Trabalhadores nesta cidade. O projeto de ônibus Tarifa Zero previa um pequeno aumento no IPTU – o imposto progressivo sobre propriedade – como forma de financiamento (14). Por questões políticas o projeto não chegou a ser votado e foi desqualificado pela imprensa, apesar de pesquisas feitas com a população terem demonstrado que uma imensa maioria era favorável à Tarifa Zero, mesmo com o conhecimento de que ela implicaria em um aumento no IPTU.

Quase vinte anos depois a expressão foi recuperada pelo Movimento Passe Livre e, durante as revoltas de junho de 2013, podia ser ouvida nos mais diferentes espaços de São Paulo, dita por pessoas as mais diferentes. Ainda que, nesta cidade, as grandes manifestações de junho tenham sido pela revogação dos vinte centavos de aumento nas tarifas de ônibus, trem e metrô, a luta de longo prazo do movimento – contra a própria existência dessas tarifas – ficou em evidência e se tornou mais popular.

Uma coisa que tanto Lúcio Gregori como o movimento sempre deixaram clara é que a Tarifa Zero não significa “ônibus de graça”. O transporte tem custos, é claro. Gasolina, manutenção, salário dos trabalhadores etc. Assim como é necessário o governo pagar salários de professores e demais funcionários nas escolas públicas e comprar mesas, cadeiras, lousas, giz, e alimentos para as mesmas, entre outras coisas. Mas tudo isso, no caso das escolas, é pago por todos nós, indiretamente, através de impostos. Não existem catracas na entrada das escolas para cobrar os custos da educação diretamente dos alunos, a cada vez que eles usam esse serviço público; e seria um absurdo se isso fosse sequer cogitado.

O problema é que, no Brasil, quem mais paga impostos, se calcularmos o valor dos impostos embutidos em produtos de consumo proporcionalmente à renda do indivíduo, são os mais pobres. As pessoas mais ricas questionam mais o pagamento de impostos que os pobres porque têm mais consciência de quanto pagam, pois normalmente seus impostos são sobre propriedades e vêm na forma de boletos, são visíveis. Os mais pobres não possuem propriedades e pagam impostos invisíveis, que representam boa parte da sua renda, sem ideia de quantos % de impostos estão pagando, ou mesmo que estão pagando (15). É necessária uma inversão na cobrança de impostos; quem tem mais dinheiro precisa pagar mais, proporcionalmente à sua riqueza.

O financiamento do transporte precisa acontecer de maneira indireta, como já acontece nas escolas e nos hospitais públicos, mas através da criação de um fundo específico para o transporte, cuja receita deve vir fundamentalmente da cobrança de impostos progressivos, entre outras possíveis arrecadações. Imposto progressivo é aquele cujo percentual aumenta de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. No caso do IPTU, por exemplo, proprietários de casas pequenas são isentos do pagamento e proprietários de casas médias e grandes pagam um valor proporcional ao tamanho/valor dos imóveis. Desde os primeiros anos de existência do Movimento Passe Livre (não somente em São Paulo, mas em diversas cidades brasileiras), os panfletos sugerem que a arrecadação venha de uma maior cobrança de impostos de proprietários e/ou grandes acionistas de bancos, multinacionais, resorts, shopping centers, mansões e automóveis de luxo (16).

A taxação da riqueza é necessária para haver distribuição de renda e diminuição da desigualdade social. Além disso, é a elite quem mais se beneficia do deslocamento de milhões de trabalhadores diariamente.

No dia 10 de junho, o jornal reproduziu uma notícia do Financial Times que informa que a riqueza privada global, concentrada em 1,1% de toda a população mundial, atingiu o recorde de 152 trilhões de dólares (17). Este número é tão somente o excedente de riqueza de famílias muito ricas. O dinheiro que fica no banco se reproduzindo/se multiplicando, gerando novos excedentes tanto para essas famílias como mais lucros para os bancos. Com esses recursos seria possível atender a uma série de demandas sociais (talvez todas) não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.

Em fevereiro deste ano, o portal G1 divulgou uma notícia informando que o lucro de quatro bancos brasileiros no ano de 2013 somado supera o PIB (Produto Interno Bruto) de 83 países (18). O Banco do Brasil registrou lucro líquido de 15,75 bilhões de reais, o Itaú Unibanco de 15,696 bilhões, o Bradesco de 12 bilhões e o Santander de 5,7 bilhões. Para se ter a dimensão desses valores, todos que somos contra o mau uso do dinheiro público nos estádios “padrão FIFA” estamos criticando o uso de aproximadamente meio bilhão a um bilhão por estádio. Se questionamos quantas escolas poderiam ter sido construídas ou melhoradas com o valor investido em cada estádio, imaginem quantas coisas poderiam ser feitas se esses bancos fossem mais taxados e essa riqueza acumulada socialmente distribuída.

A proposta de financiamento da Tarifa Zero através de uma reforma tributária que implique em um aumento proporcional de impostos dos muito ricos significa que quem tem mais dinheiro irá contribuir com mais, quem tem menos irá contribuir com menos, e quem não tem dinheiro não precisará contribuir com nada. E todos, sem exceção, poderão usar o transporte coletivo, tornado “público” de verdade.

As cidades pelo mundo que adotaram a Tarifa Zero no transporte experimentaram uma drástica redução no uso de automóveis particulares. Na cidade de Hasselt, Bélgica, que por mais de dez anos teve uma política de gratuidade no transporte coletivo, a utilização do transporte público aumentou mais de doze vezes (de 360.000 passageiros o sistema passou a acolher 4.614.844 passageiros) (19). Nos Estados Unidos, algumas cidades adotam a Tarifa Zero em horários específicos, por exemplo durante o almoço, estimulando pessoas que trabalham no mundo corporativo e que usam automóveis como meio de circulação a usar o transporte coletivo para ir almoçar e retornar ao trabalho.

Ainda que os custos de um sistema Tarifa Zero em uma cidade grande como São Paulo sejam altos, exigindo altos investimentos públicos, é preciso se ter em mente que a Tarifa Zero tem o potencial de gerar toda uma economia sistêmica. No caso da saúde pública, por exemplo, os maiores gastos por internação nos hospitais são 1. por problemas respiratórios, advindos da poluição do ar pelo excesso de automóveis particulares em circulação; e 2. acidentes de trânsito, em sua maioria causados por automóveis particulares (20).

A criação de um sistema Tarifa Zero no transporte coletivo não supera o capitalismo, mas pode enfraquecer os paradigmas onde os bancos e as concessionárias de automóveis atuam. E melhorar a vida da maioria da população.

Quebrar vidros para a imprensa fotografar não está construindo a necessária força social para experimentarmos mudanças na nossa vida cotidiana. Quem se lembra da alegria que foi ver as telinhas das catracas dos ônibus, trens e metrôs voltar a marcar “3,00” reais no lugar de “3,20”, após termos barrado esse aumento, nas ruas? As manifestações de junho incluíram depredações, reconheço, mas como expressão de uma revolta coletiva, incontrolável, e, principalmente, como reação à forte repressão policial (apesar de a grande imprensa ter o costume de inverter essa ordem; sempre sugerindo que quem começa a violência são os manifestantes).

No ato do dia 19, as depredações aconteceram à revelia da enorme maioria de manifestantes presentes, sendo consideradas inclusive autoritárias, infantis e machistas por muitos de nós. É importante que se respeite aquilo que é combinado coletivamente, de modo que outras pessoas – como mulheres grávidas, crianças e pessoas idosas – também possam participar da festa (21).

A repressão policial ao final do ato do dia 19 caiu sobre todos os presentes, de modo que a vida de todas essas pessoas estava em risco, exposta a bombas de gás, spray de pimenta (22), balas de borracha, pancadas de cassetetes e prisões arbitrárias. Eu já participei de diversos protestos sem depredações que foram igualmente ou mais reprimidos, reconheço novamente, mas neste dia as pessoas já estavam voltando para casa ou caminhando até o Largo da Batata, onde o ato seria concluído, quando a concessionária da Marginal começou a ser quebrada. Não foi nada legal tantas pessoas terem sido atacadas e perseguidas pela polícia, tornadas reféns da ação de poucos que estavam dispostos a esse enfrentamento (bem poucos mesmo; no registro da TV Folha referenciado anteriormente contei três meninos dentro da concessionária, em meio a diversos jornalistas, e entre quatro e cinco na agência bancária, não dá para saber ao certo). Quebrar vidros é diferente de ferir a integridade física e jurídica de pessoas, mas, neste dia – ainda que eu não aceite isto como justificativa, a polícia precisa deixar de existir desta forma -, o ataque contra vidros praticado pelos meninos foi usado como desculpa para uma violência generalizada contra as pessoas, pela polícia. Não somente contra manifestantes, mas contra qualquer pessoa que tenha dado o azar de estar na região do Largo da Batata naquele momento. Mais gravemente, essas ações isoladas estão agora sendo usadas para o Estado seguir criminalizando as lutas sociais, instalando um estado policial que remete à ditadura militar (23). Tudo isso limita, propositadamente, a capacidade de atuação dos movimentos, que precisam dedicar todos ou quase todos os seus esforços para responder a essa criminalização.

Apropriando-me das palavras de um amigo de amigos em seu mural público de Facebook, eu “não condeno a tática [Black Bloc], mas apenas dizer que não a defendo não é mais suficiente. Precisamos dizer que não concordamos e que isso está atrapalhando a luta social que pretende colocar interesses públicos na frente dos interesses privados que historicamente governam a sociedade. A confusão entre uma tática que busca o apoio popular massivo para as suas ideias e outra que pouco se importa com a opinião pública só fortalece quem contra ambas está” (24).

A Tarifa Zero precisa do apoio popular das massas, pois é as massas que irá beneficiar. O esforço dos militantes do MPL, que há quase uma década fazem discussões sobre mobilidade urbana e direito à cidade em escolas e em comunidades/bairros que possuem diversas carências no transporte coletivo, sempre foi de agregar pessoas e, mais que isso, estimular sua auto-organização. Não podemos reduzir a Tarifa Zero a uma compreensão burocrática da luta. A liberdade de nos movimentarmos pelas cidades sem restrições econômicas é uma ideia nova e radical. Para ser acessível a todas as pessoas, precisa existir como direito e política pública, pois nem todos possuem disposição ou condição física para pular catracas e para sustentar enfrentamentos com a polícia.

É só imaginar muitos ônibus sem catraca circulando para perceber a força dessa ideia. Imaginar que a gente pode entrar e sair por qualquer porta dos ônibus, sem precisar se esmagar até a porta de saída. Que a gente pode traçar qualquer percurso pela cidade, parando para fazer coisas ao longo do caminho. Que pessoas que estão excluídas da cidade por não poderem pagar as tarifas do transporte vão passar a ser incluídas. Que vão passar a chegar a lugares onde atualmente não chegam. A poder frequentar os espaços culturais gratuitos, as escolas e os hospitais. A visitar seus amigos e familiares com maior facilidade. A ficar mais próximas umas das outras, tornando a cidade, ao mesmo tempo, grande e pequena.

Lembro de um dia pós-junho de 2013 em que eu saí do metrô República e, ao caminhar pela praça, olhei para trás e tive a certeza de que um dia as pessoas acharão absurdo imaginar que no passado era necessário pagar para usar o transporte público. Quero muito estar viva para me movimentar nessa cidade Tarifa Zero e para conhecer a geração que vai crescer sem catracas no meio do caminho. Assim como hoje estudantes e suas famílias se beneficiam do meio-passe escolar graças aos esforços de pessoas que lutaram por ele décadas atrás, nós vamos poder dizer que colaboramos nesse processo coletivo e ensinar a luta para nossos filhos. Precisamos de experiências vitoriosas para as pessoas continuarem lutando. Quebrar vidro não cumpre esse papel. Pode cumprir alguns papéis táticos, mas, consistentemente, não muda a vida cotidiana das pessoas.

 

Notas

(1) O que não deslegitima, de modo algum, a importância dos protestos contra a FIFA ou contra as remoções de famílias pobres de suas casas durante todos os anos de preparação da Copa, o valor absurdo de recursos públicos investidos na reforma ou na construção de estádios, a morte de operários da construção civil, o turismo sexual etc. Os que quiserem conhecer melhor todas as motivações das pessoas que foram às ruas contra a FIFA, contra algumas implicações do evento na vida de pessoas pobres e contra determinadas ações dos governos brasileiros, podem ler o conjunto de reportagens realizadas pela Agência Pública, publicadas na seção “Copa pública”: http://apublica.org/category/copa-publica/. Também recomendo a seção “Não tem dinheiro pra Tarifa Zero?”, do portal TarifaZero.org, que compartilha notícias sobre altos investimentos dos governos como crítica ao mau uso de dinheiro público, sugerindo a necessidade de novas prioridades: http://tarifazero.org/category/uncategorized/naotemdinheiro/ . Neste contexto, destaco uma notícia que compartilhamos sobre a Arena da Amazônia, que custou 669,5 milhões de reais e que foi construída para sediar quatro jogos da Copa e nada mais: http://tarifazero.org/2014/03/09/manaus-apos-mortes-e-r-6695-mi-arena-da-amazonia-sera-aberta-neste-domingo/ . Três trabalhadores morreram na construção deste estádio e não existe demanda dos times e das torcidas locais que justifique uma arena de enormes proporções. Alguns usos vêm sendo cogitados para o estádio após a Copa, mas, seja qual for esse uso, certamente não poderia ter sido priorizado no lugar de demandas sociais urgentes que devem existir na cidade de Manaus. Finalmente, recomendo a leitura do número atual da excelente revista Retrato do Brasil (n. 83, junho de 2014), que traz uma matéria sobre que tipo de legado a Arena Corinthians (o “Itaquerão”) deixará para a Zona Leste de São Paulo e uma reportagem sobre os faturamentos da FIFA e de seus parceiros na Copa do Brasil.

(2) Ver “A cereja sem bolo”, reportagem de Thiago Domenici na revista Retrato do Brasil n. 73, agosto de 2013. Apenas saliento que as vaias à Dilma a que Thiago se refere no texto são dos acontecimentos do ano passado, em sua maioria por razões diferentes dos xingamentos feitos por convidados vips na abertura da Copa no Itaquerão. PDF da revista disponível em https://dl.dropboxusercontent.com/u/27221790/Retrato%20do%20Brasil/RB73.1-17.pdf.

(3) No Brasil aproximadamente 37 milhões de pessoas não podem pagar as tarifas do transporte “público”, e a cada vez que essas tarifas aumentam essa exclusão aumenta também. O panfleto distribuído no dia 19/6 pode ser lido em http://tarifazero.org/2014/06/19/nao-vai-ter-tarifa-panfleto-do-mpl-sao-paulo-para-o-ato-de-hoje-dia-19/.

(4) Preço atual das tarifas de ônibus, trem e metrô na cidade de São Paulo.

(5) Ouvir a Canção para o Movimento Passe Livre, de Rodolfo Valente (2006): http://tarifazero.org/2013/06/17/sao-paulo-cancao-para-o-movimento-passe-livre/.

(6) Texto do jogral: “Pessoal / Pessoal / Estamos aqui hoje / Para lutar / Por um transporte público de verdade / Enquanto os governos / Gastam bilhões com a Copa / E com o transporte individual / Somos humilhados todos os dias / Nos ônibus e trens lotados / E quem tenta resistir / É criminalizado / Motoristas, cobradores e metroviários / São demitidos por fazer greve / E quem tenta se manifestar / É reprimido pela Polícia Militar / Mas nós sabemos / Que só com a união de todos os trabalhadores / Os que viajam no transporte / E os que trabalham no transporte / É que derrotaremos / Os empresários e seus governos / Que todos os dias / Nos exploram nas catracas / Por isso hoje / Saímos às ruas para dizer: / Se a copa é dos ricos / A cidade vai ser nossa / Tarifa Zero quando? / Tarifa Zero já!”.

(7) No pequeno vídeo que realizei sobre o ato, intitulado “Túnel Av. Paulista – Dr. Arnaldo”, é possível visualizar as faixas “NÃO VAI TER TARIFA” e “TARIFA ZERO PAGA PELOS RICOS”: https://vimeo.com/98782301.

(9) Texto do segundo jogral: “Pessoal / Pessoal / Marchamos desde a Av. Paulista / Até aqui, a Marginal Pinheiros / Para mostrar que / Quem constrói essa cidade todo dia / Quase não pode usar a cidade / Mostramos que / Não vamos parar de lutar / Até a tarifa acabar / Até não existir mais catracas / Até todos os trabalhadores grevistas / Serem readmitidos / Até os donos do transporte / Pararem de lucrar / Com o nosso sufoco! / Vamos ocupar a Marginal / Vamos ficar na Marginal / E realizar uma grande festa popular / Que deixe bem claro / Que não aceitamos mais essa cidade segregada / Onde passavam carros de luxo / Vão ficar catracas em chamas / Para deixar um recado bem claro / Agora é o povo que vai mandar no transporte!”.

(11) A polícia militar contou 1.300 manifestantes. O movimento estimou que havia muito mais gente, em torno de 3.000 pessoas. A imprensa divulgou, como sempre, o número dado pela PM, com raras exceções. Cito um comentário de Pablo Ortellado após as primeiras notícias divulgadas, publicado em seu mural público de Facebook: “Acho incrível a falta de coerência da imprensa no uso dos dados da polícia militar para estimar manifestantes. O protesto é contra o Estado, o Estado dá número subestimado de manifestantes e a imprensa usa esse número e só esse número sem o menor pudor – sem notar que essa opção por si só já compromete o princípio do equilíbrio jornalístico”.

(12) Logo no início do vídeo editado pela TV Folha um menino diz: “Quebrar tudo. Só assim que o governo ouve, irmão”. Aos 27 segundos outro diz: “Eu quero meu direito, eu quero escola, eu quero hospital. Foda-se a Copa”. O prólogo desta vídeo-reportagem mostra exclusivamente ações de depredação e repressão policial, anunciando a escolha editorial que estará presente ao longo de todo o vídeo, em detrimento de outras possibilidades, mais fiéis ao que se passou na maior parte do tempo da manifestação: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/06/1473409-mpl-tenta-mas-nao-consegue-evitar-vandalismo-em-ato-veja-imagens.shtml .

(13) Segundo a nota “Mais uma vez, não vamos ao DEIC e denunciamos o inquérito ilegal”, de 23/6/2014, o MPL informa que no dia seguinte ao ato, sexta-feira, 20 de junho, “a policía esteve novamente nas casas de militantes, intimando-os pela quinta vez para depor no DEIC e ameaçando seus familiares” (ver http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/23/mais-uma-vez-nao-vamos-ao-deic-e-denunciamos-o-inquerito-ilegal/). Ver também os manifestos publicados anteriormente: “Porque não vamos depor no DEIC”, de 24/1/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/01/24/porque-nao-vamos-depor-no-deic/) e “Pelo trancamento do inquérito nº 1/2013 do DEIC”, de 9/6/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/09/pelo-trancamento-do-inquerito-ilegal-no-12013-do-deic/).

(14) Segundo Lúcio Gregori, em troca de emails comigo, “esses recursos viriam de uma reforma tributária, sendo que 33% dos imóveis, com menos de 60 metros quadrados, eram isentos de IPTU e, portanto, teriam somente ganhos com a gratuidade dos transportes. Outros 44,7% dos imóveis teriam IPTU entre Cr$ 1,00 até Cr$ 1990,00 cruzeiros mensais da época. No caso dos moradores desses 44,7 % imóveis, que teriam o reajuste até Cr$1990,00, como ficaria? A tarifa dos ônibus era de Cr$ 35,00. Numa estimativa conservadora, duas pessoas que morassem num desses imóveis, gastariam Cr$140,00/dia x 22dias = Cr$ 3080,00 somente para deslocamento residência/trabalho/residência em 22 dias úteis. Assim teriam uma vantagem, na pior das hipóteses, de Cr$(3080,00 – 1990,00) = Cr$1090,00 por mês, devido à gratuidade nos transportes. Então, 33% + 44,7% = 77,7% das residências da cidade e, portanto, seus moradores, ganhariam com a gratuidade vinculada à reforma tributária”. Outra informação relevante é que na gestão de Lúcio como secretário de Transportes a frota de ônibus de São Paulo aumentou de 7.600 ônibus para 9.600 ônibus e o projeto de Tarifa Zero previa novo aumento da frota, de mais 50% (mais 4.800 ônibus), para atender a demanda que seria gerada pela gratuidade. Lúcio recomenda a leitura do texto “Procurando entender a Tarifa Zero”, de Chico Whitaker (1990): http://tarifazero.org/2011/08/25/procurando-entender-a-tarifa-zero/.

(15) Recomendo a leitura da entrevista com o economista Marcio Pochmann no jornal Brasil de Fato (20/2/2014). Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/27525.

(16) Os recursos não precisam vir do IPTU como ocorreria no projeto dos anos 1990; os técnicos podem estudar a aplicação de uma “taxa transporte” sobre atividades econômicas que se beneficiam com a mobilidade, incorporando o vale-transporte nessa taxa. Contribuição de Lúcio Gregorio.

(19) Para conhecer experiências de Tarifa Zero pelo mundo, ver a seção “Boas experiências” do portal TarifaZero.org: http://tarifazero.org/experiencias/. Destaque para Tallin (Estônia), com 420 mil habitantes, primeira capital europeia a adotar a gratuidade no transporte para todos seus habitantes.

(20) No artigo “O transporte público gratuito, uma utopia real” (coletânea Cidades rebeldes, São Paulo: Boitempo, 2013), o sociólogo e editor João Alexandre Peschanski discorre sobre outras justificativas de ordem econômica para a Tarifa Zero. Ver também seu texto “Motivos econômicos pelo transporte público gratuito”, no blog da editora Boitempo: http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/10/motivos-economicos-pelo-transporte-publico-gratuito/.

(21) Uma reflexão útil pode ser repensar as táticas usadas pela Ação Global dos Povos (que ficou mais conhecida como “movimento antiglobalização”) no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000: tudo o que seria feito no ato do grupo era decidido em assembleia. O que escapasse disso era tratado como ação de agentes infiltrados. Servia muito bem para evitar sequestros de pauta, mas funciona melhor para dizer que o movimento está disposto a decidir tudo democraticamente. Contribuição de Daniel Guimarães.

(22) O spray de pimenta é proibido em muitos países até mesmo como arma de guerra, mas no Brasil é largamente usado como arma “não letal” contra civis. O gás pode ser letal para pessoas que possuem problemas respiratórios, cardíacos e para mulheres grávidas.

(23) Pouco antes da finalização deste texto, o secretário de Segurança Pública Fernando Grella anunciou que a polícia será acionada para levar 22 militantes do Movimento Passe Livre à força para depor no DEIC. Como resposta, o movimento está convocando o secretário e integrantes de movimentos sociais para debater, publicamente, a criminalização em curso dos movimentos e exigir, novamente, o trancamento do inquérito nº1/2013. Será no dia 3 de julho, às 15h, diante do Tribunal de Justiça (Praça da Sé): https://www.facebook.com/events/663391543743365/.

(24) Pedro Ekman. Ele concluiu seu depoimento citando Sun Tzu em A arte da guerra: “Estratégia sem tática é o caminho mais longo para a vitória. Tática sem estratégia é o estrondo que se escuta antes da derrota”. Como referência histórica e aprofundamento da questão recomendo o texto “O movimento de ação direta britânico dos anos 1990”, de Leo Vinicius (2009), sobre o auge e a criminalização do movimento Reclaim the Streets, no Reino Unido: http://passapalavra.info/2009/08/11797.

 

 vocabpol em 23112014 ação, entradas, índice, manifestações, movimento, narrativa

Vizinhança

pequeno relato de uma experiência de vizinhança.

 

// por Enrico Rocha

O Poço da Draga existe ali, no centro de Fortaleza, pertinho da praia, há mais de 100 anos. Para a maioria da cidade, que não consegue ver suas centenas de casas por detrás de galpões vazios a espera de bons negócios, o Poço quase nem existe, nunca existiu. Para os governos, que nunca lhe concederam nem mesmo o direito de saneamento básico, mesmo localizado em área tão nobre da cidade, ele também não existe ao certo. Para mim, que escolhi como lugar de morada a sua vizinhança, o Poço é um convite, ou uma convocatória, para pensar no sentido de existência.

As pessoas que lá vivem, que são o sentido  principal do que chamamos Poço da Draga, seguem uma ocupação que se deu no momento da construção do primeiro porto de Fortaleza. A pouca profundidade do mar na costa da cidade exigia a ação de dragas para que os navios se aproximassem. Daí o nome. Lá, gente vinda do interior, quase sempre fugindo das ameaças da seca, encontrou trabalho e logo fixou residência próximo à cancela do porto. Aliás, o sobe e desce da cancela deu outro nome ao lugar, Baixa Pau, que é confundido pelo resto da cidade como sinônimo de violência.

De sua origem eu sei pelo que me contam os moradores com quem hoje convivo. O encontro com alguns deles se deu há bastante tempo, em situações que se definem por nossas afinidades eletivas. O convívio de vizinhança é recente e se intensificou quando nos sentimos igualmente ameaçados. É que o governo do estado do Ceará deu início na proximidade do Poço e de minha casa, a uma grande obra, dessas que se acompanham de muita publicidade e fantasia de desenvolvimento. Nossa reação foi enfrentar a ameaça de exclusão que seria consequência do projeto Acquário Ceará e a partir daí passamos a nos encontrar frequentemente, a nos contagiar uns dos outros, a nos comprometer com interesses comuns, a enfrentar os conflitos que se apresentam a partir de nossas diferenças, a tecer relações de confiança.

Não é a primeira vez, e desejo que não seja a última, que eu me envolvo com uma situação de conflito urbano, dessas que nos exigem um posicionamento claro. Entretanto, em meio a essa experiência com o Poço, venho assumindo com mais entusiasmo uma posição que me permite enfrentar minhas próprias condições de existência sem me deixar guiar por falsos conflitos, como opor prazer e trabalho, profissionalismo e cidadania. Ou rimar amor e dor.

O Poço da Draga se apresenta a mim como uma realidade material e concreta que não me é alheia. Levo ao Poço a mesma inquietação que mobiliza em mim um interesse pela produção de arte. É a partir da relação sensível com o mundo e da nossa capacidade de intervir sobre a sua forma, de articular seus sentidos, que me ponho no Poço e compreendo que transformar a matéria do mundo é uma necessidade urgente e cotidiana. No entanto, não há manuais práticos, projetos definidos ou qualquer outro instrumento que oriente a ação. O desafio é constituir uma relação e agir tomando-a como necessária. Um processo contínuo de experimentação e de aprendizado das limitações e potencialidades que essa relação apresenta.

Nesse processo, a transparência é uma exigência, e certo nível de opacidade uma condição que deve ser compreendida. Estou ali com todas as minhas idiossincrasias e sou convocado a responder porquê. Afirmo, então, que desobedeço a ordem imposta pelo modo como a maioria experimenta a cidade e ouso enfrentar uma fronteira com a expectativa de conquistar uma cidade que não se produz pelo medo da violência, mas a partir do desejo e dos encontros. Conviver com o Poço da Draga e me envolver em seus desafios mobiliza-me desejos,  faz-me enfrentar a produção intensiva de neuroses  e seguir acreditando que outro mundo é possível e sua construção é urgente.

“O corpo é de luta e não de perfumaria”.  Esta frase da Hilda Hilst me comoveu desde a primeira leitura. O convívio com o Poço da Draga é, portanto, um convite à luta e à invenção de um sentido para essa palavra. Não se trata de ir ao Poço motivado a promover um modo de existência que busca acomodar-se em lugares pré-definidos, como poderia ser a atuação de um artista profissional interessado em se posicionar no circuito das artes, tão ávido por colaborações; ou a atuação de um político profissional interessado em conquistar eleitores. A luta que se inventa na relação com o Poço é contra o mundo estabelecido, normatizado, incluindo o campo da arte (pretenciosamente sem normas) e o da poítica (pretenciosamente normatizador); incluindo nossas noções de sujeito e de ação. E aqui evitaria qualquer idealização dessa relação e das pessoas que moram no Poço da Draga, pois elas também são parte nesse e desse conflito, luta-se também contra suas/nossas identidades enrijecidas.

No entanto, quando a luta se realiza como tarefa cotidiana, mobilizada em rede, sem comando centralizado, sem doutrina a obedecer, um corpo perfumado é também convocado. O encontro com o Poço da Draga mantém-se fundamentalmente como experiência afetiva. Pois entendo que a disputa de sentido do mundo, de sua forma, pode também se dar em um beijo, como aquele de Adélia: “a vida é tão bonita,/ basta um beijo/ e a delicada engrenagem movimenta-se,/ uma necessidade cósmica nos protege”. Afinal, é sempre um impulso amoroso o que nos move a transformar o mundo.

#lugar

ainda que fossem dimensões separáveis da vida humana, tanto a política quanto a arte se produzem como uma disputa de sentidos para o mundo, ou melhor, como atividades de invenção do mundo. e por mundo, compreendo o lugar onde habitamos. lugar que não só nos abriga, mas que também é constituído por nossos corpos e nossas ideias. lugar onde necessariamente convivemos.

sinta seus pés no chão. olhe ao redor. o mundo está bem aí. todo lugar é matéria e expressão do mundo.

 

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#Radicais* que atravessam o texto

#vizinhança
a partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode está cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizinhança. diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. bom acreditar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. em qualquer escala.

#com-
conviver, conversar, confiar, comprometer, confabular etc. há diversas ações, fundamentais para a vida comum, que não realizamos sozinhos. as relações de vizinhança são tecidas por ações como essas. é necessário disposição e disponibilidade para conjugar ações com esse pressuposto da existência do outro.

#art-
arte: exercício experimental da liberdade. assim propôs o crítico Mário Pedrosa, em 1970, que compreendêssemos o que fazem os artistas. liberdade é também matéria da política. o mundo transforma-se em uma constante tentativa de superação da natureza em direção à cultura. também nas tentativas de superação de estados de dominação de certas culturas em relação a outras. compreendamos liberdade, então, não como a afirmação da vontade de um indivíduo, mas esse movimento coletivo do homem em busca de sua própria humanidade. e compreendamos arte como o exercício, a atividade, que experimenta e dá formas a esse movimento constituinte do mundo, que coloca o mundo em obra. dos artefatos que produzimos às articulações que promovemos, é sempre o mundo que está em obra.

#trans-
transformação: talvez essa seja a condição formal de nossa existência. uma experiência transitiva. cotidianamente agimos sobre o mundo, incluindo nosso próprio corpo, para que ele se transforme, ainda que nossa ação seja para manter o mundo aparentemente o mesmo. experimente não escovar os dentes ou não varrer a casa ou não coletar o lixo, por exemplo. e pense que outras ações podem ter consequências menos diretas, mas que também são transitivas, transformam uma situação em outra, ainda que seja para manter a aparência, a mesma forma como se dá aos sentidos, a mesma condição de partilha. daí, conclua que há também ações que transformam uma situação em outra provocando diferenças. quero crer que a arte e a política são ações transformadoras nesse sentido da produção de diferenças.

 

*Estes radicais foram escritos por Enrico Rocha. Os #radicais são uma proposta conjunta dos participantes do Vocabulário político para processos estéticos. Eles desejam criar leituras transversais às entradas. Vá para a página dos #radicais para conhecer os demais.

 vocabpol em 21112014 contexto, conversa, entradas, índice, manifestações