Praça de Bolso do Ciclista

// por Margit Leisner

 

Rua São Francisco Número 0 Esquina Com A Presidente Faria

A Praça de Bolso do Ciclista
está plantada
no centro de Curitiba
ela é a mais recente
dentre as conquistas públicas que vem sendo
viabilizadas
através da Ciclo Iguaçu
Associação de Ciclistas do Alto Iguaçu

A iniciativa
estabelece diálogo com o poder público
a partir do eixo hidrográfico conhecido
como
BACIA do Alto Iguaçu
ela integra
em uma área habitacional única
as comunidades do centro e da região metropolitana da cidade

É nesse contexto que avançam
desde 2011
as ações da Ciclo Iguaçu
a produzir
políticas efetivas de respeito à ciclistas e pedestres

Planta da Praça de Bolso do Ciclista. Curitiba

Planta da Praça de Bolso do Ciclista. Curitiba

O projeto surgiu há cerca de dois anos. No ano passado, foi incluído no Plano Cicloviário da cidade. O pontapé inicial foi a pintura na parede  do prédio  adjacente à praça, feita pela artista suíça Mona Caron durante o Fórum Mundial da Bicicleta realizado pela CicloIguaçu no começo deste ano de 2014.

cavalo_alado

ONDE ELA FICA?

algumas pessoas descobriram
um terreno abandonado no centro da cidade
entraram em contato com as autoridades
solicitaram as matrículas do terreno
e
após alguns meses
obtiveram a informação de que o terreno era público
coisa que nem a prefeitura sabia

em seguida reivindicaram
que o terreno fosse cedido para a construção de uma praça pública
e
como os iniciadores de todo o processo são ciclistas
da
Associação Alto Iguaçu
que fica hospedada
na
Bicicletaria Cultural
logo em frente ao terreno a praça ganhou o nome
de

Praça de Bolso do Ciclista

Foto: Doug Oliveira

Foto: Doug Oliveira

O PODER PÚBLICO ENTRA NO PROCESSO


mas ter um terreno baldio não significa ter uma praça
é preciso reunir os materias de construção,
a mão de obra,
ter um projeto arquitetônico
nessa hora o pessoal
ativou a Prefeitura e solicitou ajuda das Secretarias
para levar adiante o projeto

Uma reunião com o presidente do IPPUC*
e
com os secretários de Obras e de Meio Ambiente aconteceu em março
e
ficou acordado que as Secretarias disponibilizariam material construtivo
e
equipamentos urbanos
e que o IPPUC daria apoio institucional para a realização da obra, mas (sempre há um porém)
por conta da proximidade da Copa
e
por questões orçamentárias
não haveria mão de obra para a construção

(*) O IPPUC é o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, criado em 1965 com o objetivo de dar acompanhamento ao Plano Diretor Para a Cidade de Curitiba.

Foto: Doug Oliveira

Foto: Doug Oliveira

E QUEM VAI ARREGAÇAR AS MANGAS?

Os ciclistas da Alto Iguaçu
prontificaram-se
a
projetar
e
construir a praça

Com esforços próprios organizaram reuniões
e
convocaram pessoas interessadas em participar

arquitetos, paisagistas, artesãos, engenheiros, professores,
diversas pessoas da comunidade integraram
e
discutiram o projeto
que
finalmente no dia 24 de maio ficou pronto e aprovado

Foto: Doug Oliveira

Foto: Doug Oliveira

E QUEM É PAU PRA TODA OBRA?

Você, eu e todo mundo que queira participar

a próxima fase é a que vai precisar mesmo de toda a colaboração possível

durante todo o mês de maio e junho [de 2014]

acontecerão mutirões para a construção da praça

a Prefeitura vai ceder o material
e
os trabalhos de terraplenagem no terreno

mas o trabalho de construir será cidadão e voluntário

todos aqueles
que quiserem tomar parte na construção desse espaço público
estão convidados
não importa se você tem, ou não, habilidades especiais
o que importa é participar

a cidade que a gente quer é a cidade que a gente faz

voluntários tocam
as obras de construção e atividades culturais na praça
decidindo em conjunto os rumos do espaço

o método de construção coletiva
em simultaneidade com as oficinas de mosaico
petipave, super adobe, arte urbana e construção civil
faz com que

a

Praça de Bolso do Ciclista
se defina como lugar e também como prática

 vocabpol em 27112014 entradas

Sair

// por Inês Nin

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio
pro lampião
Pode me esperar Mané
Que eu já volto já
Acendi o fogão, botei a água pra esquentar
E fui pro portão
Só pra ver Inez chegar
Anoiteceu e ela não voltou
Fui pra rua feito louco
Pra saber o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital e no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inez
Voltei pra casa triste demais
O que Inez me fez não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel
Escrito assim:
– Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais

(adoniran barbosa, apaga o fogo mané, 1974)

 

baratinada, atordoada pelas constantes mudanças e transformações. ao mesmo tempo entusiasta, enxame de possibilidades geradas pelo tempo que abre uma nova camada de espaço/lugar, novos planos, desandos, perambulâncias e afazeres locais.

sair é intimamente ligado a lugar, sair como espécie de fuga premeditada, sair como vontade de sair do lugar (“mexe essa bunda da cadeira”), sair como solução aparentemente fácil (esvair-se da presença, não lidar com); sair é ir, é partir(-se em pedaços? pulverizar), algo referente a circunstância, uma necessidade, um meio.

sair como uma intenção de lugar. realocar o corpo ou um estado, o sujeito, para refazer sua potência, para entender-se de novo, para alhear (imensa necessidade de alheamento, tantas vezes se faz)

sair implica em movimento: mover-se pelas próprias pernas. tomar iniciativa de, encontrar ou procurar um rumo, pôr-se a caminho

(duros empenhos em sair do lugar)

lidar com a hipótese de fuga é de algum modo mais fácil que lidar com a ação. que precisa de tempo para compreensão, implica em processamento (de dados, de mudanças, de estados de corpo e cansaço). zerar as possibilidades é um fetiche que, diante de algo duro, se refaz constantemente.

– e se eu, simplesmente, saísse daqui?

sair como ação impensada, tomada de posição, absurda ação mesma que não se define, como se simplesmente sair se faz

(e então, estado presente que atormenta, algo a que se quer abandonar)

pontapé para o infinito, atadura. semmãos, semmedo, mmordedura. coragem, aquilo de que tanto falam os clássicos romanescos sem era, que se sobrepõem a uma realidade turva, demasiado complexa para nossos contos de fada caninos. anacronismos de infância, maus adestramentos. depois de um tempo, os embalsama todos e transforma em leituras de maniqueísmos diversos, notícias sem profusão nem densidade, as quais só se lê às partes. reitera discursos ou cria coisa alguma, mas segue algum rumo estrito que supostamente se concretiza. ou não, engole a rebelião e bate ponto no escritório, todos os dias, eis o método que seu pai lhe ensinou.

fuga estaria adoecida pela vontade de escapar, impulso dormente que não tem lugar? abstrata palavra sair, enquanto que fuga apresenta forte oposição (como fugir de – ou fuga, substantivo, algo que acontece ou se sucedeu). a fuga antecede a memória, esvazia-se em ato: simplesmente ir, fugir da coisa, sair do sistema, remodelar ou implodir tudo em fato

(esvair-se do sistema é algo absolutamente sedutor e iminente; difícil concretizar)

da vontade de sair e do semmedo da história, da fuga que tem por desejo existir, há em tudo uma propensão a um fora, um desejo de alhear disso que aqui está

(como um estado de coisas que se altera por uma ação, por mais que esta se faça em abandono)

o truncado está aí, pois se sistema nada faria para tornar fáceis as medidas, codificáveis os modos:

– e quiçá existe um fora?

ou o fora ele mesmo já está dentro? faz parte de um comum que a tudo se esquiva e penetra?

entranhas nervuras e atravessamentos, outrora solfejos, coisas que não têm lugar

permeios e sucessões esquivas irá, irá, encontrar um morcego em um lugar sem hora, sem memória, fora de linha e calado de números, talvez,

liberdade turva só acontece quando não se vê, quando alegre mentira costura sossegos onde quer que se vá.

sair, contudo, ainda é um meio que se faz.

nem que seja para alterar lugares, contaminar uns com os outros, colher um a um. e não deixar lugar.

(identitárias vontades explodiram no ar)

 vocabpol em 25112014 entradas, transformação, verbete, vocábulo

Tarifa Zero

//  Graziela Kunsch

O que a Tarifa Zero, os bancos e as concessionárias de automóveis poderiam ter em comum mas ainda não têm

 

Colaborou Daniel Guimarães

A contribuição que eu havia pensado originalmente para o Vocabulário Político era contar, desde a minha experiência, como vi a expressão “Tarifa Zero” no transporte coletivo aparecer, ser debatida (inclusive negada) e se transformar ao longo dos últimos nove anos. Eu queria contar da emoção que eu e pessoas de luta próximas como Lúcio Gregori (criador do projeto Tarifa Zero nos anos 1990) e Daniel Guimarães (criador do website TarifaZero.org em 2009) sentimos hoje toda vez que uma multidão de rua grita “Tarifa Zero”, porque foi um longo processo até essa expressão ter sido assumida por todos os coletivos do Movimento Passe Livre e, pouco a pouco – com muito trabalho de base em escolas e comunidades, além dos materiais impressos e das manifestações de rua -, ser apropriada por tantas pessoas. Não cheguei a redigir esse texto e, no processo de organização desta publicação, acabei escrevendo e publicando um outro texto relacionado ao tema, objetivando contribuir diretamente em um processo político, mais que em processos estéticos. A Cris perguntou se eu não teria vontade de publicar este texto também aqui no Vocabulário e, inicialmente, achei que não fazia muito sentido. Ao voltar ao texto, lembrei que seu objetivo principal era trazer para o debate público a Tarifa Zero, no momento em que a grande imprensa escolheu ofuscá-la, colaborando no processo de criminalização das lutas por mudanças sociais e espaciais. E o que é este Vocabulário, senão tornar visíveis certos termos e contextualizá-los?

Não sei se o texto que segue irá colaborar em processos estéticos – espero que sim -, mas estou muito contente de contribuir na publicação desde os movimentos políticos.

Grazi

Originalmente publicado no TarifaZero.org, em 26/6/2014

 

Escrevo este texto a partir da experiência da manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre no dia 19 de junho de 2014 em São Paulo e a sua repercussão na imprensa. Esclareço desde já que o texto é assinado por mim individualmente e que não falo em nome de ninguém. Busco apenas contribuir como pessoa que estava presente no ato e que ainda se choca com as distorções desleais feitas por alguns jornalistas dos veículos de imprensa hegemônicos, que estavam igualmente presentes. Farei uma reflexão sobre o que o ataque a agências bancárias e concessionárias de automóveis poderia ter a ver com a luta pela gratuidade no transporte, mas que no ato do dia 19 não teve; além de uma crítica à criminalização dos movimentos sociais. Escolhi me posicionar diante do que considero uma tática equivocada para o nosso momento atual, mas tenho a clareza de que a verdadeira violência é promovida pelo Estado, tanto pela sua polícia como pelas suas políticas públicas distorcidas, que servem mais a interesses privados.

Começo comentando o título dado pelo Movimento Passe Livre ao evento. No lugar do mote “Não vai ter copa”, limitado ao momento específico que estamos vivendo, o MPL propôs “Não vai ter tarifa”, que expressa a luta de mais de nove anos de existência do movimento e dos anos futuros. Eu tendo a não gostar muito desses títulos que operam pela negativa; acho que funciona mais ser propositivo (algo como “Vai ter Tarifa Zero”). Ao filmar o ato eu tinha que fazer um certo esforço para enquadrar a faixa “Não vai ter tarifa” inteira. Se algumas pessoas se posicionassem na frente do “Não”, lia-se “vai ter tarifa”, e talvez esta parte da frase fique impregnada no nosso inconsciente. Ainda assim considerei a escolha do movimento pertinente, pois se a Copa no Brasil em breve irá terminar, outros tantos problemas (incluindo aqueles causados pela FIFA) permanecerão por aqui (1). Além de se solidarizar com quem é contra a FIFA e contra o mau uso do dinheiro público – o “Não vai ter copa” está implícito no “Não vai ter tarifa”, é a origem do novo nome -, o movimento sugere um foco mais específico. E faz todo sentido pautar o transporte coletivo no contexto da Copa, porque a maior parte dos investimentos do governo para a Copa foram, supostamente, em mobilidade urbana. Digo supostamente porque as obras realizadas (ou planejadas, muitas não chegaram a ser construídas ou finalizadas) não necessariamente implicaram em uma maior mobilidade das pessoas pelas cidades (2).

Havia também outro contexto para o acontecimento da última quinta-feira em São Paulo: a comemoração de um ano na revogação do aumento de vinte centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trem, em 19 de junho de 2013, acompanhada pela redução de tarifas no transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras. Vez ou outra vejo pessoas dizendo que as revoltas de junho não tinham objetivos claros ou que não tiveram conquistas concretas, que “não deu em nada”. A redução no preço das tarifas do transporte coletivo em quase duzentas cidades brasileiras é uma conquista concreta e tanto, que faz uma enorme diferença na vida de muita gente (3). Apenas é insuficiente, e esta insuficiência foi expressa no subtítulo que o MPL deu ao ato, tanto no cartaz de convocação como no panfleto distribuído: “Agora só faltam 3 reais” (4).

Falta mais que três reais, alguns vão dizer, assim como, no ano passado, disseram que não era por vinte centavos. Mas aqui irei me deter nas reivindicações específicas do Movimento Passe Livre, que é um movimento de transporte. Para o MPL, o transporte é um direito essencial, que tem o potencial de articular espaços urbanos e outros direitos. Só existirá educação pública de verdade – acessível a todas as pessoas – se o transporte também for público de verdade; do mesmo modo que hospitais, parques e espaços culturais gratuitos só serão economicamente acessíveis a todas as pessoas se não houver mais tantas catracas no meio do caminho (as catracas dos ônibus, dos terminais e das estações de trem e metrô) (5). Lutar pela gratuidade no transporte não é pouca coisa e é importante os leitores deste texto terem isto no horizonte. Esta luta não exclui a necessidade de outras tantas lutas por mudanças sociais e transformações urbanas, mas exige foco e adensamento para ser bem feita.

Os objetivos do ato do dia 19 foram publicamente declarados desde o início do ato, durante a leitura coletiva de um manifesto, amplificada na forma de jogral por quase todos os presentes. Entre outras frases, o jogral afirmava que “Se a Copa é dos ricos” – e um jogo começava no Itaquerão naquele exato momento -, “a cidade é nossa!” (6). Estávamos ali pela comemoração de um ano da revolta popular que barrou o aumento nas tarifas; pela readmissão de 42 metroviários injustamente demitidos; e, principalmente, por Tarifa Zero. Digo principalmente porque a maior parte dos cartazes, das faixas e das ações realizadas tinham como foco a gratuidade no transporte coletivo (7).

A primeira ação do dia, completamente ignorada pela imprensa hegemônica, na Praça do Ciclista, foi a coleta de assinaturas para o projeto de lei de Tarifa Zero de iniciativa popular. Para um projeto de lei municipal ser apresentado pelas pessoas comuns (e não por vereadores) são necessários dados e assinaturas de 5% do eleitorado. Em São Paulo este número equivale a aproximadamente 500 mil pessoas – um número bastante alto, sendo que não valem assinaturas virtuais, como acontece nas petições online. O trabalho de conversa e coleta de assinatura na escala um-pra-um vem acontecendo desde 2011, e quem se interessar por conhecer o texto do projeto de lei e em colaborar nesse processo pode acessar a página da campanha (8)

Uma das últimas ações do ato, que desceu toda a Av. Rebouças e ocupou a Marginal Pinheiros, foi a queima de diversas catracas simbólicas, de papelão, seguida da leitura coletiva de um novo manifesto, com um “recado bem claro”, direcionado principalmente aos empresários que lucram com o deslocamento dos paulistanos: “Agora é o povo que vai mandar no transporte” (9).

Após a queima de catracas, os organizadores do ato puseram música para tocar (um carro com aparelhagem de som foi posicionado na via) e um pequeno campo de futebol foi desenhado no asfalto. Os presentes pularam as catracas ainda em chamas, dançaram e jogaram futebol em plena Marginal (os manifestantes são contra a Copa elitista e higienista da FIFA, não contra o futebol). Bandeirinhas juninas e uma grande bandeira com a expressão “Passe Livre” foram penduradas em postes e na ponte Eusébio Matoso.

A beleza de se realizar uma festa em plena Marginal foi ofuscada na imprensa hegemônica pela ação isolada de uns poucos presentes, que haviam quebrado vidraças de agências bancárias ao longo da Av. Rebouças e, ao final do ato, vidraças e automóveis de uma concessionária da Mercedes Benz. Essas ações foram claramente uma espécie de protesto paralelo, ao ponto de militantes do Movimento Passe Livre terem se posicionado de braços dados diante de agências bancárias da Rebouças, buscando dialogar com quem queria quebrar símbolos do capitalismo (no caso, bancos e concessionárias), explicando que o objetivo do ato não era quebrar nada, mas realizar uma festa popular – em contraposição à festa da elite dentro dos estádios caríssimos – por Tarifa Zero.

Esses militantes orientavam as pessoas a seguir para a Marginal e a grande maioria de manifestantes fez côro com eles, gritando para o ato seguir até a Marginal, de acordo com o planejado e publicamente divulgado (com o conhecimento da imprensa e da polícia). Surpreendentemente, uma repórter do jornal O Globo interpretou que “seguir para a Marginal” significava “não vamos quebrar nada na Rebouças, somente na Marginal”. Só posso pensar que se trata de desonestidade ou de um erro grave de interpretação, pois qualquer pessoa presente sabia que seguir até a Marginal significava tão somente não dar atenção para esse protesto paralelo e seguir o curso planejado para a manifestação.

Em nota divulgada no dia 21 de junho (10), o Movimento Passe Livre se recusa a julgar o que estou chamando de protesto paralelo, afirmando que não cabe ao movimento legitimar ou deslegitimar impulsos de indivíduos revoltados, mas deixa claro que essas ações não estavam entre os objetivos do ato organizado. O movimento critica o uso do termo “mascarados” pela imprensa, lembrando que todas as pessoas têm o direito de preservar a sua identidade (a manifestação foi amplamente fotografada e filmada) e se proteger de uma eventual perseguição e criminalização por parte da polícia (o que não é uma remota possibilidade, mas um fato recorrente). Historicamente, o uso de panos para cobrir os rostos tem também outro sentido, muito lindo: os zapatistas cobrem seus rostos com lenços com a intenção de configurarem um só rosto; uma forma de dizer “Agora não sou mais eu, somos nós”.

Nem todas as pessoas que tinham seus rostos cobertos no dia 19 se envolveram em depredações, concentrando seus esforços coletivos (e não seus impulsos individuais) em uma ação que pode ser considerada muito mais radical e inovadora que quebrar coisas: bloquear uma das maiores vias para automóveis da cidade com uma festa. Uma festa pública, com a presença de milhares de pessoas (11).

Quebrar bancos e concessionárias não necessariamente chama a atenção dos governos – a não ser para mobilizar seu lado mais autoritário e mais repressor -, e não gera melhores serviços públicos (estou supondo que estas eram algumas das intenções dos meninos que realizaram essas ações, pois foi o que declararam para a TV Folha) (12). Também não quebra o capitalismo. Alguém poderia argumentar que essas ações possuem potencial força simbólica, mas só teriam força de fato se refletissem uma revolta ou um desejo coletivos, o que não foi o caso do dia 19. O que vimos ali foi um espetáculo repetitivo, construído junto com a imprensa e com a polícia. Havia fotógrafos e cinegrafistas posicionados diante de agências bancárias antes mesmo de a manifestação passar por esses pontos e uma total ausência de policiais – a não ser nas duas extremidades do ato (Praça Mal. Cordeiro de Farias – perto do túnel da Av. Dr. Arnaldo – e Marginal) e, possivelmente, na presença de policiais à paisana ao longo do trajeto.

A polícia alega que o movimento se declarou responsável pela segurança do ato, mas a preocupação do movimento, segundo a mesma nota anteriormente citada, era tão somente que se evitasse uma presença ostensiva da polícia militar em um ato que se propunha a ser uma comemoração, uma festa; pois normalmente a presença da polícia e a atitude de alguns policiais contribui para que ações como essas aconteçam. Isso é parte do espetáculo midiático, que inclusive sempre coloca jovens vestindo moletom e atirando pedras em igualdade de forças com policiais fortemente armados e com seus corpos totalmente protegidos. Outra preocupação expressa pelo movimento na imprensa era que o ato fosse reprimido antes mesmo de começar, como havia acontecido, uma semana antes, no protesto contra a Copa nos arredores do Itaquerão, entre outros protestos recentes violentamente reprimidos. Além disso, quem coordena a polícia é a Secretaria de Segurança Pública/o governo do Estado, não o movimento social. É desonesto a polícia se colocar numa posição passiva, culpabilizando o movimento por sua omissão. Ao que parece, tudo isso foi construído com o objetivo de reavivar o inquérito policial nº 1/2013 do DEIC, que investiga manifestantes e é considerado ilegal pelos advogados e integrantes do movimento, uma vez que não apura crimes, mas persegue e criminaliza pessoas (13).

De todo modo, o que me motivou a escrever este texto foi discorrer um pouco mais sobre a ineficiência de se quebrar agências bancárias e concessionárias como forma de superar o capitalismo e levar a discussão pública para o verdadeiro foco do ato do dia 19. As vidraças, os caixas eletrônicos e os automóveis quebrados já devem ter sido repostos, ou serão repostos muito em breve. Esses espaços provavelmente possuem seguro, de modo que os quebra-quebras sequer implicam em altos prejuízos aos seus donos. Por que será que a imprensa hegemônica escolhe sempre dar ênfase às depredações feitas por bem poucas pessoas (no dia 19 devem ter sido, aproximadamente, 10 entre 2.000 pessoas – 0,5 % dos manifestantes), ao invés de noticiar as ideias que são verdadeiramente perigosas? A proposta de Tarifa Zero do Movimento Passe Livre tem o potencial de atacar o capital de um modo muito mais interessante: a taxação dos mais ricos, aí incluídos os donos de bancos e de concessionárias de automóveis.

A expressão “Tarifa Zero” foi proposta pelo engenheiro e músico Lúcio Gregori no começo dos anos 1990, quando ele foi secretário de Transportes em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, primeira prefeitura do Partido dos Trabalhadores nesta cidade. O projeto de ônibus Tarifa Zero previa um pequeno aumento no IPTU – o imposto progressivo sobre propriedade – como forma de financiamento (14). Por questões políticas o projeto não chegou a ser votado e foi desqualificado pela imprensa, apesar de pesquisas feitas com a população terem demonstrado que uma imensa maioria era favorável à Tarifa Zero, mesmo com o conhecimento de que ela implicaria em um aumento no IPTU.

Quase vinte anos depois a expressão foi recuperada pelo Movimento Passe Livre e, durante as revoltas de junho de 2013, podia ser ouvida nos mais diferentes espaços de São Paulo, dita por pessoas as mais diferentes. Ainda que, nesta cidade, as grandes manifestações de junho tenham sido pela revogação dos vinte centavos de aumento nas tarifas de ônibus, trem e metrô, a luta de longo prazo do movimento – contra a própria existência dessas tarifas – ficou em evidência e se tornou mais popular.

Uma coisa que tanto Lúcio Gregori como o movimento sempre deixaram clara é que a Tarifa Zero não significa “ônibus de graça”. O transporte tem custos, é claro. Gasolina, manutenção, salário dos trabalhadores etc. Assim como é necessário o governo pagar salários de professores e demais funcionários nas escolas públicas e comprar mesas, cadeiras, lousas, giz, e alimentos para as mesmas, entre outras coisas. Mas tudo isso, no caso das escolas, é pago por todos nós, indiretamente, através de impostos. Não existem catracas na entrada das escolas para cobrar os custos da educação diretamente dos alunos, a cada vez que eles usam esse serviço público; e seria um absurdo se isso fosse sequer cogitado.

O problema é que, no Brasil, quem mais paga impostos, se calcularmos o valor dos impostos embutidos em produtos de consumo proporcionalmente à renda do indivíduo, são os mais pobres. As pessoas mais ricas questionam mais o pagamento de impostos que os pobres porque têm mais consciência de quanto pagam, pois normalmente seus impostos são sobre propriedades e vêm na forma de boletos, são visíveis. Os mais pobres não possuem propriedades e pagam impostos invisíveis, que representam boa parte da sua renda, sem ideia de quantos % de impostos estão pagando, ou mesmo que estão pagando (15). É necessária uma inversão na cobrança de impostos; quem tem mais dinheiro precisa pagar mais, proporcionalmente à sua riqueza.

O financiamento do transporte precisa acontecer de maneira indireta, como já acontece nas escolas e nos hospitais públicos, mas através da criação de um fundo específico para o transporte, cuja receita deve vir fundamentalmente da cobrança de impostos progressivos, entre outras possíveis arrecadações. Imposto progressivo é aquele cujo percentual aumenta de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. No caso do IPTU, por exemplo, proprietários de casas pequenas são isentos do pagamento e proprietários de casas médias e grandes pagam um valor proporcional ao tamanho/valor dos imóveis. Desde os primeiros anos de existência do Movimento Passe Livre (não somente em São Paulo, mas em diversas cidades brasileiras), os panfletos sugerem que a arrecadação venha de uma maior cobrança de impostos de proprietários e/ou grandes acionistas de bancos, multinacionais, resorts, shopping centers, mansões e automóveis de luxo (16).

A taxação da riqueza é necessária para haver distribuição de renda e diminuição da desigualdade social. Além disso, é a elite quem mais se beneficia do deslocamento de milhões de trabalhadores diariamente.

No dia 10 de junho, o jornal reproduziu uma notícia do Financial Times que informa que a riqueza privada global, concentrada em 1,1% de toda a população mundial, atingiu o recorde de 152 trilhões de dólares (17). Este número é tão somente o excedente de riqueza de famílias muito ricas. O dinheiro que fica no banco se reproduzindo/se multiplicando, gerando novos excedentes tanto para essas famílias como mais lucros para os bancos. Com esses recursos seria possível atender a uma série de demandas sociais (talvez todas) não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.

Em fevereiro deste ano, o portal G1 divulgou uma notícia informando que o lucro de quatro bancos brasileiros no ano de 2013 somado supera o PIB (Produto Interno Bruto) de 83 países (18). O Banco do Brasil registrou lucro líquido de 15,75 bilhões de reais, o Itaú Unibanco de 15,696 bilhões, o Bradesco de 12 bilhões e o Santander de 5,7 bilhões. Para se ter a dimensão desses valores, todos que somos contra o mau uso do dinheiro público nos estádios “padrão FIFA” estamos criticando o uso de aproximadamente meio bilhão a um bilhão por estádio. Se questionamos quantas escolas poderiam ter sido construídas ou melhoradas com o valor investido em cada estádio, imaginem quantas coisas poderiam ser feitas se esses bancos fossem mais taxados e essa riqueza acumulada socialmente distribuída.

A proposta de financiamento da Tarifa Zero através de uma reforma tributária que implique em um aumento proporcional de impostos dos muito ricos significa que quem tem mais dinheiro irá contribuir com mais, quem tem menos irá contribuir com menos, e quem não tem dinheiro não precisará contribuir com nada. E todos, sem exceção, poderão usar o transporte coletivo, tornado “público” de verdade.

As cidades pelo mundo que adotaram a Tarifa Zero no transporte experimentaram uma drástica redução no uso de automóveis particulares. Na cidade de Hasselt, Bélgica, que por mais de dez anos teve uma política de gratuidade no transporte coletivo, a utilização do transporte público aumentou mais de doze vezes (de 360.000 passageiros o sistema passou a acolher 4.614.844 passageiros) (19). Nos Estados Unidos, algumas cidades adotam a Tarifa Zero em horários específicos, por exemplo durante o almoço, estimulando pessoas que trabalham no mundo corporativo e que usam automóveis como meio de circulação a usar o transporte coletivo para ir almoçar e retornar ao trabalho.

Ainda que os custos de um sistema Tarifa Zero em uma cidade grande como São Paulo sejam altos, exigindo altos investimentos públicos, é preciso se ter em mente que a Tarifa Zero tem o potencial de gerar toda uma economia sistêmica. No caso da saúde pública, por exemplo, os maiores gastos por internação nos hospitais são 1. por problemas respiratórios, advindos da poluição do ar pelo excesso de automóveis particulares em circulação; e 2. acidentes de trânsito, em sua maioria causados por automóveis particulares (20).

A criação de um sistema Tarifa Zero no transporte coletivo não supera o capitalismo, mas pode enfraquecer os paradigmas onde os bancos e as concessionárias de automóveis atuam. E melhorar a vida da maioria da população.

Quebrar vidros para a imprensa fotografar não está construindo a necessária força social para experimentarmos mudanças na nossa vida cotidiana. Quem se lembra da alegria que foi ver as telinhas das catracas dos ônibus, trens e metrôs voltar a marcar “3,00” reais no lugar de “3,20”, após termos barrado esse aumento, nas ruas? As manifestações de junho incluíram depredações, reconheço, mas como expressão de uma revolta coletiva, incontrolável, e, principalmente, como reação à forte repressão policial (apesar de a grande imprensa ter o costume de inverter essa ordem; sempre sugerindo que quem começa a violência são os manifestantes).

No ato do dia 19, as depredações aconteceram à revelia da enorme maioria de manifestantes presentes, sendo consideradas inclusive autoritárias, infantis e machistas por muitos de nós. É importante que se respeite aquilo que é combinado coletivamente, de modo que outras pessoas – como mulheres grávidas, crianças e pessoas idosas – também possam participar da festa (21).

A repressão policial ao final do ato do dia 19 caiu sobre todos os presentes, de modo que a vida de todas essas pessoas estava em risco, exposta a bombas de gás, spray de pimenta (22), balas de borracha, pancadas de cassetetes e prisões arbitrárias. Eu já participei de diversos protestos sem depredações que foram igualmente ou mais reprimidos, reconheço novamente, mas neste dia as pessoas já estavam voltando para casa ou caminhando até o Largo da Batata, onde o ato seria concluído, quando a concessionária da Marginal começou a ser quebrada. Não foi nada legal tantas pessoas terem sido atacadas e perseguidas pela polícia, tornadas reféns da ação de poucos que estavam dispostos a esse enfrentamento (bem poucos mesmo; no registro da TV Folha referenciado anteriormente contei três meninos dentro da concessionária, em meio a diversos jornalistas, e entre quatro e cinco na agência bancária, não dá para saber ao certo). Quebrar vidros é diferente de ferir a integridade física e jurídica de pessoas, mas, neste dia – ainda que eu não aceite isto como justificativa, a polícia precisa deixar de existir desta forma -, o ataque contra vidros praticado pelos meninos foi usado como desculpa para uma violência generalizada contra as pessoas, pela polícia. Não somente contra manifestantes, mas contra qualquer pessoa que tenha dado o azar de estar na região do Largo da Batata naquele momento. Mais gravemente, essas ações isoladas estão agora sendo usadas para o Estado seguir criminalizando as lutas sociais, instalando um estado policial que remete à ditadura militar (23). Tudo isso limita, propositadamente, a capacidade de atuação dos movimentos, que precisam dedicar todos ou quase todos os seus esforços para responder a essa criminalização.

Apropriando-me das palavras de um amigo de amigos em seu mural público de Facebook, eu “não condeno a tática [Black Bloc], mas apenas dizer que não a defendo não é mais suficiente. Precisamos dizer que não concordamos e que isso está atrapalhando a luta social que pretende colocar interesses públicos na frente dos interesses privados que historicamente governam a sociedade. A confusão entre uma tática que busca o apoio popular massivo para as suas ideias e outra que pouco se importa com a opinião pública só fortalece quem contra ambas está” (24).

A Tarifa Zero precisa do apoio popular das massas, pois é as massas que irá beneficiar. O esforço dos militantes do MPL, que há quase uma década fazem discussões sobre mobilidade urbana e direito à cidade em escolas e em comunidades/bairros que possuem diversas carências no transporte coletivo, sempre foi de agregar pessoas e, mais que isso, estimular sua auto-organização. Não podemos reduzir a Tarifa Zero a uma compreensão burocrática da luta. A liberdade de nos movimentarmos pelas cidades sem restrições econômicas é uma ideia nova e radical. Para ser acessível a todas as pessoas, precisa existir como direito e política pública, pois nem todos possuem disposição ou condição física para pular catracas e para sustentar enfrentamentos com a polícia.

É só imaginar muitos ônibus sem catraca circulando para perceber a força dessa ideia. Imaginar que a gente pode entrar e sair por qualquer porta dos ônibus, sem precisar se esmagar até a porta de saída. Que a gente pode traçar qualquer percurso pela cidade, parando para fazer coisas ao longo do caminho. Que pessoas que estão excluídas da cidade por não poderem pagar as tarifas do transporte vão passar a ser incluídas. Que vão passar a chegar a lugares onde atualmente não chegam. A poder frequentar os espaços culturais gratuitos, as escolas e os hospitais. A visitar seus amigos e familiares com maior facilidade. A ficar mais próximas umas das outras, tornando a cidade, ao mesmo tempo, grande e pequena.

Lembro de um dia pós-junho de 2013 em que eu saí do metrô República e, ao caminhar pela praça, olhei para trás e tive a certeza de que um dia as pessoas acharão absurdo imaginar que no passado era necessário pagar para usar o transporte público. Quero muito estar viva para me movimentar nessa cidade Tarifa Zero e para conhecer a geração que vai crescer sem catracas no meio do caminho. Assim como hoje estudantes e suas famílias se beneficiam do meio-passe escolar graças aos esforços de pessoas que lutaram por ele décadas atrás, nós vamos poder dizer que colaboramos nesse processo coletivo e ensinar a luta para nossos filhos. Precisamos de experiências vitoriosas para as pessoas continuarem lutando. Quebrar vidro não cumpre esse papel. Pode cumprir alguns papéis táticos, mas, consistentemente, não muda a vida cotidiana das pessoas.

 

Notas

(1) O que não deslegitima, de modo algum, a importância dos protestos contra a FIFA ou contra as remoções de famílias pobres de suas casas durante todos os anos de preparação da Copa, o valor absurdo de recursos públicos investidos na reforma ou na construção de estádios, a morte de operários da construção civil, o turismo sexual etc. Os que quiserem conhecer melhor todas as motivações das pessoas que foram às ruas contra a FIFA, contra algumas implicações do evento na vida de pessoas pobres e contra determinadas ações dos governos brasileiros, podem ler o conjunto de reportagens realizadas pela Agência Pública, publicadas na seção “Copa pública”: http://apublica.org/category/copa-publica/. Também recomendo a seção “Não tem dinheiro pra Tarifa Zero?”, do portal TarifaZero.org, que compartilha notícias sobre altos investimentos dos governos como crítica ao mau uso de dinheiro público, sugerindo a necessidade de novas prioridades: http://tarifazero.org/category/uncategorized/naotemdinheiro/ . Neste contexto, destaco uma notícia que compartilhamos sobre a Arena da Amazônia, que custou 669,5 milhões de reais e que foi construída para sediar quatro jogos da Copa e nada mais: http://tarifazero.org/2014/03/09/manaus-apos-mortes-e-r-6695-mi-arena-da-amazonia-sera-aberta-neste-domingo/ . Três trabalhadores morreram na construção deste estádio e não existe demanda dos times e das torcidas locais que justifique uma arena de enormes proporções. Alguns usos vêm sendo cogitados para o estádio após a Copa, mas, seja qual for esse uso, certamente não poderia ter sido priorizado no lugar de demandas sociais urgentes que devem existir na cidade de Manaus. Finalmente, recomendo a leitura do número atual da excelente revista Retrato do Brasil (n. 83, junho de 2014), que traz uma matéria sobre que tipo de legado a Arena Corinthians (o “Itaquerão”) deixará para a Zona Leste de São Paulo e uma reportagem sobre os faturamentos da FIFA e de seus parceiros na Copa do Brasil.

(2) Ver “A cereja sem bolo”, reportagem de Thiago Domenici na revista Retrato do Brasil n. 73, agosto de 2013. Apenas saliento que as vaias à Dilma a que Thiago se refere no texto são dos acontecimentos do ano passado, em sua maioria por razões diferentes dos xingamentos feitos por convidados vips na abertura da Copa no Itaquerão. PDF da revista disponível em https://dl.dropboxusercontent.com/u/27221790/Retrato%20do%20Brasil/RB73.1-17.pdf.

(3) No Brasil aproximadamente 37 milhões de pessoas não podem pagar as tarifas do transporte “público”, e a cada vez que essas tarifas aumentam essa exclusão aumenta também. O panfleto distribuído no dia 19/6 pode ser lido em http://tarifazero.org/2014/06/19/nao-vai-ter-tarifa-panfleto-do-mpl-sao-paulo-para-o-ato-de-hoje-dia-19/.

(4) Preço atual das tarifas de ônibus, trem e metrô na cidade de São Paulo.

(5) Ouvir a Canção para o Movimento Passe Livre, de Rodolfo Valente (2006): http://tarifazero.org/2013/06/17/sao-paulo-cancao-para-o-movimento-passe-livre/.

(6) Texto do jogral: “Pessoal / Pessoal / Estamos aqui hoje / Para lutar / Por um transporte público de verdade / Enquanto os governos / Gastam bilhões com a Copa / E com o transporte individual / Somos humilhados todos os dias / Nos ônibus e trens lotados / E quem tenta resistir / É criminalizado / Motoristas, cobradores e metroviários / São demitidos por fazer greve / E quem tenta se manifestar / É reprimido pela Polícia Militar / Mas nós sabemos / Que só com a união de todos os trabalhadores / Os que viajam no transporte / E os que trabalham no transporte / É que derrotaremos / Os empresários e seus governos / Que todos os dias / Nos exploram nas catracas / Por isso hoje / Saímos às ruas para dizer: / Se a copa é dos ricos / A cidade vai ser nossa / Tarifa Zero quando? / Tarifa Zero já!”.

(7) No pequeno vídeo que realizei sobre o ato, intitulado “Túnel Av. Paulista – Dr. Arnaldo”, é possível visualizar as faixas “NÃO VAI TER TARIFA” e “TARIFA ZERO PAGA PELOS RICOS”: https://vimeo.com/98782301.

(9) Texto do segundo jogral: “Pessoal / Pessoal / Marchamos desde a Av. Paulista / Até aqui, a Marginal Pinheiros / Para mostrar que / Quem constrói essa cidade todo dia / Quase não pode usar a cidade / Mostramos que / Não vamos parar de lutar / Até a tarifa acabar / Até não existir mais catracas / Até todos os trabalhadores grevistas / Serem readmitidos / Até os donos do transporte / Pararem de lucrar / Com o nosso sufoco! / Vamos ocupar a Marginal / Vamos ficar na Marginal / E realizar uma grande festa popular / Que deixe bem claro / Que não aceitamos mais essa cidade segregada / Onde passavam carros de luxo / Vão ficar catracas em chamas / Para deixar um recado bem claro / Agora é o povo que vai mandar no transporte!”.

(11) A polícia militar contou 1.300 manifestantes. O movimento estimou que havia muito mais gente, em torno de 3.000 pessoas. A imprensa divulgou, como sempre, o número dado pela PM, com raras exceções. Cito um comentário de Pablo Ortellado após as primeiras notícias divulgadas, publicado em seu mural público de Facebook: “Acho incrível a falta de coerência da imprensa no uso dos dados da polícia militar para estimar manifestantes. O protesto é contra o Estado, o Estado dá número subestimado de manifestantes e a imprensa usa esse número e só esse número sem o menor pudor – sem notar que essa opção por si só já compromete o princípio do equilíbrio jornalístico”.

(12) Logo no início do vídeo editado pela TV Folha um menino diz: “Quebrar tudo. Só assim que o governo ouve, irmão”. Aos 27 segundos outro diz: “Eu quero meu direito, eu quero escola, eu quero hospital. Foda-se a Copa”. O prólogo desta vídeo-reportagem mostra exclusivamente ações de depredação e repressão policial, anunciando a escolha editorial que estará presente ao longo de todo o vídeo, em detrimento de outras possibilidades, mais fiéis ao que se passou na maior parte do tempo da manifestação: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/06/1473409-mpl-tenta-mas-nao-consegue-evitar-vandalismo-em-ato-veja-imagens.shtml .

(13) Segundo a nota “Mais uma vez, não vamos ao DEIC e denunciamos o inquérito ilegal”, de 23/6/2014, o MPL informa que no dia seguinte ao ato, sexta-feira, 20 de junho, “a policía esteve novamente nas casas de militantes, intimando-os pela quinta vez para depor no DEIC e ameaçando seus familiares” (ver http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/23/mais-uma-vez-nao-vamos-ao-deic-e-denunciamos-o-inquerito-ilegal/). Ver também os manifestos publicados anteriormente: “Porque não vamos depor no DEIC”, de 24/1/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/01/24/porque-nao-vamos-depor-no-deic/) e “Pelo trancamento do inquérito nº 1/2013 do DEIC”, de 9/6/2014 (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/06/09/pelo-trancamento-do-inquerito-ilegal-no-12013-do-deic/).

(14) Segundo Lúcio Gregori, em troca de emails comigo, “esses recursos viriam de uma reforma tributária, sendo que 33% dos imóveis, com menos de 60 metros quadrados, eram isentos de IPTU e, portanto, teriam somente ganhos com a gratuidade dos transportes. Outros 44,7% dos imóveis teriam IPTU entre Cr$ 1,00 até Cr$ 1990,00 cruzeiros mensais da época. No caso dos moradores desses 44,7 % imóveis, que teriam o reajuste até Cr$1990,00, como ficaria? A tarifa dos ônibus era de Cr$ 35,00. Numa estimativa conservadora, duas pessoas que morassem num desses imóveis, gastariam Cr$140,00/dia x 22dias = Cr$ 3080,00 somente para deslocamento residência/trabalho/residência em 22 dias úteis. Assim teriam uma vantagem, na pior das hipóteses, de Cr$(3080,00 – 1990,00) = Cr$1090,00 por mês, devido à gratuidade nos transportes. Então, 33% + 44,7% = 77,7% das residências da cidade e, portanto, seus moradores, ganhariam com a gratuidade vinculada à reforma tributária”. Outra informação relevante é que na gestão de Lúcio como secretário de Transportes a frota de ônibus de São Paulo aumentou de 7.600 ônibus para 9.600 ônibus e o projeto de Tarifa Zero previa novo aumento da frota, de mais 50% (mais 4.800 ônibus), para atender a demanda que seria gerada pela gratuidade. Lúcio recomenda a leitura do texto “Procurando entender a Tarifa Zero”, de Chico Whitaker (1990): http://tarifazero.org/2011/08/25/procurando-entender-a-tarifa-zero/.

(15) Recomendo a leitura da entrevista com o economista Marcio Pochmann no jornal Brasil de Fato (20/2/2014). Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/27525.

(16) Os recursos não precisam vir do IPTU como ocorreria no projeto dos anos 1990; os técnicos podem estudar a aplicação de uma “taxa transporte” sobre atividades econômicas que se beneficiam com a mobilidade, incorporando o vale-transporte nessa taxa. Contribuição de Lúcio Gregorio.

(19) Para conhecer experiências de Tarifa Zero pelo mundo, ver a seção “Boas experiências” do portal TarifaZero.org: http://tarifazero.org/experiencias/. Destaque para Tallin (Estônia), com 420 mil habitantes, primeira capital europeia a adotar a gratuidade no transporte para todos seus habitantes.

(20) No artigo “O transporte público gratuito, uma utopia real” (coletânea Cidades rebeldes, São Paulo: Boitempo, 2013), o sociólogo e editor João Alexandre Peschanski discorre sobre outras justificativas de ordem econômica para a Tarifa Zero. Ver também seu texto “Motivos econômicos pelo transporte público gratuito”, no blog da editora Boitempo: http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/10/motivos-economicos-pelo-transporte-publico-gratuito/.

(21) Uma reflexão útil pode ser repensar as táticas usadas pela Ação Global dos Povos (que ficou mais conhecida como “movimento antiglobalização”) no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000: tudo o que seria feito no ato do grupo era decidido em assembleia. O que escapasse disso era tratado como ação de agentes infiltrados. Servia muito bem para evitar sequestros de pauta, mas funciona melhor para dizer que o movimento está disposto a decidir tudo democraticamente. Contribuição de Daniel Guimarães.

(22) O spray de pimenta é proibido em muitos países até mesmo como arma de guerra, mas no Brasil é largamente usado como arma “não letal” contra civis. O gás pode ser letal para pessoas que possuem problemas respiratórios, cardíacos e para mulheres grávidas.

(23) Pouco antes da finalização deste texto, o secretário de Segurança Pública Fernando Grella anunciou que a polícia será acionada para levar 22 militantes do Movimento Passe Livre à força para depor no DEIC. Como resposta, o movimento está convocando o secretário e integrantes de movimentos sociais para debater, publicamente, a criminalização em curso dos movimentos e exigir, novamente, o trancamento do inquérito nº1/2013. Será no dia 3 de julho, às 15h, diante do Tribunal de Justiça (Praça da Sé): https://www.facebook.com/events/663391543743365/.

(24) Pedro Ekman. Ele concluiu seu depoimento citando Sun Tzu em A arte da guerra: “Estratégia sem tática é o caminho mais longo para a vitória. Tática sem estratégia é o estrondo que se escuta antes da derrota”. Como referência histórica e aprofundamento da questão recomendo o texto “O movimento de ação direta britânico dos anos 1990”, de Leo Vinicius (2009), sobre o auge e a criminalização do movimento Reclaim the Streets, no Reino Unido: http://passapalavra.info/2009/08/11797.

 

 vocabpol em 23112014 ação, entradas, índice, manifestações, movimento, narrativa

Transdução

– ou “Guia para orientar-se na multidão”

// por Pedro B. Mendes e Fernanda Kutwak (1)

Que peut un homme pour autant qu’il n’est pas seul?
[O que pode um homem uma vez que ele não está só?]
– Muriel Combes

 

Toda relação é, por princípio, trans

Diálogo

Se relacionar-se é por-se às voltas com o mundo do outro, e sobretudo de outrem – aqueles que não estando presentes se fazem efetivos na ausência, implicados que são na relação contrastiva necessária à nossa própria singularidade – é preciso afirmar algumas condições ao diálogo:

1) a existência de uma mesma língua, longe de nos igualar, faz emergir as diferenças, torna palpáveis as distâncias entre nós que, de outra forma, passariam desapercebidas; cada fonema, palavra ou fórmula linguística apela à nossa experiência de vida, a nossas preferências, nossos hábitos e cegueiras, cuja combinação é tão múltipla quanto o é nossa vida – e as línguas como parte constituinte delas. Sozinhos em nossos mundos-modos somos capazes de perceber as coisas apenas de acordo com nosso próprio ponto de vista, nossa própria singularidade. Se isto não é suficiente para nos colocar em contato com a diferença, não em termos radicais como exige nosso presente, deveria bastar para nos fazer perceber a singularidade de nosso próprio caso. Em outras palavras, esse ponto de vista só pode existir por que há outros que dele se diferenciam. É em contraste com outrem que nossas vidas são possíveis.

2) Todo diálogo é coextensivo à produção de um mapa experimental (complexidade) e instável que deve nos dar, a cada momento, os aclives e declives de uma relação, suas possibilidades, suas entradas e contornos, sem os quais toda conversação caminha inevitavelmente para um fim. Lacan dizia que a boa análise consiste em construir a boa distância em relação a tudo aquilo que nos afeta. O contraste entre as singularidades é um processo dinâmico de diferenciação, em que as distâncias vão aumentando ou diminuindo, em todo caso variando, construindo erraticamente aquilo que, por falta de imaginação, convencionou-se atribuir a uma hipotética “primeira pessoa” pura, do singular ou do plural, pouco importa.

3) O melhor mapa, ou antes, o único mapa possível de nós mesmos é aquele traçado pelos outros. A autoimagem é na verdade um patchwork constituído de imagens outras, imagens que os outros vão pintando de nós nos diversos encontros que entretecemos durante a vida. Aquilo que atribuímos ao “eu” e ao “nós” nada mais é que o recorte precário e cambiante – um espectro – dos vários atravessamentos que somos convocados a viver. (hidrosolidariedade) Portanto, se queremos saber como vamos ou (re)agimos em uma determinada situação, nada melhor que observar a sombra que fazemos nas luminosidades alheias, e vice-versa, a luz que projetamos sobre os corpos dos outros.

4) A palavra portuguesa “nós” dá conta da ambiguidade sutil de nossa condição. O “nós”, primeira pessoa do plural, contém a multiplicidade de relações que se esconde dentro do sujeito que age. Mas mais que conter, os “nós” da rede de pessoas que somos libera a diferença subsumida em uma suposta unidade da ação. Somos diferentes em relação a cada situação. Diferimos todo o tempo de nós mesmos. O jogo daquilo que resta e do que avança a cada encontro é exatamente o que tentamos conter precariamente com as pessoas verbais e o que torna possível que, sendo nós mesmos, sejamos tantos outros a cada momento. Nós: pontos em que convergem vias de comunicação.

5) Da mesma forma, cada combinação que traçamos ou de que fazemos parte tem possibilidades distintas, de acordo com os actantes-ingredientes relacionados e com as variações a que nos expomos e a que somos submetidos. Portanto, sem entrar em questões relacionadas à nossa importância no mundo – muito diminuta, é sempre provável – convém nos atermos às impressões que literalmente deixamos por onde quer que passemos. Nossos ideais são louváveis, nossas utopias parecem perfeitas, mas são nossas pegadas que deixamos por onde passamos. Elas são o rastro concreto de um mundo em construção: são os efeitos de nossas ações (e inações) que permitem avaliar as soluções que damos aos problemas. É em termos de efeitos que convém a tudo i n t e r p r e t a r.

6) Nem falante, nem ouvinte. Nem parte, nem todo. O mais importante em um diálogo é a relação que une e principalmente faz oscilar a posição de sujeito e objeto de acordo com as inflexões do momento. A expressão de uma diferença, um instante de surpresa e a palavra vai como o vento: são os intercessores que nos fazem mudar de rumo – e de forma, de natureza, de intensidade. É graças a eles que nos engajamos em movimentos outros, ora acelerando com o impulso inesperado de uma parceria, ora freando diante de um encontro pouco ou nada promissor; mas sempre oscilando de direção e de sentido ao sabor dos ventos e das correntes. Cada intercessor um encontro possível, cada encontro uma surpresa, cada surpresa uma diferença.

7) Last and maybe least. Um verdadeiro encontro, um diálogo honesto, não tem regras preconcebidas. Apenas duas leis, tão óbvias quanto necessárias, cada uma apontando para uma polaridade e um risco extremos: a primeira diz respeito ao esvaziamento da diferença e à colocação do outro numa posição de subalternidade, em que qualquer surpresa possível é sempre atenuada mediante uma explicação bem ou mal-intencionada – portanto, não apagar, não silenciar, não desqualificar uma fala. A segunda está ligada ao microfascismo que nos habita a todos, e ao qual é preciso aprender a resistir juntos; é sempre tentador suprimir a diferença incômoda, a posição dissonante, numa dinâmica cujo limite são a violência física e o assassinato – logo, não agredir e principalmente não permitir que se agridam as pessoas. A democracia exige esse compromisso básico.

Entrar em diálogo é inevitavelmente se transformar (escuta) e, assim, implica em correr riscos. Se as pessoas não se afetam, pode ser qualquer coisa, menos um diálogo!

— xxx —

Tradução

Na introdução à edição da Brasiliense de Satyricon, de Petrônio, Paulo Leminski aborda o ofício do tradutor-poeta em sua condição trágica: manter uma fidelidade essencial ao jogo estilístico tecido no original e assim perder parte do encanto proporcionado pelo conteúdo do texto; ou perseguir o rigor semântico e abrir mão da riqueza da forma poética. Diante da antinomia apresentada, cara a todas as boas traduções de obras consagradas, Leminski propõe um saída inusitada: se é para correr riscos, que seja com a arte dos equilibristas na corda bamba. Em outras palavras, a opção pelas duas vias e por nenhuma delas em especial – trair a ambas e ser fiel, na medida do impossível, também a ambas. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém. Questão de dignidade, não de fidedignidade.

Equilibrando-se na transcriação do texto, o poeta-tradutor ora segue o caminho trilhado pelo autor, com seus valores de oralidade e naturalidade dos diálogos, ora se afasta dele para se embrenhar pelas veredas da linguagem em um arriscado corpo a corpo de fim imprevisível. Ora ainda abandona toda etiqueta e se permite incorporar, baixar mesmo, num download espiritual, a materialidade do sensível e literalmente percorrer – em pessoa! – o caminho impossível do autor, com o compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo.

Como ocorre com Pierre Menard, autor do Quixote, de Borges. Pierre não é aquele que vai repetir Cervantes, mas alguém que busca viver uma outra vida até o extremo em que sua vida e seus deslocamentos vão assumir uma indiscernibilidade em relação às opções e à história do autor “original”: não se trata de copiar ou mesmo de reescrever a obra-prima da literatura ocidental, mas de se engajar numa relação absoluta com autor e obra; em que o absoluto não corresponde a qualquer totalidade, segundo a qual ainda estaríamos no horizonte da cópia e da imitação – mas ao germe que altera a própria vida que contagia a ponto de tornar as duas indissociáveis, não iguais! Pierre Menard deseja viver ao extremo as condições que levaram Cervantes a criar Quixote para que possa, também ele, dar vida, não a um Quixote, mas ao Quixote.

Em sua busca por criar algo que já existe – o que, nesse sentido, torna sua missão impossível – o desvairado autor se torna ainda outra coisa, pois que passa a seguir os passos (e os pensamentos) do próprio Cervantes. Que Borges tenha feito da história uma ode à identidade não apaga o feito – muito pelo contrário! – de que, em seu cerne, na suposta equivalência entre os dois Quixotes, e entre Pierre Menard e Miguel de Cervantes esteja o devir, que foge – e faz fugir – tanto mais quanto mais se tenta contê-lo. A história narrada por Borges, o fictício, não o escritor, tramada para encerrar duas vidas em uma mesma épica, acaba por mostrar a relação indissociável e imanente que existe entre univocidade do ser e multiplicidade ontológica.
Esse conceito radical de tradução como afetação / contágio faz eco à definição que alguns antropólogos dão de uma simetria das relações entre coletividades distintas: trata-se de comparar, de colocar em relação, bananas e maçãs, humanos e não-humanos sim, por que não? Somos todos diferentes, uns mais outros menos, temos todos desejos e construções divergentes, às vezes mesmo incompatíveis, que se encontram na base da própria vida.

Dialogo & tradução. O que eu falo é verdade, o que você escuta é mentira. Há um lapso entre o que eu digo e o que você escuta. Falo a partir do mundo, o meu mundo, você escuta a partir de suas referências. Um processo de tradução é necessário. De diálogo entre mundos.

— xxx —

Transdução (I)

Um hospedeiro contém um vírus.

O vírus, por sua vez, carrega o material genético daqueles com quem entra em relação, ou seja, ele também é, de certa forma, um hospedeiro; enquanto tal, o hospedeiro carrega um vírus que, por sua vez, carrega o germe de outra coisa.

Ao investir contra seu alvo, o vírus se apropria [por cópia] de um trecho do código genético deste. Ele replica o código, mas apenas parcialmente e o carrega consigo em suas futuras mutações.

A partir desse momento, de todo momento da vida do vírus, ele se torna a combinação de seu próprio código genético e de outros com os quais entra em relação durante a vida.

Não apenas o vírus se torna uma combinação única de códigos genéticos, algo como uma impressão digital genética e recombinante, por mais “familiar” que seja o ambiente em que circula(m), como as relações de contágio que ele estabelece se tornam também elas singulares.

A relação estabelecida depende do contexto em que corpo infectado e vírus se encontram e sobretudo da relação de força entre as defesas do primeiro e a capacidade de contágio do segundo. O jogo agonístico entre eles nunca é o mesmo e nunca se decide antes do encontro propriamente dito, e ao corpo infectado sempre é possível resistir à infecção.

Enquanto o corpo pode ou não resistir à investida do vírus, que nunca é um, mas uma multidão, a infecção se caracteriza por uma relação de indistinção entre ambos, que passam a se relacionar numa espiral de criação e destruição, de vida e de morte.

Se o corpo se torna perigosamente infectado, isto é, se torna mais e mais como o vírus, a ponto de reproduzi-lo e de se deixar infestar pelo agente patógeno, o vírus se torna outra coisa antes de seguir (ou não) sua trajetória contagiante. De toda forma, o encontro transforma a ambos de modo marcante.

Estima-se que um corpo humano adulto e saudável contenha dez vezes mais micróbios dentro de si que células humanas, todos vivendo em perfeita desarmonia. Não fosse esta relação, simétrica e em desequilíbrio dinâmico, e não teríamos passado da “pré-história”. Da mesma maneira, estima-se que este corpo abrigue exemplares de todos os vírus com os quais entrou em contato durante a vida, constituindo um bioarquivo de dados que lhe servirá de defesa pelo resto da vida e que, em uma situação de fraqueza, pode levar a novas infecções.

No entanto, a relação entre corpo e vírus é tudo menos previsível. A doença, por exemplo, epítome do sofrimento físico e psíquico, é naturalmente compreendida como resultando de um jogo de soma zero que, quando fora de equilíbrio, coloca em risco a saúde dos corpos. Por outro lado, é possível que ela seja apenas um dentre os vários desfechos possíveis que acaba por determinar nossa própria percepção – trágica – deste encontro. E não nos referimos aqui ao fato da doença ou do adoecer, mas à necessária reorganização de sua economia em relação à saúde e à vida.

Outras modalidades de relação que não a doença apenas são vistas cada vez mais como determinantes para a existência e o modo como a vida de corpos e vírus se desenrola em paralelo, na relação.

Cientistas e biólogos avaliam que essa evolução cruzada, não linear e interespecífica, seria uma das principais responsáveis pela variação das espécies, dando um colorido todo especial ao desenvolvimento destas; num limite extremo, ela seria suficiente, se confirmada, para reescrever radicalmente “a seleção natural”, teoria hegemônica nas ciências da vida, com suas séries específicas em uma luta renhida de todos contra todos pela sobrevivência, em favor de uma recombinação global contínua, cujo desenlace não pré-existe à relação.

São a qualidade e intensidade do encontro – em outras palavras, as possibilidades de afetação mútua – que vão determinar se a partir dele se produzirá vida ou morte, e em que condições.

— xxx —

Transdução (II)

Informação é aquilo que desequilibra, aporte de energia em um sistema dinâmico. Uma ideia, uma prática, um corte. Não se trata de uma causa em sentido clássico. Ou teremos que reconhecer que existem muitas causas, que causar é um atributo de tudo o que existe e difere. Assim sendo, a individuação vem primeiro: a relação que desorganiza institui tanto sujeito, quanto objeto. Meio e população se confundem. É apenas em relação à relação que podemos agir.

De onde vem a potência que chamamos ‘nossa’? Daquilo que, vindo de fora, nos afeta? Ou da apropriação mais ou menos involuntária que dele fazemos? Algo, talvez o que haja de mais importante, se passa em outro lugar, nem fora nem dentro. O agenciamento no qual tomamos parte não se presta a coordenadas estanques. Cabe-nos ficar atentos aos sinais que nos revela nossa intuição e desenvolver uma ética da alegria baseada no prazer de fazer juntos.

O problema da democracia (o quê fazer?) aponta para a democracia como problema (como fazer?). As soluções para quaisquer eventos são muitas e díspares. E é bom que sejam assim. O desafio é construir um problema que esteja à altura daquilo que vivemos, em comum. Fica combinado assim: problemas são para ser construídos; soluções para ser avaliadas.

Temos nos ocupado do que podem as vidas – e a vida como tal. Melhor seria se nos concentrássemos em disparar acontecimentos. O encontro é o verdadeiro fato social: não uma ontogênese como produção controlada de vida, mas a própria produtividade intensiva e caótica do agenciamento.

Toda criação, toda transformação provém de uma técnica. Mesmo aquilo que é fortuito só faz sentido no contexto de uma máquina social. Experimentação não significa voluntarismo. É preciso construir dispositivos de ação política. E testá-los, e aprimorá-los, e pô-los à prova para que eles continuem funcionando.

Nada, na luta, nos pertence. Nada que nos identifique, que nos aprisione ou nos imobilize. A angústia e a solidão são irmãs da partida. E é preciso partir sempre: abandonar a zona de conforto para sair e chegar a qualquer lugar. A desindividuação, processo necessariamente social, é condição para novas individuações.

O compartilhamento é a melhor arma contra a droga da unanimidade. Vive-se algo, criam-se coisas, e isso torna os espaços ocupados, vivos. Não o contrário. É a realidade da luta – as práticas, a percepção, o cotidiano – que produz o espaço e o tempo da diferença, sem os quais não existem nem a arte nem a política.

Questionar os automatismos sempre. Das técnicas de luta, quando experimentais, devêm magia. E podem ser eficazes para produzir efeitos de mobilização e de organização, ou não. As técnicas são boas para perseguir efeitos e estes dependem mais dos agenciamentos que elas ensejam do que de indivíduos determinados ou de nossa vontade imediata.

Ação simbólica é aquela que faz pensar, obriga a pensar. Quando algo acontece que ninguém sabe como reagir, é por ali que devemos ir. Mas atenção: pensar é ação coletiva. Ninguém decide o significado de um acontecimento sozinho, por decreto. Quando parcelas da população – coletivos, conhecidos, a mídia – começam a reagir de modo sincronizado e previsível, provavelmente é hora de levantar acampamento. É hora de encontrar outros intercessores.

 

Indicações de leitura

Gilles Deleuze e Felix Guattari. Os Mil-Platôs.
Eduardo Viveiros de Castro. Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca.
Isabelle Stengers. Résister à Simondon?
Jorge Luis Borges. Pierre Menard, autor do Quixote. Ficções.
Paulo Leminski. Pré- e posfácio. Satyricon (Petrônio).

 

 

 vocabpol em 22112014 ação, entradas, escuta, fala, metodologia, transformação

Vizinhança

pequeno relato de uma experiência de vizinhança.

 

// por Enrico Rocha

O Poço da Draga existe ali, no centro de Fortaleza, pertinho da praia, há mais de 100 anos. Para a maioria da cidade, que não consegue ver suas centenas de casas por detrás de galpões vazios a espera de bons negócios, o Poço quase nem existe, nunca existiu. Para os governos, que nunca lhe concederam nem mesmo o direito de saneamento básico, mesmo localizado em área tão nobre da cidade, ele também não existe ao certo. Para mim, que escolhi como lugar de morada a sua vizinhança, o Poço é um convite, ou uma convocatória, para pensar no sentido de existência.

As pessoas que lá vivem, que são o sentido  principal do que chamamos Poço da Draga, seguem uma ocupação que se deu no momento da construção do primeiro porto de Fortaleza. A pouca profundidade do mar na costa da cidade exigia a ação de dragas para que os navios se aproximassem. Daí o nome. Lá, gente vinda do interior, quase sempre fugindo das ameaças da seca, encontrou trabalho e logo fixou residência próximo à cancela do porto. Aliás, o sobe e desce da cancela deu outro nome ao lugar, Baixa Pau, que é confundido pelo resto da cidade como sinônimo de violência.

De sua origem eu sei pelo que me contam os moradores com quem hoje convivo. O encontro com alguns deles se deu há bastante tempo, em situações que se definem por nossas afinidades eletivas. O convívio de vizinhança é recente e se intensificou quando nos sentimos igualmente ameaçados. É que o governo do estado do Ceará deu início na proximidade do Poço e de minha casa, a uma grande obra, dessas que se acompanham de muita publicidade e fantasia de desenvolvimento. Nossa reação foi enfrentar a ameaça de exclusão que seria consequência do projeto Acquário Ceará e a partir daí passamos a nos encontrar frequentemente, a nos contagiar uns dos outros, a nos comprometer com interesses comuns, a enfrentar os conflitos que se apresentam a partir de nossas diferenças, a tecer relações de confiança.

Não é a primeira vez, e desejo que não seja a última, que eu me envolvo com uma situação de conflito urbano, dessas que nos exigem um posicionamento claro. Entretanto, em meio a essa experiência com o Poço, venho assumindo com mais entusiasmo uma posição que me permite enfrentar minhas próprias condições de existência sem me deixar guiar por falsos conflitos, como opor prazer e trabalho, profissionalismo e cidadania. Ou rimar amor e dor.

O Poço da Draga se apresenta a mim como uma realidade material e concreta que não me é alheia. Levo ao Poço a mesma inquietação que mobiliza em mim um interesse pela produção de arte. É a partir da relação sensível com o mundo e da nossa capacidade de intervir sobre a sua forma, de articular seus sentidos, que me ponho no Poço e compreendo que transformar a matéria do mundo é uma necessidade urgente e cotidiana. No entanto, não há manuais práticos, projetos definidos ou qualquer outro instrumento que oriente a ação. O desafio é constituir uma relação e agir tomando-a como necessária. Um processo contínuo de experimentação e de aprendizado das limitações e potencialidades que essa relação apresenta.

Nesse processo, a transparência é uma exigência, e certo nível de opacidade uma condição que deve ser compreendida. Estou ali com todas as minhas idiossincrasias e sou convocado a responder porquê. Afirmo, então, que desobedeço a ordem imposta pelo modo como a maioria experimenta a cidade e ouso enfrentar uma fronteira com a expectativa de conquistar uma cidade que não se produz pelo medo da violência, mas a partir do desejo e dos encontros. Conviver com o Poço da Draga e me envolver em seus desafios mobiliza-me desejos,  faz-me enfrentar a produção intensiva de neuroses  e seguir acreditando que outro mundo é possível e sua construção é urgente.

“O corpo é de luta e não de perfumaria”.  Esta frase da Hilda Hilst me comoveu desde a primeira leitura. O convívio com o Poço da Draga é, portanto, um convite à luta e à invenção de um sentido para essa palavra. Não se trata de ir ao Poço motivado a promover um modo de existência que busca acomodar-se em lugares pré-definidos, como poderia ser a atuação de um artista profissional interessado em se posicionar no circuito das artes, tão ávido por colaborações; ou a atuação de um político profissional interessado em conquistar eleitores. A luta que se inventa na relação com o Poço é contra o mundo estabelecido, normatizado, incluindo o campo da arte (pretenciosamente sem normas) e o da poítica (pretenciosamente normatizador); incluindo nossas noções de sujeito e de ação. E aqui evitaria qualquer idealização dessa relação e das pessoas que moram no Poço da Draga, pois elas também são parte nesse e desse conflito, luta-se também contra suas/nossas identidades enrijecidas.

No entanto, quando a luta se realiza como tarefa cotidiana, mobilizada em rede, sem comando centralizado, sem doutrina a obedecer, um corpo perfumado é também convocado. O encontro com o Poço da Draga mantém-se fundamentalmente como experiência afetiva. Pois entendo que a disputa de sentido do mundo, de sua forma, pode também se dar em um beijo, como aquele de Adélia: “a vida é tão bonita,/ basta um beijo/ e a delicada engrenagem movimenta-se,/ uma necessidade cósmica nos protege”. Afinal, é sempre um impulso amoroso o que nos move a transformar o mundo.

#lugar

ainda que fossem dimensões separáveis da vida humana, tanto a política quanto a arte se produzem como uma disputa de sentidos para o mundo, ou melhor, como atividades de invenção do mundo. e por mundo, compreendo o lugar onde habitamos. lugar que não só nos abriga, mas que também é constituído por nossos corpos e nossas ideias. lugar onde necessariamente convivemos.

sinta seus pés no chão. olhe ao redor. o mundo está bem aí. todo lugar é matéria e expressão do mundo.

 

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#Radicais* que atravessam o texto

#vizinhança
a partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode está cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizinhança. diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. bom acreditar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. em qualquer escala.

#com-
conviver, conversar, confiar, comprometer, confabular etc. há diversas ações, fundamentais para a vida comum, que não realizamos sozinhos. as relações de vizinhança são tecidas por ações como essas. é necessário disposição e disponibilidade para conjugar ações com esse pressuposto da existência do outro.

#art-
arte: exercício experimental da liberdade. assim propôs o crítico Mário Pedrosa, em 1970, que compreendêssemos o que fazem os artistas. liberdade é também matéria da política. o mundo transforma-se em uma constante tentativa de superação da natureza em direção à cultura. também nas tentativas de superação de estados de dominação de certas culturas em relação a outras. compreendamos liberdade, então, não como a afirmação da vontade de um indivíduo, mas esse movimento coletivo do homem em busca de sua própria humanidade. e compreendamos arte como o exercício, a atividade, que experimenta e dá formas a esse movimento constituinte do mundo, que coloca o mundo em obra. dos artefatos que produzimos às articulações que promovemos, é sempre o mundo que está em obra.

#trans-
transformação: talvez essa seja a condição formal de nossa existência. uma experiência transitiva. cotidianamente agimos sobre o mundo, incluindo nosso próprio corpo, para que ele se transforme, ainda que nossa ação seja para manter o mundo aparentemente o mesmo. experimente não escovar os dentes ou não varrer a casa ou não coletar o lixo, por exemplo. e pense que outras ações podem ter consequências menos diretas, mas que também são transitivas, transformam uma situação em outra, ainda que seja para manter a aparência, a mesma forma como se dá aos sentidos, a mesma condição de partilha. daí, conclua que há também ações que transformam uma situação em outra provocando diferenças. quero crer que a arte e a política são ações transformadoras nesse sentido da produção de diferenças.

 

*Estes radicais foram escritos por Enrico Rocha. Os #radicais são uma proposta conjunta dos participantes do Vocabulário político para processos estéticos. Eles desejam criar leituras transversais às entradas. Vá para a página dos #radicais para conhecer os demais.

 vocabpol em 21112014 contexto, conversa, entradas, índice, manifestações

vocabulário cruzado

// por Kadija de Paula

vocabulário cruzado pb 2

Resposta: todas as palavras que estiverem ao alcance da sua habilidade de resposta. As palavras estão doentes e só você tem a cura, a plena habilidade de buscar o que pro-cura. Responsabilidade não é nenhuma arte obscura. Responsa é a habilidade de responder ao mundo ao seu redor de forma propositiva e não reativa. Não é uma questão de controle, senão de conduta. Responsa é a não-indiferença para com as suas ações e resultados. Não é uma questão de moral, senão de ética. Assuma, a resposta é toda sua.

 vocabpol em 20112014 atelier, contexto, conversa, diagrama, entradas, escrita, índice

Manifesto Afetivista

// por Brian Holmes

 

No século XX, a arte foi julgada de acordo com o estado existente do meio. O que importava era o tipo de ruptura que fazia, os elementos formais e inesperados que surgiam, a maneira como eram deslocadas as convenções de gênero ou da tradição. A recompensa final do processo de avaliação foi um novo sentido do que a arte podia ser, um novo campo de possibilidades para a estética. Hoje tudo isto mudou definitivamente.

O pano de fundo no qual a arte agora se apresenta é um estado particular da sociedade. O que uma instalação, uma performance, um conceito ou uma imagem mediada podem fazer é marcar uma mudança possível ou real das leis, costumes, medidas, noções de civilidade ou dispositivos técnicos e organizacionais que definem como devemos nos comportar e como podemos nos relacionar com o outro num determinado momento e lugar. O que procuramos na arte é uma maneira diferente de viver, uma oportunidade nova de coexistência.

E como acontece essa oportunidade? A expressão desata o afeto, e o afeto é o que nos move. A presença, a gestualização e a fala transformam a qualidade do contato entre as pessoas, podendo as afastar e/ou unir, e as técnicas expressivas da arte podem multiplicar essa transformações em mil possibilidades, pelos caminhos da mente e dos sentidos. Um evento artístico não necessita um julgamento objetivo. Você sabe que ele aconteceu quando graças ao eco que produz agregamos algo a mais à nossa existência. O ativismo artístico é um afetivismo, ele expande territórios. Esses territórios são ocupados pela partilha de uma dupla diferença: a divisão do eu privado, onde cada pessoa foi anteriormente colocada, e da ordem social que impõe esse tipo particular de privacidade ou privação.

Quando um território de possibilidades emerge ele muda o mapa social , como uma avalanche, uma inundação ou um vulcão fazem na natureza. A maneira mais fácil da sociedade para proteger a sua forma atual de existência é a negação simples, fingindo que a mudança nunca aconteceu: e isto realmente funciona na paisagem das mentalidades. Um território afetivo desaparece se não for elaborado, construído, modulado, diferenciado e prolongado por novas descobertas e conjunções. Não adianta defender esses territórios, e até mesmo acreditar neles é apenas um simples começo. O que eles precisam urgentemente é serem desenvolvidos, com formas, ritmos, invenções, discursos, práticas, estilos, tecnologias – em suma, com os códigos culturais. Um território emergente é apenas tão bom quanto os códigos que o sustentam.

Cada movimento social, cada mudança na geografia do coração e da revolução no equilíbrio dos sentidos precisa de sua estética, sua gramática, sua ciência e sua legalidade. O que significa que cada novo território tem necessidade de artistas, técnicos, intelectuais, universidades. Porém o problema é que os órgãos especializados existentes são fortalezas que se defendem contra outras fortalezas.

O ativismo tem de enfrentar obstáculos reais: a guerra, a pobreza, opressão racial e de classes, fascismo rasteiro, neoliberalismo venenoso . Assim sendo, o que nós enfrentamos não são apenas os soldados com armas, mas também com o capital cognitivo: a sociedade do conhecimento é uma ordem terrivelmente complexa . O mais impressionante do ponto de vista afetivo é a natureza zumbi desta sociedade, seu retorno ao piloto automático, sua governança cibernética.

Uma Sociedade neoliberal é densamente regulada , fortemente sobrecodificada. Uma vez que os sistemas de controle são feitos por disciplinas com acesso estritamente calibrado para outras disciplinas, a origem de qualquer esforço nos campos do conhecimento tem que ser extradisciplinar. Começa fora da hierarquia de disciplinas e se movimenta através dela transversalmente, ganhando estilo, conteúdo, competência e vigor discursivo ao longo do caminho. Crítica extradisciplinar é o processo pelo qual as idéias afetivamente carregadas – ou artes conceituais – se tornam essenciais para a mudança social. É de vital importância manter a ligação entre a idéia infinitamente comunicável e a performance isoladamente incorporada.

A sociedade mundial é o teatro de arte afetivista, o cenário onde ele aparece e o circuito onde se produz significado. E como podemos definir essa sociedade em termos existenciais? Em primeiro lugar, esta claro que uma sociedade globalizada já existe, com as comunicações globais, redes de transporte, sistemas de ensino aferido, tecnologias padronizadas , instalações de consumo franqueadas, finanças internacionais, direito comercial e moda midiática. Essa camada de experiência é extensa, porém fina; só pode reivindicar parte do mundo vivo(ou real) . Para se envolver com arte afetivista, para criticá-la e recria-la, temos que saber não apenas onde os novos territórios de sensibilidade emergem – em que local , em que geografia histórica – mas também em que escala. A existência na sociedade mundial é experimental, ou se torna estética, como um jogo entre escalas.

Em adição ao global, existe uma escala regional ou continental, baseada na agregação de populações em blocos econômicos. Pode se ver isso claramente na Europa, mas também na América do Sul e do Norte, no Oriente Médio e na rede do Leste Asiático.

Não nos enganemos, já existem afetos nesta escala, e movimentos sociais e novas formas de usar o gesto e a linguagem, e muito mais que por vir no futuro. Depois, há a escala nacional, aparentemente familiar, a escala com os conjuntos mais ricos de instituições e os mais profundos legados históricos, onde os teatros da representação em massa são esmagadoramente estabelecidos e afundados em uma fantasmagórica inércia . Mas a escala nacional no século XXI também está em um estado febril de alerta vermelho contínuo, hotwired em excesso e por vezes até mesmo capaz de ressonância com o radicalmente novo. Depois vem a escala territorial, considerada por muito tempo a mais humana: a escala de mobilidades diárias, a cidade, a paisagem rural, onde estão as dimensões arquetípicas da sensibilidade. Esta é a morada de expressão popular, das artes plásticas tradicionais, do espaço público e da natureza tendo uma igual presença com a humanidade: a escala onde a subjetividade primeiro se expande para encontrar o desconhecido.

E assim, finalmente atingimos a escala da intimidade, da pele , dos batimentos cardíacos e sentimentos compartilhados, a escala que vai de famílias e amantes a pessoas juntas em um canto da rua, em uma sauna, uma sala de estar ou um café. Parece que a intimidade é irremediavelmente sobrecarregada em nosso tempo, sobrecarregada com dados e vigilância e sedução, esmagada com a influência determinante de todas as outras escalas. Porém a intimidade ainda é uma força imprevisível, um espaço de gestação, e portanto, uma fonte de gesto, a mola biológica onde os afetos se nutrem. Só nós podemos atravessar todas as escalas, tornando nos “outro” ao longo do caminho. Da cama dos amantes para o abraço selvagem da multidão ao toque alienígena de redes, pode ser que a intimidade e suas expressões artísticas serão o que surpreenderá o século XXI.

 

 

Este texto foi originalmente traduzido por Luciane Briotto para o site/projeto http://www.cpp.panoramafestival.com/

 

 

 vocabpol em 09102014 cartografia, conversa, encontro, entradas, índice

#radicais livres

aprendizagem // art // art- // alter // auto // como // com- // con // contra // de // para // desarquivo // para // trans // trans // trans- // vizinhança

#radicais
def. 1. #Radicais livres como chaves/sequências de leitura possíveis do conjunto de vocábulos ou seleção direcionada de parte deles. Uma série de páginas no livro (no início ou no final) que traz em lista e/ou diagramas propostas de recortes do conjunto principal. Abaixo algumas sugestões de grupos possíveis (que podem vir a ser outros, é claro):

def.2. Os #radicais são uma proposta conjunta dos participantes do Vocabulário político para processos estéticos. Eles desejam criar leituras transversais às entradas.

 

#aprendizagem
Cristina Ribas e A Arquivista

Processos de aprendizagem permeiam as práticas artísticas. Interessa ao Desarquivo.org sinalizar agenciamentos nos quais atores (agentes) estão envolvidos em processos de aprendizagem tanto nas relações que fomentam entre si (atores de processos cooperativos, como no caso das estratégias) assim como nas relações comunitárias que criam (através dos diversos eventos).

Toma-se a aprendizagem como movimentos que surgem a partir de si, e para si, ou um saber de si coextensivo a um saber do mundo. (Complexidade) A aprendizagem atua sobre os processos de subjetivação, atua nos processos constitutivos e, portanto, atua sobre uma formação individual em relação direta com formações coletivas.  (Escuta, transdução)

Pensar a partir da aprendizagem não significa demarcar um método preciso (um como fazer), mas implica o exercício de uma ferramenta relacional, contingente e constitutiva, que opera a quebra de hierarquias e processos verticalizados (trans), promovendo o encontro de agentes em um estado dialógico e cooperativo.

No Desarquivo.org não se pensa a aprendizagem em modos instrumentalizadores (não é um saber sobre a arte, por exemplo), contudo um saber que produz modos possíveis, modos de subjetivação produtivos criando novas ações, novos rompimentos nas práticas artísticas (eventos  e estratégias). #processosestéticos

 

#art
Lucas Sargentelli

vocábulos que criam atritos com o conceito de arte – propostas que flertam com a possibilidade de uma cura operacional da ideia de arte – propostas que rejeitam o rótulo de arte em suas práticas

 

#art-


Enrico Rocha

arte: exercício experimental da liberdade. assim propôs o crítico Mário Pedrosa, em 1970, que compreendêssemos o que fazem os artistas. liberdade é também matéria da política. o mundo transforma-se em uma constante tentativa de superação da natureza em direção à cultura. também nas tentativas de superação de estados de dominação de certas culturas em relação a outras. compreendamos liberdade, então, não como a afirmação da vontade de um indivíduo, mas esse movimento coletivo do homem em busca de sua própria humanidade. e compreendamos arte como o exercício, a atividade, que experimenta e dá formas a esse movimento constituinte do mundo, que coloca o mundo em obra. dos artefatos que produzimos às articulações que promovemos, é sempre o mundo que está em obra.

 

#alter
Lucas Sargentelli

alternativas ecológicas a problemas estruturais – como atuar em escala global, macro? –

 

#auto #como
Lucas Sargentelli

práticas cotidianas individuais ou coletivas / modos de uso

 

#com-

Enrico Rocha

conviver, conversar, confiar, comprometer, confabular etc. há diversas ações, fundamentais para a vida comum, que não realizamos sozinhos. as relações de vizinhança são tecidas por ações como essas. é necessário disposição e disponibilidade para conjugar ações com esse pressuposto da existência do outro.

 

#con
Lucas Sargentelli

vocábulos de conversa fiada – vocábulos-antivocábulos –

#contra
Lucas Sargentelli

pares ou grupos de relação por oposição e/ou divergência

 

#de #para
Lucas Sargentelli

vocábulos que lidam com a questão do endereçamento – de onde parte e para onde vai – De que lugar você fala? Para quem você diz? – pesquisa do lugar de onde é possível expressar alguma posição

 

#desarquivo
Cristina Ribas e A Arquivista

O >>>desarquivo é a incitação de tirar algo do lugar de maneira a mobilizar e colocar em relação. Portanto no >>>desarquivo itens e materiais não tem lugares fixos / >>>mobilidade / mas são antes dados a operações e coreografias de relação e aproximação aos demais.
Desta maneira os materiais não guardam relações de propriedade aos >EVENTOS e >ESTRATÉGIAS aos quais se referem, recuperando algo que fica à espera… O >desarquivo é antes essa ação de endereçamento e relação, de incitação de algo sempre contingente e parcial, passível de participação em outras reativações e contaminado do momento em que a operação de desarquivamento ocorre.
O >desarquivo é sempre diferencial: ou seja, cada operação de desarquivamento torna-se um novo agenciamento. Sua imagem é antes a de uma monotipia do que a de um negativo. Há uma transmissividade possível naquele >DOCUMENTO >TEXTO >IMAGEM acessado, que se faz gravação sempre nova e desmedida. O arquivo prescinde de um gesto que se desfaz no >desarquivo.

 

#para
Cristina Ribas

Coisa que é feita para outra coisa. Processo transicional. Incitativo. Aquele trabalho como se disse: na economia do desejo. Pensamos o Vocabulário para, eu pensei, para algo que venha a seguir, em seguida, que surja. Para existe antes como projeto, como protótipo de algo real. Falar do para é não falar de razões estabelecidas a priori, mas falar que, a partir dos modos como se faz, pode-se fazer algo acontecer.

Onde. Para é coisa provocadora de afeto. Se quisermos (é necessário) localizar onde. Mas esse onde é processo, é coisa encontro, entre duas coisas ou mais. É composição.

Risco do Vocabulário. O para é seu risco. Tanto de parar, como sugere se fosse verbo, estagnando como algo que significa (arte) e não funciona, não utilitariza, não funcionaliza. Para, funcionando, coisa importante dos processos políticos, para os processos estéticos. Coisa estado que se coloca entre um processo e outro.

 

#trans
Lucas Sargentelli

propostas infraestruturais para o conjunto de relações entre os demais vocábulos

 

#trans
Inês Nin

conceber um SAIR do LUGAR implica sob certo sentido em uma superação. como ir além da experiência anterior; um ponto que impulsionado por MOVIMENTO gera uma outra situação.

transcender um momento disforme, pouco funcional, mambembe. desfazer uma certa dormência, reentender todos os processos. misturar a disposição dos intelectos.

uma bússola revirada, e revigorada.

em viagens recentes fiz questão de carregar uma bússola, companheira tão amiga quanto a lanterna e uma mochila gordinha, um pouco alta. apetrechos úteis, talvez neste caso ainda mais úteis enquanto ideias de viagem, desejos de nomadismo. vontades de incorporar um personagem explorador: expedito azuis, aquele que age, despachado viajante. procura caronas, aprende a voar. povoa de cores e florestas uma paisagem, ela mesma enquanto imagem de sossego e desafios, abrigo, localizada mais DENTRO do que FORA, para falar de coordenadas. desejos, como as praças e os lugares, se confundem. nada é só um mesmo, coisa afável e distinguível das demais.

ir além implica em transitar. na contramão dos engarrafamentos*, caminho sem pressa, atravesso pontes e escalo prédios. se trata de superar expectativas, por adquirir rumos truncados, incertos demais para especular. nada mais que um treino, até que saiba não existir em espera nem planejamentos complexos, mas sim em processo, corrente, que flui e escorre das calçadas, só anda a pé.

de uma precisão de rejuntes: extrair a simplicidade das coisas. descomplexificar, como um processo químico. para tal, é necessário desprogramar, repensar todos os sistemas e métodos vigentes. desordenar. haverá necessidades de; e se fizer de outro modo; se é verdade que preciso tanto; o solo mesmo não se refaz? composição. assimilar as cores do local, a partir dele construir e só. em volta, são tantas as coisas que estimulam a perda sem rumo, o caminho mesmo do cristal, do arranha-céu com tv de plasma e correrias.

transição. transitivo transitar dos entes mistérios, minérios, ritmos próprios constituintes da tábula rasa da monotonia. monotipia, rumos em vão: tantas técnicas e só vejo uma cor. ruído de voltagens, confunde nossos cérebros.

x

trans é um radical queer. que se situa para além dos sistemas, da compreensão costumeira dos entrecoisas. costura bordados e ri do próprio desatino, desconversa, nunca se saberá ao certo onde vai. pode assumir caracteres absurdos, atravessar a amazônia, se transformar.

transtornos são possíveis, aspectos sinceros que vêm à flor da pele, se perdem. água e animais, super gêmeos ativar, sempre outra coisa que não a esperada. x, que não tem gênero nem classe, assume formas variadas de acordo com a situação. estratégia faz parte de sua estrutura desestruturante – preparada para transcender as maiores crises, entrar em transe, alucinar.

*processos lúdicos que implicam em engarrafar carros e pessoas, como consequência de um equívoco histórico. são intensos, memoráveis e até mesmo hilariantes, tão presentes no cotidiano de cidades populosas. paradoxalmente, quando se procura saber a respeito do estado dos engarrafamentos locais, fala-se em informações sobre o TRÂNSITO.

 

#trans-

Enrico Rocha

transformação: talvez essa seja a condição formal de nossa existência. uma experiência transitiva. cotidianamente agimos sobre o mundo, incluindo nosso próprio corpo, para que ele se transforme, ainda que nossa ação seja para manter o mundo aparentemente o mesmo. experimente não escovar os dentes ou não varrer a casa ou não coletar o lixo, por exemplo. e pense que outras ações podem ter consequências menos diretas, mas que também são transitivas, transformam uma situação em outra, ainda que seja para manter a aparência, a mesma forma como se dá aos sentidos, a mesma condição de partilha. daí, conclua que há também ações que transformam uma situação em outra provocando diferenças. quero crer que a arte e a política são ações transformadoras nesse sentido da produção de diferenças.

 

#vizinhança
Enrico Rocha

a partir do seu lugar, possivelmente, você perceberá o lugar do outro. sua reação pode ser de quem reconhece uma ameaça, o mundo pode está cheio delas; ou um vizinho, o mundo pode ser uma imensa vizinhança. diante de uma ameaça, não há muito o que fazer, ou você foge dela ou você a enfrenta, geralmente com violência. em uma relação de vizinhança, você negocia o que é comum, as aproximações e também as distâncias necessárias. aqui, a vizinhança poder ser considerada o lugar que você mora, a cadeira do ônibus que você compartilha, a rua que você ocupa em dias de manifestação etc. bom pensar que uma boa política de vizinhança deve partir de relações recíprocas. bom acreditar que entre a guerra e a diplomacia colonizadora há outras relações de vizinhança possíveis. em qualquer escala.

 

 vocabpol em 02102014 índice, radicais