Hidrosolidariedade

// por Giseli Vasconcelos

Neol. 1) Solidariedade solúvel: a) Oportunidade de sistematizar as ações realizadas e apresentar o resultado daquilo que pensamos e executamos b) Processo de colaborações e associações entre artistas ou agitadores culturais c) Encontros d) Parcerias e) Envolvimento. (1)

 

Localizado no extremo norte do país, entre os estados do Pará e Amapá, o delta recebe águas de centenas de rios menores transbordando o Rio Amazonas em direção ao oceano Atlântico. É nessa desembocadura que se encontra o fenômeno da POROROCA (o tupi “poro’rog” = ‘estrondar’), quando as águas oceânicas se elevam e invadem a foz do rio num confronto que promove o surgimento de grandes ondas, mais evidente nas mudanças de fase da lua, principalmente Lua Cheia e Nova.

A solidariedade solúvel

A produção da rede aparelho aconteceu entre encontros que por vezes chamamos de reuniões e que transbordavam em ações de rua. Para cada ação proposta se constituía uma pequena rede de relações afetivas que se relacionavam às redes maiores, através dos meios digitais ou não, como: associação de bairro, terreiros, botecos, rádios comunitárias, listas de discussão e quilombos. Ao longo do tempo, espalhados entre tantos esporos, fomos coletivizando pela cidade debates em torno da liberdade de criação, expressão e ação como direito comum e público. Os assuntos amplificados discorreram sobre a pirataria, economia informal, a autonomia na produção artística e cultural e principalmente, cultura livre. Num devir impregnado pelo mote “o que ocorrer…”, experimentávamos uma composição poética política que tentava reunir fragmentos de tudo e todos entre textos, resenhas, música, vinhetas, entrevistas e cineclubismo de maneira fluida e atemporal. Estávamos na intercessão com os nascidos e crescidos ao Norte e entre viajantes, convivendo nesse tempo-espaço de comunhão em meio ao Delta do Amazonas – esse imenso grandes lábios molhados pelos rios Amazonas e Tocantins-Araguaia. Durante todo o tempo em que estivemos juntos, a hidrosolidariedade foi incorporada de modo orgânico à nossa fala, entre notas e trocas de e-mails sem muito se preocupar com as origens ou contextualização do termo.

Há-braços

Arthur Leandro (2) que traz do Rés-do-chão (3) o conceito de hidrosolidariedade para dentro do [aparelho]-:. Em maio de 2009, respondendo a uma entrevista proposta por Denis Burgierman e encaminhada para a lista de discussão CORO, Arthur sinaliza exatamente quando o termo se incorpora às nossas ações:

Re: [CORO] Re: entrevista coletiva com um coletivo de coletivos – pergunta 1
https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/corocoletivo/conversations/messages/11280
Date: Fri, 1 May 2009

Por que “coletivo”? O que esse tipo de organização permite que o trabalho individual ou os grupos tradicionais – empresa, cooperativa, ong – não permitem? Enfim, o que vocês querem com esse negócio de coletivo, diabos?

Eu vejo diferenças entre hierarquia e liderança, mas a identificação das lideranças pelas relações sociais que nos circundam – e não conseguem nos circunscrever na hierarquia de poder…, como desejam -, faz com que nos identifiquem com palavras como “coordenador”, ‘chefe’, ‘manda-chuva’… Nós resolvemos por aqui com a auto-identificação como ‘agitadores’…, adjetivo também usado pelos que nos olham ‘de fora’, mas com a multiplicidade de interpretação que nos interessa.

daí o ‘agitador chefe’ vai depender muito de qual é o universo e de onde vem a identificação, por exemplo, no micro-universo do campus do Guamá da UFPA… Para a faculdade artes o chefe sou eu, mas nos bloco de ciências humanas já foram Luis e Angelo e hoje talvez seja a Bruna… No micro universo das culturas afro-amazônidas: nas comunidades de terreiro sou eu…, no hip-hop é a Yá Maré ou Perna, e no tec nobrega é a Giseli… Na comunicação comunitária é o Angelo, pros artistas de rua é o Rodrigo, na ilha de Colares e na baía do sol é o Fernando, pro pessoal das cênicas talvez já seja o Pedro… e por aí vai… é rede de relações… quem é o coordenador/chefe?

pra mim interessam as trocas, eu também atuo em outros coletivos e/ou grupos de outras cidades onde morei, como o Urucum em Macapá; e em outras formas de des-organização como o Rés do Chão, no RJ, ou em grupos virtuais como este coro que diverge tanto que nem faz coro…. Dai aqui na rede [aparelho]-: sou eu que trago do Rés o conceito da hidrosolidariedade…. E nossa primeira ação realmente coletiva e colaborativa se chamava “Potoca free-style, ou cineclube hidrosolidário, ou projeção de filmes para Yemanjá no dia 2 de fevereiro, ou esperando um novo nome pra batizar…”; também sou eu quem impregna a rede de informações das artes visuais…, mas eu não sabia (ou não sei) n ada de só-fi-tu-ér livre, e aprendo muito disso com a proximidade com a Yá Maré, como de edição de som com o Angelo, de Mônadas com a Bruna e por ai vai, é rede de relações….

ELEMENTOS DE UM RIO
fluência, afluência, confluência, leito, margem, montante, nascente, foz.

Com o passar do tempo, na tentativa em rescrever esses processos, percebemos um conjunto de significações potentes por detrás desse vocábulo que vai muito além da nossa micropolítica: a palavra desvela intrinsecamente nosso comportamento grupal, tribal e tropical-amazônico carregados de uma alegoria fundada num horizonte plano, infinito e líquido – somos sinônimos de água procedente de qualquer secreção corporal (o suor, as lágrimas, a baba…), do suco das frutas, do líquido que escorre das árvores, da bebedeira e do rastros espumantes das embarcações. A palavra também simbolicamente remete nossa história entre hidrovias, furos e recortes de rios, elaborados por gente em civilizações provavelmente antes da descoberta da América. E ainda, esses fluxos de passagem, relatados entre tantas viagens, desvelaram um imaginário de olhares mais de longe que de perto exauridos entre agonia e empatia.

Oxum

Oxum: orixá feminino que reina o amor, a intimidade, a beleza, a riqueza e a diplomacia sobre a água doce dos rios.

Proposta de com-viver

Em 2005, Arthur Leandro apresenta os Reslatim, uma série de relatos de viagem que culminaram nos registros de um ritual-de-passagem durante sua residência ao sul da França. Estávamos trabalhando juntos na seleção de parte desse diário (compartilhado pela lista de discussão do Rés-do-chão) para a publicação Digitofagia (4). Os Reslatim expõem caprichosamente a tensão de uma experiência individual de um amazônida diante da adversidade e desentendimento travados noutra cultura. O norte hemisférico, pautado na homogeneização de valores e comunicação padronizando conduta, sentimento, imaginação e linguagem.

O autor contrariado com o comportamento europeu, se desdobra por vezes na reflexão sobre o uso comum da expressão “desolee” (o que no português diríamos “sinto” e no inglês é o equivalente ao “sorry”) para discorrer sobre um modo coletivo ausente de solidariedade para com o outro: “O desolee é um vazio semântico, é o contrário de guerra que lança a palavra e seu significado ao encontro de novas circunstâncias, vejo o desoles como a atitude da muralha de comunicação. é muralha do eu para com a comunidade com que se com-vive.

Diante da nossa compreensão amazônida, o outro é afluente de vida. O outro é o que corre ao teu lado, atravessa e trespassa e cruza, como um rio. Nossos redários se formam por fruição, experimentando um curso de água, e desvendando as tecnologias possíveis como fora a canoa para a cabanagem e o regatão, para o jornal e televisão. E assim também, como na pororoca, a sobrevivência é um encontro estrondoso de movimento brusco que provoca na diversidade, as ideias, os desentendimentos, as redescobertas e outras linguagens.

Nesse diário de memórias, carregado de um comportamento tropical-úmido percebemos o clamor por trocas solidárias, fluidas e frouxas desmensurável, quase análogo ao nascimento de um rio buscando seu curso: (…) e talvez eu seja muito radical, mas quero continuar a viver na hidrosolidariedade e na hidrogenerosidade que faz a gente trabalhar junto por um projeto coletivo que ninguém sabe o que é. como a liberdade, mas que tem a participação de toda comunidade, com liberdade. Juntos!!!

Portanto, esse relacionar-se íntimo presente nessa terra do meio tropical, espelha-se num tempo que pára com as chuvas, que segue entre o aguaceiro penetrando nos solos para assim encontrar espaços vazios entres brechas e furos até chegar a um outro corpo d’água. E como num movimento solidário, um rio maior precisa se hidratar recebendo águas de rios menores, e então estes se tornam seus afluentes num fluir que compartilha o que não fica, que vai e escorre.

Estrela do Norte

PARÁ = RIO GRANDE. Do Brasil, sentinela do Norte.

Esse rio é minha rua

A imagem que se tem a respeito da Amazônia é formada por um imaginário por vezes edênico e satânico representada arbitrariamente por quem a olha de fora. Esta representação perpetuada pelas mídias, também mimetiza esse imaginário entre os fatos, denominando como único o que é diverso, e impondo uma identidade única a uma pluralidade de culturas, de naturezas e de sociedades.

A imaginação que normalmente se tem da região é, quase sempre, “mais uma imagem SOBRE a região do que DA região” como produto resultante de um contexto marcado por relações de poder. De uma geografia diversa, da nascente do extenso Rio Amazonas até a sua foz, a visão que temos do extremo norte é um rio de horizonte-infinito de onde muito de nossa poesia se referencia. De Belém vive-se conflitos de uma cidade cosmopolita que não sabe se é uma pequena metrópole ou uma grande província. Belém é um constelário de ilhas que representam 69% da superfície da cidade, nasceu por assim dizer sob o signo insular. É uma cidade portuária que recebe pessoas de todo o mundo sendo um ponto de partida de riquezas ancestrais. É onde o arcaico e moderno coabitam o mesmo espaço, a vanguarda e retaguarda com-vivem, o sagrado e o profano não se separam.

Di-versos

“Quanto a este mundo de águas é o que não se imagina. A gente pode ler toda a literatura provocada por ele e ver todas as fotografias que ele revelou, se não viu, não pode perceber o que é.” (5)
Enquanto reunia notas para este verbete deparei-me com um pequeno artigo “um grau ao sul” de Maria Christina que rememora a carta de Mário de Andrade encaminhada a Manoel Bandeira datada em junho de 1927. Esta carta denominada deliciosamente “Por esse mundo de águas” discorre sobre desejo sexual e arrebatamento em torno de suas experiências em Belém do Pará. Ela faz parte de uma série de registros entre fotografias, cartas e notas que Mário de Andrade manteve durante sua viagem à Amazônia, que dizia ser um diário despretensioso do que foi a viagem mais importante na vida do autor.

Neste relato que Mário denominou de “O turista aprendiz: viagens pelo Amazonas até o Peru pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega!” se percebe numa espécie de adesão à civilização tropical, descoberta sentimental intelectual de sua interpretação de um Brasil numa concepção plural de civilização mais sincrética que sintética. A viagem começa no início de maio e termina em meados de agosto de 1927. Já nos 10 primeiros dias o autor anuncia o espanto do seu olhar europeizado diante da desmesura e singularidade do mundo amazônico: “Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintarão que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjinho que ainda tenho dentro de mim (…)”.

A experiência de viagem de Mário de Andrade na região mesmo que curta for fundamental para sua meditação sobre uma civilização tropical. É durante esta viagem que o autor complementa as notas para versão de Macunaíma (redigido um ano antes mas totalmente aberto para inserções e colagem, lançado no ano seguinte), esboça a narrativa Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, além de experimentar a fotografia moderna.

Assim como nos Reslatim, as cartas e notas de Mário sobre a Amazônia sempre marcam de modo contumaz e por vezes irônico a ótica européia tecnicista, marcada pela hegemonia de um pensamento sintético e científico. Mesmo em tempo espaço diferentes, dum campo de visão deslocado (um amazônida na Europa versus um paulista europeu na Amazônia), esses relatos vem carregados de uma tensão que misturam a paisagem com estados afetivos que direcionam a escrita e o pensamento, propondo quase uma oração mental que nos ajuda a seguir profundamente sobre esse horizonte fluido.

Discorrer sobre um vocábulo que confirma-nos em ação é trazer à margem um translado de raízes e rotas que nos representam traduzindo signos e significados que nos semeiam. A hidrosolidariedade não deixa de ser uma utopia amazônica – quando pretendemos seguir um caminho solidário, frouxo e volúvel seguindo a natureza do comportamento das águas, desconsiderando o contágio e a assimilação como caminho único de civilização em direção ao progresso, sucesso e desenvolvimento. A hidrosolidariedade é a intenção – quando muitos juntos se dispõem como fluidos – correndo como a água, vagando a trocar experiências e conteúdos por uma re-produção, distribuição e reciclagem de tudo, aos VIVOS.

Ursa Maior

Ursa Maior

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci… Não é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e traçando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. (Macunaíma – Capítulo XVII: Ursa Maior)
Notas:

(1) Hidrosolidariedade faz parte do glossário sugerido para o projeto de pesquisa [Nu]-: aparelho: Relatos sobre coletivos, arte e colaboração baseado em entrevistas e ações envolvendo agitadores da rede aparelho, em Belém do Pará. A definição é proposta por Bruna Suelen, em sua tese de mestrado em artes na Universidade Federal do Pará.

(2) Arthur Leandro ou Etetuba (homem-forte) é pai-de-santo, guerrilheiro-artista, amigo-amado, pensador e professor na Universidade Federal do Pará.

(3) Rés-do-chão, foi um espaço autônomo na casa do artista Edson Barrus que promovia vivências, criação e discussão em arte. O Rés produziu uma série de publicações independentes além de experimentações entre performances e vídeos, compartilhada entre listas de discussã o, transmissão online, exibições etc.

(4) ROSAS, Ricardo; VASCONCELOS, Giseli (Org.). Net_Cultura 1.0: Digitofagia. São Paulo: Radical Livros, 2006.

(5) ANDRADE, Mário de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

(6) Relato crítico de Maria Christina para 31ª Bienal de São Paulo, acesso disponível em: http://www.31bienal.org.br/pt/post/634

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