// Graziela Kunsch
O que a Tarifa Zero, os bancos e as concessionárias de automóveis poderiam ter em comum mas ainda não têm
Colaborou Daniel Guimarães
A contribuição que eu havia pensado originalmente para o Vocabulário Político era contar, desde a minha experiência, como vi a expressão “Tarifa Zero” no transporte coletivo aparecer, ser debatida (inclusive negada) e se transformar ao longo dos últimos nove anos. Eu queria contar da emoção que eu e pessoas de luta próximas como Lúcio Gregori (criador do projeto Tarifa Zero nos anos 1990) e Daniel Guimarães (criador do website TarifaZero.org em 2009) sentimos hoje toda vez que uma multidão de rua grita “Tarifa Zero”, porque foi um longo processo até essa expressão ter sido assumida por todos os coletivos do Movimento Passe Livre e, pouco a pouco – com muito trabalho de base em escolas e comunidades, além dos materiais impressos e das manifestações de rua -, ser apropriada por tantas pessoas. Não cheguei a redigir esse texto e, no processo de organização desta publicação, acabei escrevendo e publicando um outro texto relacionado ao tema, objetivando contribuir diretamente em um processo político, mais que em processos estéticos. A Cris perguntou se eu não teria vontade de publicar este texto também aqui no Vocabulário e, inicialmente, achei que não fazia muito sentido. Ao voltar ao texto, lembrei que seu objetivo principal era trazer para o debate público a Tarifa Zero, no momento em que a grande imprensa escolheu ofuscá-la, colaborando no processo de criminalização das lutas por mudanças sociais e espaciais. E o que é este Vocabulário, senão tornar visíveis certos termos e contextualizá-los?
Não sei se o texto que segue irá colaborar em processos estéticos – espero que sim -, mas estou muito contente de contribuir na publicação desde os movimentos políticos.
Grazi
Originalmente publicado no TarifaZero.org, em 26/6/2014
Escrevo este texto a partir da experiência da manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre no dia 19 de junho de 2014 em São Paulo e a sua repercussão na imprensa. Esclareço desde já que o texto é assinado por mim individualmente e que não falo em nome de ninguém. Busco apenas contribuir como pessoa que estava presente no ato e que ainda se choca com as distorções desleais feitas por alguns jornalistas dos veículos de imprensa hegemônicos, que estavam igualmente presentes. Farei uma reflexão sobre o que o ataque a agências bancárias e concessionárias de automóveis poderia ter a ver com a luta pela gratuidade no transporte, mas que no ato do dia 19 não teve; além de uma crítica à criminalização dos movimentos sociais. Escolhi me posicionar diante do que considero uma tática equivocada para o nosso momento atual, mas tenho a clareza de que a verdadeira violência é promovida pelo Estado, tanto pela sua polícia como pelas suas políticas públicas distorcidas, que servem mais a interesses privados.
Começo comentando o título dado pelo Movimento Passe Livre ao evento. No lugar do mote “Não vai ter copa”, limitado ao momento específico que estamos vivendo, o MPL propôs “Não vai ter tarifa”, que expressa a luta de mais de nove anos de existência do movimento e dos anos futuros. Eu tendo a não gostar muito desses títulos que operam pela negativa; acho que funciona mais ser propositivo (algo como “Vai ter Tarifa Zero”). Ao filmar o ato eu tinha que fazer um certo esforço para enquadrar a faixa “Não vai ter tarifa” inteira. Se algumas pessoas se posicionassem na frente do “Não”, lia-se “vai ter tarifa”, e talvez esta parte da frase fique impregnada no nosso inconsciente. Ainda assim considerei a escolha do movimento pertinente, pois se a Copa no Brasil em breve irá terminar, outros tantos problemas (incluindo aqueles causados pela FIFA) permanecerão por aqui. Além de se solidarizar com quem é contra a FIFA e contra o mau uso do dinheiro público – o “Não vai ter copa” está implícito no “Não vai ter tarifa”, é a origem do novo nome -, o movimento sugere um foco mais específico. E faz todo sentido pautar o transporte coletivo no contexto da Copa, porque a maior parte dos investimentos do governo para a Copa foram, supostamente, em mobilidade urbana. Digo supostamente porque as obras realizadas (ou planejadas, muitas não chegaram a ser construídas ou finalizadas) não necessariamente implicaram em uma maior mobilidade das pessoas pelas cidades.
Havia também outro contexto para o acontecimento da última quinta-feira em São Paulo: a comemoração de um ano na revogação do aumento de vinte centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trem, em 19 de junho de 2013, acompanhada pela redução de tarifas no transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras. Vez ou outra vejo pessoas dizendo que as revoltas de junho não tinham objetivos claros ou que não tiveram conquistas concretas, que “não deu em nada”. A redução no preço das tarifas do transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras é uma conquista concreta e tanto, que faz uma enorme diferença na vida de muita gente. Apenas é insuficiente, e esta insuficiência foi expressa no subtítulo que o MPL deu ao ato, tanto no cartaz de convocação como no panfleto distribuído: “Agora só faltam 3 reais”.
Falta mais que três reais, alguns vão dizer, assim como, no ano passado, disseram que não era por vinte centavos. Mas aqui irei me deter nas reivindicações específicas do Movimento Passe Livre, que é um movimento de transporte. Para o MPL, o transporte é um direito essencial, que tem o potencial de articular espaços urbanos e outros direitos. Só existirá educação pública de verdade – acessível a todas as pessoas – se o transporte também for público de verdade; do mesmo modo que hospitais, parques e espaços culturais gratuitos só serão economicamente acessíveis a todas as pessoas se não houver mais tantas catracas no meio do caminho (as catracas dos ônibus, dos terminais e das estações de trem e metrô). Lutar pela gratuidade no transporte não é pouca coisa e é importante os leitores deste texto terem isto no horizonte. Esta luta não exclui a necessidade de outras tantas lutas por mudanças sociais e transformações urbanas, mas exige foco e adensamento para ser bem feita.
Os objetivos do ato do dia 19 foram publicamente declarados desde o início do ato, durante a leitura coletiva de um manifesto, amplificada na forma de jogral por quase todos os presentes. Entre outras frases, o jogral afirmava que “Se a Copa é dos ricos” – e um jogo começava no Itaquerão naquele exato momento -, “a cidade é nossa!”. Estávamos ali pela comemoração de um ano da revolta popular que barrou o aumento nas tarifas; pela readmissão de 42 metroviários injustamente demitidos; e, principalmente, por Tarifa Zero. Digo principalmente porque a maior parte dos cartazes, das faixas e das ações realizadas tinham como foco a gratuidade no transporte coletivo.
A primeira ação do dia, completamente ignorada pela imprensa hegemônica, na Praça do Ciclista, foi a coleta de assinaturas para o projeto de lei de Tarifa Zero de iniciativa popular. Para um projeto de lei municipal ser apresentado pelas pessoas comuns (e não por vereadores) são necessários dados e assinaturas de 5% do eleitorado. Em São Paulo este número equivale a aproximadamente 500 mil pessoas – um número bastante alto, sendo que não valem assinaturas virtuais, como acontece nas petições online. O trabalho de conversa e coleta de assinatura na escala um-pra-um vem acontecendo desde 2011, e quem se interessar por conhecer o texto do projeto de lei e em colaborar nesse processo pode acessar a página da campanha
Uma das últimas ações do ato, que desceu toda a Av. Rebouças e ocupou a Marginal Pinheiros, foi a queima de diversas catracas simbólicas, de papelão, seguida da leitura coletiva de um novo manifesto, com um “recado bem claro”, direcionado principalmente aos empresários que lucram com o deslocamento dos paulistanos: “Agora é o povo que vai mandar no transporte”.
Após a queima de catracas, os organizadores do ato puseram música para tocar (um carro com aparelhagem de som foi posicionado na via) e um pequeno campo de futebol foi desenhado no asfalto. Os presentes pularam as catracas ainda em chamas, dançaram e jogaram futebol em plena Marginal (os manifestantes são contra a Copa elitista e higienista da FIFA, não contra o futebol). Bandeirinhas juninas e uma grande bandeira com a expressão “Passe Livre” foram penduradas em postes e na ponte Eusébio Matoso.
A beleza de se realizar uma festa em plena Marginal foi ofuscada na imprensa hegemônica pela ação isolada de uns poucos presentes, que haviam quebrado vidraças de agências bancárias ao longo da Av. Rebouças e, ao final do ato, vidraças e automóveis de uma concessionária da Mercedes Benz. Essas ações foram claramente uma espécie de protesto paralelo, ao ponto de militantes do Movimento Passe Livre terem se posicionado de braços dados diante de agências bancárias da Rebouças, buscando dialogar com quem queria quebrar símbolos do capitalismo (no caso, bancos e concessionárias), explicando que o objetivo do ato não era quebrar nada, mas realizar uma festa popular – em contraposição à festa da elite dentro dos estádios caríssimos – por Tarifa Zero.
Esses militantes orientavam as pessoas a seguir para a Marginal e a grande maioria de manifestantes fez côro com eles, gritando para o ato seguir até a Marginal, de acordo com o planejado e publicamente divulgado (com o conhecimento da imprensa e da polícia). Surpreendentemente, uma repórter do jornal O Globo interpretou que “seguir para a Marginal” significava “não vamos quebrar nada na Rebouças, somente na Marginal”. Só posso pensar que se trata de desonestidade ou de um erro grave de interpretação, pois qualquer pessoa presente sabia que seguir até a Marginal significava tão somente não dar atenção para esse protesto paralelo e seguir o curso planejado para a manifestação.
Em nota divulgada no dia 21 de junho, o Movimento Passe Livre se recusa a julgar o que estou chamando de protesto paralelo, afirmando que não cabe ao movimento legitimar ou deslegitimar impulsos de indivíduos revoltados, mas deixa claro que essas ações não estavam entre os objetivos do ato organizado. O movimento critica o uso do termo “mascarados” pela imprensa, lembrando que todas as pessoas têm o direito de preservar a sua identidade (a manifestação foi amplamente fotografada e filmada) e se proteger de uma eventual perseguição e criminalização por parte da polícia (o que não é uma remota possibilidade, mas um fato recorrente). Historicamente, o uso de panos para cobrir os rostos tem também outro sentido, muito lindo: os zapatistas cobrem seus rostos com lenços com a intenção de configurarem um só rosto; uma forma de dizer “Agora não sou mais eu, somos nós”.
Nem todas as pessoas que tinham seus rostos cobertos no dia 19 se envolveram em depredações, concentrando seus esforços coletivos (e não seus impulsos individuais) em uma ação que pode ser considerada muito mais radical e inovadora que quebrar coisas: bloquear uma das maiores vias para automóveis da cidade com uma festa. Uma festa pública, com a presença de milhares de pessoas.
Quebrar bancos e concessionárias não necessariamente chama a atenção dos governos – a não ser para mobilizar seu lado mais autoritário e mais repressor -, e não gera melhores serviços públicos (estou supondo que estas eram algumas das intenções dos meninos que realizaram essas ações, pois foi o que declararam para a TV Folha). Também não quebra o capitalismo. Alguém poderia argumentar que essas ações possuem potencial força simbólica, mas só teriam força de fato se refletissem uma revolta ou um desejo coletivos, o que não foi o caso do dia 19. O que vimos ali foi um espetáculo repetitivo, construído junto com a imprensa e com a polícia. Havia fotógrafos e cinegrafistas posicionados diante de agências bancárias antes mesmo de a manifestação passar por esses pontos e uma total ausência de policiais – a não ser nas duas extremidades do ato (Praça Mal. Cordeiro de Farias – perto do túnel da Av. Dr. Arnaldo – e Marginal) e, possivelmente, na presença de policiais à paisana ao longo do trajeto.
A polícia alega que o movimento se declarou responsável pela segurança do ato, mas a preocupação do movimento, segundo a mesma nota anteriormente citada, era tão somente que se evitasse uma presença ostensiva da polícia militar em um ato que se propunha a ser uma comemoração, uma festa; pois normalmente a presença da polícia e a atitude de alguns policiais contribui para que ações como essas aconteçam. Isso é parte do espetáculo midiático, que inclusive sempre coloca jovens vestindo moletom e atirando pedras em igualdade de forças com policiais fortemente armados e com seus corpos totalmente protegidos. Outra preocupação expressa pelo movimento na imprensa era que o ato fosse reprimido antes mesmo de começar, como havia acontecido, uma semana antes, no protesto contra a Copa nos arredores do Itaquerão, entre outros protestos recentes violentamente reprimidos. Além disso, quem coordena a polícia é a Secretaria de Segurança Pública/o governo do Estado, não o movimento social. É desonesto a polícia se colocar numa posição passiva, culpabilizando o movimento por sua omissão. Ao que parece, tudo isso foi construído com o objetivo de reavivar o inquérito policial nº 1/2013 do DEIC, que investiga manifestantes e é considerado ilegal pelos advogados e integrantes do movimento, uma vez que não apura crimes, mas persegue e criminaliza pessoas.
De todo modo, o que me motivou a escrever este texto foi discorrer um pouco mais sobre a ineficiência de se quebrar agências bancárias e concessionárias como forma de superar o capitalismo e levar a discussão pública para o verdadeiro foco do ato do dia 19. As vidraças, os caixas eletrônicos e os automóveis quebrados já devem ter sido repostos, ou serão repostos muito em breve. Esses espaços provavelmente possuem seguro, de modo que os quebra-quebras sequer implicam em altos prejuízos aos seus donos. Por que será que a imprensa hegemônica escolhe sempre dar ênfase às depredações feitas por bem poucas pessoas (no dia 19 devem ter sido, aproximadamente, 10 entre 2.000 pessoas – 0,5 % dos manifestantes), ao invés de noticiar as ideias que são verdadeiramente perigosas? A proposta de Tarifa Zero do Movimento Passe Livre tem o potencial de atacar o capital de um modo muito mais interessante: a taxação dos mais ricos, aí incluídos os donos de bancos e de concessionárias de automóveis.
A expressão “Tarifa Zero” foi proposta pelo engenheiro e músico Lúcio Gregori no começo dos anos 1990, quando ele foi secretário de Transportes em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, primeira prefeitura do Partido dos Trabalhadores nesta cidade. O projeto de ônibus Tarifa Zero previa um pequeno aumento no IPTU – o imposto progressivo sobre propriedade – como forma de financiamento. Por questões políticas o projeto não chegou a ser votado e foi desqualificado pela imprensa, apesar de pesquisas feitas com a população terem demonstrado que uma imensa maioria era favorável à Tarifa Zero, mesmo com o conhecimento de que ela implicaria em um aumento no IPTU.
Quase vinte anos depois a expressão foi recuperada pelo Movimento Passe Livre e, durante as revoltas de junho de 2013, podia ser ouvida nos mais diferentes espaços de São Paulo, dita por pessoas as mais diferentes. Ainda que, nesta cidade, as grandes manifestações de junho tenham sido pela revogação dos vinte centavos de aumento nas tarifas de ônibus, trem e metrô, a luta de longo prazo do movimento – contra a própria existência dessas tarifas – ficou em evidência e se tornou mais popular.
Uma coisa que tanto Lúcio Gregori como o movimento sempre deixaram clara é que a Tarifa Zero não significa “ônibus de graça”. O transporte tem custos, é claro. Gasolina, manutenção, salário dos trabalhadores etc. Assim como é necessário o governo pagar salários de professores e demais funcionários nas escolas públicas e comprar mesas, cadeiras, lousas, giz, e alimentos para as mesmas, entre outras coisas. Mas tudo isso, no caso das escolas, é pago por todos nós, indiretamente, através de impostos. Não existem catracas na entrada das escolas para cobrar os custos da educação diretamente dos alunos, a cada vez que eles usam esse serviço público; e seria um absurdo se isso fosse sequer cogitado.
O problema é que, no Brasil, quem mais paga impostos, se calcularmos o valor dos impostos embutidos em produtos de consumo proporcionalmente à renda do indivíduo, são os mais pobres. As pessoas mais ricas questionam mais o pagamento de impostos que os pobres porque têm mais consciência de quanto pagam, pois normalmente seus impostos são sobre propriedades e vêm na forma de boletos, são visíveis. Os mais pobres não possuem propriedades e pagam impostos invisíveis, que representam boa parte da sua renda, sem ideia de quantos % de impostos estão pagando, ou mesmo que estão pagando. É necessária uma inversão na cobrança de impostos; quem tem mais dinheiro precisa pagar mais, proporcionalmente à sua riqueza.
O financiamento do transporte precisa acontecer de maneira indireta, como já acontece nas escolas e nos hospitais públicos, mas através da criação de um fundo específico para o transporte, cuja receita deve vir fundamentalmente da cobrança de impostos progressivos, entre outras possíveis arrecadações. Imposto progressivo é aquele cujo percentual aumenta de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. No caso do IPTU, por exemplo, proprietários de casas pequenas são isentos do pagamento e proprietários de casas médias e grandes pagam um valor proporcional ao tamanho/valor dos imóveis. Desde os primeiros anos de existência do Movimento Passe Livre (não somente em São Paulo, mas em diversas cidades brasileiras), os panfletos sugerem que a arrecadação venha de uma maior cobrança de impostos de proprietários e/ou grandes acionistas de bancos, multinacionais, resorts, shopping centers, mansões e automóveis de luxo.
A taxação da riqueza é necessária para haver distribuição de renda e diminuição da desigualdade social. Além disso, é a elite quem mais se beneficia do deslocamento de milhões de trabalhadores diariamente.
No dia 10 de junho, o jornal reproduziu uma notícia do Financial Times que informa que a riqueza privada global, concentrada em 1,1% de toda a população mundial, atingiu o recorde de 152 trilhões de dólares. Este número é tão somente o excedente de riqueza de famílias muito ricas. O dinheiro que fica no banco se reproduzindo/se multiplicando, gerando novos excedentes tanto para essas famílias como mais lucros para os bancos. Com esses recursos seria possível atender a uma série de demandas sociais (talvez todas) não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.
Em fevereiro deste ano, o portal G1 divulgou uma notícia informando que o lucro de quatro bancos brasileiros no ano de 2013 somado supera o PIB (Produto Interno Bruto) de 83 países. O Banco do Brasil registrou lucro líquido de 15,75 bilhões de reais, o Itaú Unibanco de 15,696 bilhões, o Bradesco de 12 bilhões e o Santander de 5,7 bilhões. Para se ter a dimensão desses valores, todos que somos contra o mau uso do dinheiro público nos estádios “padrão FIFA” estamos criticando o uso de aproximadamente meio bilhão a um bilhão por estádio. Se questionamos quantas escolas poderiam ter sido construídas ou melhoradas com o valor investido em cada estádio, imaginem quantas coisas poderiam ser feitas se esses bancos fossem mais taxados e essa riqueza acumulada socialmente distribuída.
A proposta de financiamento da Tarifa Zero através de uma reforma tributária que implique em um aumento proporcional de impostos dos muito ricos significa que quem tem mais dinheiro irá contribuir com mais, quem tem menos irá contribuir com menos, e quem não tem dinheiro não precisará contribuir com nada. E todos, sem exceção, poderão usar o transporte coletivo, tornado “público” de verdade.
As cidades pelo mundo que adotaram a Tarifa Zero no transporte experimentaram uma drástica redução no uso de automóveis particulares. Na cidade de Hasselt, Bélgica, que por mais de dez anos teve uma política de gratuidade no transporte coletivo, a utilização do transporte público aumentou mais de doze vezes (de 360.000 passageiros o sistema passou a acolher 4.614.844 passageiros). Nos Estados Unidos, algumas cidades adotam a Tarifa Zero em horários específicos, por exemplo durante o almoço, estimulando pessoas que trabalham no mundo corporativo e que usam automóveis como meio de circulação a usar o transporte coletivo para ir almoçar e retornar ao trabalho.
Ainda que os custos de um sistema Tarifa Zero em uma cidade grande como São Paulo sejam altos, exigindo altos investimentos públicos, é preciso se ter em mente que a Tarifa Zero tem o potencial de gerar toda uma economia sistêmica. No caso da saúde pública, por exemplo, os maiores gastos por internação nos hospitais são 1. por problemas respiratórios, advindos da poluição do ar pelo excesso de automóveis particulares em circulação; e 2. acidentes de trânsito, em sua maioria causados por automóveis particulares.
A criação de um sistema Tarifa Zero no transporte coletivo não supera o capitalismo, mas pode enfraquecer os paradigmas onde os bancos e as concessionárias de automóveis atuam. E melhorar a vida da maioria da população.
Quebrar vidros para a imprensa fotografar não está construindo a necessária força social para experimentarmos mudanças na nossa vida cotidiana. Quem se lembra da alegria que foi ver as telinhas das catracas dos ônibus, trens e metrôs voltar a marcar “3,00” reais no lugar de “3,20”, após termos barrado esse aumento, nas ruas? As manifestações de junho incluíram depredações, reconheço, mas como expressão de uma revolta coletiva, incontrolável, e, principalmente, como reação à forte repressão policial (apesar de a grande imprensa ter o costume de inverter essa ordem; sempre sugerindo que quem começa a violência são os manifestantes).
No ato do dia 19, as depredações aconteceram à revelia da enorme maioria de manifestantes presentes, sendo consideradas inclusive autoritárias, infantis e machistas por muitos de nós. É importante que se respeite aquilo que é combinado coletivamente, de modo que outras pessoas – como mulheres grávidas, crianças e pessoas idosas – também possam participar da festa.
A repressão policial ao final do ato do dia 19 caiu sobre todos os presentes, de modo que a vida de todas essas pessoas estava em risco, exposta a bombas de gás, spray de pimenta, balas de borracha, pancadas de cassetetes e prisões arbitrárias. Eu já participei de diversos protestos sem depredações que foram igualmente ou mais reprimidos, reconheço novamente, mas neste dia as pessoas já estavam voltando para casa ou caminhando até o Largo da Batata, onde o ato seria concluído, quando a concessionária da Marginal começou a ser quebrada. Não foi nada legal tantas pessoas terem sido atacadas e perseguidas pela polícia, tornadas reféns da ação de poucos que estavam dispostos a esse enfrentamento (bem poucos mesmo; no registro da TV Folha referenciado anteriormente contei três meninos dentro da concessionária, em meio a diversos jornalistas, e entre quatro e cinco na agência bancária, não dá para saber ao certo). Quebrar vidros é diferente de ferir a integridade física e jurídica de pessoas, mas, neste dia – ainda que eu não aceite isto como justificativa, a polícia precisa deixar de existir desta forma -, o ataque contra vidros praticado pelos meninos foi usado como desculpa para uma violência generalizada contra as pessoas, pela polícia. Não somente contra manifestantes, mas contra qualquer pessoa que tenha dado o azar de estar na região do Largo da Batata naquele momento. Mais gravemente, essas ações isoladas estão agora sendo usadas para o Estado seguir criminalizando as lutas sociais, instalando um estado policial que remete à ditadura militar. Tudo isso limita, propositadamente, a capacidade de atuação dos movimentos, que precisam dedicar todos ou quase todos os seus esforços para responder a essa criminalização.
Apropriando-me das palavras de um amigo de amigos em seu mural público de Facebook, eu “não condeno a tática [Black Bloc], mas apenas dizer que não a defendo não é mais suficiente. Precisamos dizer que não concordamos e que isso está atrapalhando a luta social que pretende colocar interesses públicos na frente dos interesses privados que historicamente governam a sociedade. A confusão entre uma tática que busca o apoio popular massivo para as suas ideias e outra que pouco se importa com a opinião pública só fortalece quem contra ambas está” .
A Tarifa Zero precisa do apoio popular das massas, pois é as massas que irá beneficiar. O esforço dos militantes do MPL, que há quase uma década fazem discussões sobre mobilidade urbana e direito à cidade em escolas e em comunidades/bairros que possuem diversas carências no transporte coletivo, sempre foi de agregar pessoas e, mais que isso, estimular sua auto-organização. Não podemos reduzir a Tarifa Zero a uma compreensão burocrática da luta. A liberdade de nos movimentarmos pelas cidades sem restrições econômicas é uma ideia nova e radical. Para ser acessível a todas as pessoas, precisa existir como direito e política pública, pois nem todos possuem disposição ou condição física para pular catracas e para sustentar enfrentamentos com a polícia.
É só imaginar muitos ônibus sem catraca circulando para perceber a força dessa ideia. Imaginar que a gente pode entrar e sair por qualquer porta dos ônibus, sem precisar se esmagar até a porta de saída. Que a gente pode traçar qualquer percurso pela cidade, parando para fazer coisas ao longo do caminho. Que pessoas que estão excluídas da cidade por não poderem pagar as tarifas do transporte vão passar a ser incluídas. Que vão passar a chegar a lugares onde atualmente não chegam. A poder frequentar os espaços culturais gratuitos, as escolas e os hospitais. A visitar seus amigos e familiares com maior facilidade. A ficar mais próximas umas das outras, tornando a cidade, ao mesmo tempo, grande e pequena.
Lembro de um dia pós-junho de 2013 em que eu saí do metrô República e, ao caminhar pela praça, olhei para trás e tive a certeza de que um dia as pessoas acharão absurdo imaginar que no passado era necessário pagar para usar o transporte público. Quero muito estar viva para me movimentar nessa cidade Tarifa Zero e para conhecer a geração que vai crescer sem catracas no meio do caminho. Assim como hoje estudantes e suas famílias se beneficiam do meio-passe escolar graças aos esforços de pessoas que lutaram por ele décadas atrás, nós vamos poder dizer que colaboramos nesse processo coletivo e ensinar a luta para nossos filhos. Precisamos de experiências vitoriosas para as pessoas continuarem lutando. Quebrar vidro não cumpre esse papel. Pode cumprir alguns papéis táticos, mas, consistentemente, não muda a vida cotidiana das pessoas.
Notas