Estratégia

// por Julia Ruiz

Eficácia e acúmulo, mas não só. Pensamento, inteligências de luta, conhecimento a cavalo entre o futuro e o presente, entre o desejo e mundo: medir distâncias, calcular possibilidades, prioridades e objetivos. Sacar – a duras penas – das múltiplas tensões da vida, o metal precioso dos objetivos e prioridades.

A palavra estratégia é difundida em seus usos militares pela obra de Karl von Clausewitz (1780-1831), que Lenin gostava de citar. De fato, é depois da Revolução Russa que o conceito militar de estratégia começa a figurar em manuais programas políticos como uma categoria específica, que diz respeito à luta revolucionária pela tomada do poder. Na segunda metade do século XX, embora ganhe tom subversivo nos contextos das lutas sociais na América Latina, a estratégia parece se desgastar, como faca que perde o corte, na medida em que seu uso prolifera nos mais diferentes campos da organização social e da ação coletiva – dos partidos e sindicatos às ONGs; principalmente em sua apropriação pelo mundo empresarial e pelo marketing publicitário.

Em busca de outras novas formas de fazer política, chegamos a detestá-la: a estratégia torna-se sinônimo de um ponto de vista único, da centralização, do direcionismo, do “de cima para baixo”, do silenciamento de todo o resto. Pelas repetidas vezes em que vimos nossas melhores intenções apropriadas pelas máquinas infernais do autoritarismo e da mercantilização, preferimos muitas vezes esquecê-la, evitá-la. Depositamos nossas esperanças na proliferação espontânea das diferenças em vez de nos metermos (de novo?) a arquitetar hierarquias. Deixamos para depois, ou para outrem, a indelicada tarefa de traçar rotas – acreditamos assim evitar o perigo das lâminas afiadas.

Mas a estratégia está sempre lá. O cálculo, o corte, a manipulação das relações de força estão em operação onde quer que haja um sujeito de querer e de poder. Antes de estar referida a algum objetivo, a estratégia é o gesto que postula um lugar “próprio”: esse “nós” ou esse “aqui” separado do resto do mundo. É a definição desse “próprio”, ainda que transitória, que possibilita a ideia de manipular relações com aliados, alvos e ameaças “externos”: amigos, inimigos, concorrentes e colaboradores ocasionais, públicos, objetos e objetivos.

A estratégia nesse sentido está presente em todo processo criativo: não é apenas uma relação entre a ação e um objetivo a ser conquistado, mas um gesto pelo qual efeitos de totalidade são produzidos na experiência individual e coletiva. A possibilidade de que um conjunto de eventos, ou mesmo uma intenção colaborativa entre diferentes sujeitos, possa ganhar um nome próprio é impensável sem este gesto que circunscreve um espaço político. Mesmo riscada do dicionário, a estratégia segue operando em qualquer coisa, processo, coletivo etc – que esteja se constituindo como lugar de onde projetar visões, mensagens, análises, imagens, propostas, campanhas, acusações, conspirações, inspirações etc.

Frequentemente, com um pé atrás diante de tudo que pretende organizar o mundo a partir de um lugar de querer e poder, preferimos imaginar a nós mesmos como dotados de uma criatividade sempre móvel, como nômades, como seres intersticiais. É um problema que a estratégia – como vocábulo político – caia em desuso entre “nós”. Por que precisamos deste “nós”, “nosso” problema é esse. Mesmo quando se trata de “espaços abertos” e “processos horizontais”, que querem ser diferentes dos modelos frustrantes da organização política moderna, uma proposição política coletiva é sempre enunciada como um lugar de saber, querer e poder, como um lugar de onde se espera manipular relações de força.

A horizontalidade e a abertura concebidas como modelos de organização, em que estaria abolida a manipulação de relações de poder, podem também favorecer o ocultamento da separação entre aqueles que formulam e traçam as rotas e aqueles que as seguem. É preciso lembrar que o capitalismo neo-liberal ou pós-moderno é ele mesmo construído sobre redes não hierárquicas e opera dentro dessa lógica. Mas um “espaço horizontal”, em seu sentido político, pode ser também um jeito de descrever uma experiência de renovação de laços, em que a intensa contaminação se confunde com a “esperança de um mundo diferente”; um momento experimentado como uma espécie de ‘grau zero’ da política, em que todo mundo se encontra em um mesmo nível de ação.

A esperança, expectativa, euforia, o sentimento de confiança e mesmo de frustração vividos e compartilhados nesses momentos cumprem um papel crucial na produção dos “nossos” lugares comuns. Essas sensações e conflitos nos lembram que todas as relações, inclusive as ditas “horizontais”, não são dadas ou mágicas, mas sempre construídas. Lembram o quanto de nós precisamos investir para criar um espaço político aberto, porque um espaço aberto precisa ser aberto por alguém – exige as dores e delícias de um querer e de um gesto de poder.

A estratégia tem a ver precisamente com o envolvimento no trabalho prático de cortes, separações e reduções implicadas na produção do espaço comum: mesmo a menor das decisões, como sabemos, é no final uma decisão política. O grau zero da política não está na recusa das escolhas estratégicas, mas na experiência comunal de imersão nessas escolhas, nesses exercícios de engajamento pleno, corporal e afetivo com o poder, com as tomadas de decisão e suas consequências, onde se originam nossas maiores frustrações, mas também o prazer e a esperança que tornam as experiências políticas inesquecíveis e irreversíveis.

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