Complexidade
// Cristina Ribas
Parêntesis de Anamalia Ribas
“Quem diz a verdade? Esta não é mais a questão, mas sim a de saber como e em que condições pode melhor aflorar a pragmática dos acontecimentos incorporais que recomporão o mundo, reinstaurarão uma complexidade processual.” Félix Guattari, Caosmose: um novo paradigma estético, 1992
“Todos aqui devem ter tido a experiência – eu, pelo menos, a tenho frequentemente – do contraste entre a descoberta da complexidade, da riqueza, da diferenciação que se pode ter entre numa experiência onírica e a pobreza de meios que se tem ao despertar, quando se tenta expressar essa produção onírica pela rememoração, pela escrita ou pelo desenho. Aqui, eu me permitiria questionar toda referência à indiferenciação, toda referência às mitologias espontaneístas: toda vez que conseguimos agenciar dispositivos de expressão que escapam ao despotismo do sistema das significações dominantes, que escapam à articulação de todas as sintaxizações dominantes, estamos justamente lidando com maquinismos altamente elaborados.” Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolíticas: cartografias do desejo, 1986
Complexidade. (…) 3 Psicol Experiência em que se encontrem unidos elementos de espécies diversas. 4 Em psicanálise, grupo de ideias impregnadas de força emotiva, as quais produzem atividades inconscientes. Dicionário Michaelis
“Apenas a intersecção do finito e do infinito, no ponto de negociação entre complexidade e caos, será possível desenroscar graus de complexide mais altos dos que o capitalismo financeiro é capaz de gerenciar e elaborar.” Franco Bifo Berardi, The Uprising: on poetry and finance, 2012
Por onde entrar? Num vocabulário de vozes, numa produção de sentidos, num rizoma de textos? Pode ser que nem percebamos uma transição, e de repente já estamos dentro. A coisa é perceber que vamos entrando – que já somos – parte de um bom pedaço dessas vozes. A coisa é perceber como é que vamos entrando – como é que já somos – um bom pedaço dessas vozes. Folheamos procurando um pouco de identificação, mas também um pouco de acaso ou de enfrentamento a uma coisa que dominamos, um conceito que nos toca, uma prática que apelidamos. Por vezes percebemos um contraste, visto que as vozes falam de um jeito que não concordamos, não daquela maneira, então nos despojamos daquilo. Identificamos um regime de falas que não nos interessa. Nesses casos a porta de saída é mais fácil do que a expectativa da entrada.
Talvez nem no primeiro modelo da adesão completa, nem no segundo da separação por regimes, os vocabulinários não tenham limites precisos, e trabalhem abrindo zonas, expondo zonas de contaminação e criando intervenções nos nossos vocabulários. Os vocabulários partilham de um espaço pleno de complexidade. Esta é, então, uma maneira de pensar a complexidade.
Complexo do Self
Olha isso. Eu digo. Olha esse “Complexo do Self”. Bureau D’Études(*) é uma dupla de artistas-cartógrafos-diagramadores. No diagrama do Complexo do Self vemos vários duplos nominados ao lado da representação de cabeças-tronco gordinhas, tipo João-bobo (vou chamá-los de João-bobo). O duplo Admistrativo, o duplo Econômico, o duplo Eletromagnético, o duplo Biológico, o duplo Psicológico, o duplo Semiótico, o duplo Metafísico. Duas alteridades são sinalizadas em Joãos-bobo em branco: alteridade Metafísica e alteridade Biológica. Nas pontas de cada percurso que parte das cabeças-tronco estão formas exagonais que expõe os diversos números que serializam as pessoas no mundo contemporâneo e, portanto, nos identificam. Número de identidade social, número do carro, número do sistema de saúde, número do telefone, número do consumidor (o cartão do banco), número do cartão de compras do supermercado, entre outros. Tarjas pretas indicam os complexos aos quais aqueles processos pertencem: complexo industrial da mídia, complexo industrial da produção de comida, complexo industrial da justiça, complexo industrial das roupas, entre outros. De que se trata? De um diagrama de um sujeito abstrato (( Aqui não está claro para mim o uso do abstrato ??? Porque abstrato, visto que ele é tão multifacetado, ele é tão multi que ao mesmo tempo não é. Pois não é em si. Ele só é na relação, com os fluxos, com o outro, com o duplo. Abstrato no sentido de que algo que não se identifica??? )) , dos fluxos materiais e virtuais que atravessam sua existência, desde um “eu aceito viver com roupas”, “eu uso alguma planta nuclear para produzir energia” a “eu produzo uma criança”. O “Eu” expressa as muitas vozes num sujeito hipotético que assume diversos estados e verdades (( Não caberia colocar aqui também: assume papéis e valores? )). É quase como se não houvesse um sujeito, visto que não está congelado (( É um sujeito multifacetado, não é sujeito em/de si, ele é assujeitado…)) . Ele está sempre relacionado aos seus diversos duplos. A cartografia explicita que esse “Eu” perpassa diversas definições ou realizações de si. Abaixo do hexágono do duplo Semiótico, por exemplo, se lê “ ‘Eu’ é uma ficção linguística”, e ao lado do duplo Administrativo se lê “ ‘Eu’ é uma produção social”.
Se é possível que nos reconheçamos eventualmente numa dessas posições (por transdução), é possível que criemos também outras linhas e outros processos de subjetivação que multiplicam essa cartografia de um “eu” (excesso). Às vezes podemos perceber que estamos “entre” funções, visto que somos agenciados por dois (ou mesmo mais) movimentos. Esta coisa que acontece entre, que podemos chamar de agenciamento, tanto pode nos colocar em uma situação de imobilidade ou de impasse, ou pode nos fazer ativos. A partir da percepção de fluxos e de agencimentos, sejam eles mais ou menos autoproduzidos, se produzem “eus-transicionais.” A cartografia Complexo do self coloca em evidência o não isolamento de um indivíduo. Coloca em evidência as significações e as codificações que se imprimem a partir de sua existência e que se projetam em sua identidade-corpo. Ficamos atentos aos processos sociais, instituicionais, econômicos que se produzem a partir de sua vida. Ficamos atentos para o aparato que se constrói ao redor do sujeito (assujeitado). Mas também pode ser que olhamos para essa superfície complexa buscando os espaços e as trajetórias de improvisação e singularidade, ou, em como cada um faz uma vida para si, à sua maneira.
Descrevo extensivamente essa cartografia como maneira de ler coletivamente, de ler para meus olhos e para os seus. A cartografia ativa os pontos por onde passa. Descrevo num ímpeto de desarquivo (RAD). Faço isso porque, em primeiro lugar, me interessam muito essas imagens de complexidade, pela maneira como mostram ou revelam relações invisíveis (porém ativas) em vários processos materiais e ou subjetivos (( Estas relações/tensões invisíveis são como campos de subjetivação, campos do possível )). Em segundo, ao mesmo tempo que permitem uma leitura que me anima, me sinto no intento de me aproximar delas, visto que “lê-las” se torna tarefa de esforço: meus olhos astigmáticos e minha dislexia migram rapidamente milímetro a milímetro para a informação seguinte, perseguindo as linhas e refazendo a complexa conjunção de nomes, conceitos, símbolos, sentidos, funções. Desejo ler a complexidade na sua totalidade. Ler sem os antolhos de que falou Félix Guattari – Cavalo.
O tipo de flickering (vibração) que a cartografia de complexidade quer provocar é o exercício do olhar de não olhar só para uma coisa, mas ao olhar para essa coisa saber que ela é parte de uma multiplicidade de coisas. Como se fosse embaralhar esse próprio texto e rediagramá-lo a partir dos conceitos que ele mobiliza, para assim expor os campos em cruzamento nessas ideias sobre complexidade.”
Símbolos catastróficos do desenvolvimento / formas de resistência nativas
Copiei essa frase do mapa feito pelo projeto Cartografia Crítica da Amazônia. (2)
A prática do mapeamento ou da cartografia (o fazer dos mapas de complexidade) tem se difundido como estratégia, proporcionando ao trabalho coletivo o desenvolvimento de formas de expressão que operam intervenções. Diversos movimentos auto-organizados da sociedade têm feito uso da cartografia para apresentar tanto a complexidade das relações que envolvem suas lutas como para mapear as forças em ação contra as quais resistem. Pela afirmação de que a cartografia não é representação encontramos uma provocação: a cartografia procura produzir efeitos no momento mesmo em que é feita, por isso ela tem o desafio de ser cartografia de intervenção. Ou seja, não representar não é um ato enunciativo, é um princípio da estratégia dessa prática, é colocar a cartografia ela mesma em estado de experimentação junto com as lutas, fazendo uma crítica às representações das lutas sociais e abrindo um espaço de composição. A pesquisa acadêmica não crítica, como exemplo, pode ficar no nível de uma representação e ativar poucas intervenções, a prática de um artista também. Como ativar, então, a representação, transformando-a em apresentação ou em produção?
Considerando que comecei esse texto falando de um ‘complexo do self’, uma pergunta que podemos fazer à cartografia como ferramenta é: de que maneira a cartografia é provocadora de processos de singularização ao mesmo tempo em que provoca uma análise crítica de um sistema econômico e político que é necessário enfrentar?
A prática da cartografia como construção da complexidade é, sem dúvida, também uma intervenção na forma de acessar e produzir conhecimento, o que pode nos levar a inflexionar a expressão “produção do conhecimento” para uma “prática do conhecimento”, como versão mais radical, mais autonomizante daquela primeira. Assim, faz parte da construção de uma cartografia estabelecer seu objetivo (ou sua função), trabalhar o levantamento dos dados que constitui o conteúdo propriamente dito do mapa a ser criado, e conceber a forma que a cartografia vai tomar. Faz parte da cartografia, portanto, incorporar a investigação ela mesma, visto que ao invés de trabalhar apenas com dados já coletados em pesquisas institucionais ou disponíveis na mídia, a investigação pode ser feita pelos próprios participantes. A cartografia pode então envolver as próprias pessoas a partir das quais a cartografia acontece e pode ser realizada com informações de ordem mais subjetiva, sendo os dados que a compõe coletados entre aqueles que a realizam, a partir de suas experiências de vida, de seus vocabulários, de suas lutas. Nesse sentido a cartografia procura ser constitutiva do próprio cartógrafo-pesquisador, visto que a cartografia induz uma quebra na dicotomia pesquisador-pesquisado. Podemos centrar aqui, nesse lugar corpo-do-pesquisador(a) a mudança de paradigma que a cartografia vem provocar. (1)
Ao aportar a composição do mundo como complexa, ao assumir a capacidade do desenho das forças de ação, o ‘investigar’ e ‘fazer o mundo’ se colocam então como operações que acontecem juntas. Ou seja, o conhecer e reivindicar do mundo que não passa apenas pela representação dele, mas pela criação dele. O trabalho da complexidade vai contra uma certa preguiça ou certo poder da ciência moderna, que procurava simplificar os processos em sistemas, em modelos (( Eu diria até: modelo que funciona no “colocar à prova”, refazer o que o anterior teria feito, e assim ver se dali algo mais de decifrava… Processo que só fomenta o funcionamento do capital competitivo, comparativo, segregador, produtor de certo/errado, bom/ruim, adequado/inadequado. É um modelo de processo ensino-aprendizado que faliu, não mais se sustenta )) . Ao aportar a noção de complexidade abrimos caminho para pensar também a singularidade, desde a individualidade à coletividade. O processo de singuralização pode competir ao cartógrafo ele mesmo, assim como àqueles que participam da cartografia, identificados ou não com um processo de grupo.
(( Processo de ensino-aprendizado desejante de maior horizontalidade nas relações, estabelece novas formas de relações de poder, visto que procura uma radicalização das redes, é mais democrático, é um processo que abre para outro ou para outros processos. ))
Diversas complexidades têm sido cartografadas e diagramadas na atualidade por pesquisadores, nômades, ativistas, artistas, coletivos, agrupamentos efêmeros, entre outros, como maneira de lidar com essa trama/problema. Hoje em dia mapas, cartografias e diagramas, desenhos, planos táticos, se confundem e contaminam-se uns aos outros nos seus modos expressivos e nos seus modos de fazer. No vocabulário das práticas políticas e estéticas há uma pedagogia crítica que é inerente à construção dos mapas táticos, que é o f a z e r dos mapas ele mesmo. Dessa maneira trabalham por exemplo o coletivo-dupla Iconoclasistas (Argentina) (3), os projetos mobilizados por Pablo de Soto, Mapping the commons (4), a rede LabsurLab na América Latina (5), Antena Mutante (Colômbia) (6) a própria dupla já citada Bureau D’Études (França), e muitos mais. Pelo trabalho desses grupos vemos como os agenciamentos do capital se expressam na perda dos direitos civis básicos, por exemplo, como no caso das remoções de moradia no Rio de Janeiro, ou por outro lado pela inventividade e pela ressignificação de espaços comuns como no projeto Mapping the Commons, de maneira a fortalecer processos de resistência nos direitos de uso à cidade, resistinto aos processos de revitalização e transformação das cidades em cidades-mercadoria.
Capitalismo cognitivo
Não sei se a complexidade se opõe à ideia de simplicidade. São regimes diferentes, pode-se dizer. Um nem antecipa o outro. Nem pressupõe. Se temos uma ou mais linhas traçadas em um papel e uma quantidade x de informações conectadas por essas linhas diagramadas, temos uma cartografia que apesar de parecer simples, pode ser de razão complexa. Parece então que uma cartografia ou um diagrama podem ser simples mas tratarem de uma complexidade tal que possamos ir lendo nela níveis de imbricação de relações e fluxos, materiais e imateriais, visíveis e invisíveis, conhecidos e desconhecidos (( São como vias de mão dupla, vias de ida e vinda, relação de fluxos que não tem direção exata, relação correta, são pragmáticas, elas se cruzam em uma esfera tridimensional, em 3D, provocando que o sujeito se implique de tal forma ao desassossego, ao não dito, não compreendido, não nomeado, e assim procure reinventar conceitos, nomes, para aquilo que surge )) . Há nessa coisa, seja ela simples ou confusa, uma função de complexidade, uma função complexa. Assim é que o dia a dia de nossas vidas é tomado por uma série de ações simples, mas que escondem uma trama deveras complexa… (conecta com escrever) Olho o boleto impresso termicamente que seguro em minhas mãos ao retirar o extrato do banco, olho o recorte da embalagem do sanduíche que eu comprei, olho para meus sapatos que acredito serem meus, olho o sensor de presença que acende a luz na calçada de noite.
A complexidade pode ser um aparato conceitual para definir o modo de operar da economia na era mais avançada do capitalismo contemporâneo, que se cola aos fluxos vitais, aliando-se à própria produção do desejo. Não por acaso, o trabalho da construção da complexidade surge no momento em que são provocados muitos cruzamentos entre disciplinas, entre campos do saber e, em que o estruturalismo como forma de constituição do mundo precisa ser decomposto, e outras formas mais rizomáticas precisam assumir seu espaço. Assim é proposto, por exemplo, que os micro agenciamentos sejam intervenções, ou atravessamentos, nos macro agenciamentos. Que a molecuralidade seja uma força que opera de outra maneira, diferente da majoritária molaridade. A partir de conceitos como esses se deseja re//dimensionar os fluxos vitais, a partir dos agenciamentos maquínicos, libertando-se das formas micro fascistóides, patriarcais, moralizantes, tecnicistas…
Uma das tarefas da cartografia de complexidade na atualidade é ser uma ferramenta que trabalha na decodificação dos fluxos invisíveis do capital, de modo a entender o que é que caracteriza o capital hoje, diferente de antes – antes do trabalho como imaterial, antes do capital como financeiro. Sua relação com o estado, com o poder representativo, e a forma como isso imprime modos de vida, direitos, exclusões, obrigações, privilégios, etc.
Segundo Franco Bifo Berardi, em The Uprising (O Levante), o que muda a partir do final da década de 70 na economia é a relação entre tempo e valor. Ou seja, há uma perda de relação direta, ou material, entre tempo de trabalho e valoração, significando uma mudança na forma de agregar valor ao que é produzido, e da mesma forma ao lucro sobre a produção. A des-relação direta entre tempo de produção e produto (o que não significa o desaparecimento do trabalho por hora!), em que o trabalho já não é físico, muscular ou industrial, aumenta o contraste entre coisas materiais e signo, sendo o signo aquilo que mais se produz na atualidade. O signo adquire mais valor do que a matéria ela mesma. Essa produção Bifo chama de uma produção essencialmente semiótica. Ele pede que pensemos quanto tempo é necessário para produzir uma ideia, um produto, uma inovação. Bifo diz também que o capitalista não se preocupa se está produzindo frangos, livros ou carros. O que é importante para o capitalista é produzir lucro!
Se uma primeira fase do capitalismo seria essa da desracionalização entre a medida e a valoração, a segunda fase, ou uma fase moderna tardia, para Bifo é uma em que a informação entra com tudo, o que ele chama de “abstração digital”. Nessa fase, há um aumento significativo do intercâmbio produtivo entre “máquinas informacionais” em lugar do e um campo dos corpos, de corpos ou vidas produtivos. Nessa fase tardia ele diz que os corpos estão “cancelados” do campo da comunicação (direta, conjuntiva) e estão separados, ou “conectados” por informação. Nesse ponto ele vê uma reversão maior, ou uma perversão, eu diria.
“No sistema industrial anterior descrito por Marx, a finalidade da produção já era a valorização do capital, através da extração de lucro a partir do trabalho. Mas, de maneira a produzir valor, o capitalista ainda era obrigado a trocar coisas ‘úteis’ , ele era ainda obrigado a produzir carros, e livros e pão.
Quando o referente é cancelado, quando o lucro é feito possível pela mera circulação de dinheiro, a produção de carros, livros e pão se torna supérflua. A acumulação de valor abstrato é feita possível pela sujeição de seres humanos ao débito, e através da depredação de recursos existentes. A destruição do mundo real começa com a emancipação da valorização da produção de coisas úteis, e da auto-replicação de valores no campo financeiro. A emancipação do valor do referente leva à destruição do mundo existente. Isso é o que acontece atualmente sob o que se chama de ‘crise financeira’, que não é de maneira alguma uma crise.”
Bifo fala de uma destruição do mundo também no sentido das relações sociais existentes. Ele ressalta que no capitalismo financeiro a violência se torna uma forma de controle. E a violência predatória é então uma que se coloca diretamente no corpo dos trabalhadores e trabalhadoras, não só como reflexo do recrudescimento da democracia – na redução do direito à manifestação por exemplo – , mas também na violência sobre os processos vitais, na segmentarização da vida em detrimento do trabalho, e na perda de relações afetivas comunitárias e na impossibilidade da constituição redes de solidarização.
Então, no caminho do aumento da abstração, da abstração e do endividamento tomando conta dos processos vitais, ele identifica um aumento da informação que leva à produção de menos significado. Ou seja, há uma maior quantidade de signos circulando, mas eles têm menos referentes reais do que nunca. O aumento da circulação e o modo da circulação provocam a eliminação do significado e do sentido, que nos trazem a dúvida recorrente que pode tomar alguns de nós, ao tentarmos deter em nossas mãos o sentido da produtividade do que fazemos, seja na arte ou seja na política, de afinal, o que é que estamos fazendo ao produzir, ao trabalhar?
Assim a cartografia de complexidade pode servir para reverter o trabalho dos signos. Nesse sentido a cartografia pode trabalhar a singularização e a politização dos signos, de maneira a fazer entender o que é que nos toma hoje, em que atmosfera/s vivemos nossos próprios fluxos produtivos, e de que espaços e modos de significação podemos estar querendo escapar, de maneira a apresentá-los, visualizá-los, relacioná-los. Os fluxos invisíveis do capital se colocam presentes em nossas vidas sem se descolar de cada uma de nossas operações cotidianas, ou dos nossos fluxos de desejo. Tomando a complexidade como ferramenta de estudo do capitalismo contemporâneo e ao mesmo tempo de resistência podemos perceber, então, que se o capitalismo avançou e complexificou as linhas, migrações, passagens, sobrecodificando e co-produzindo a vida, é inerente à própria vida uma tal rizomática que é, por sua vez, perseguida e significada pelo capitalismo.
É algo que nos coloca de volta na cartografia Complexo do Self, da dupla Bureau D’Études, por exemplo – que já realizou inúmeras outras cartografias dos fluxos econômicos e de significação correntes no capitalismo contemporâneo. No Brasil o projeto Proprietários do Brasil (8) tem uma empreitada semelhante, abrindo as contas de grandes empresas brasileiras e de seus fluxos econômicos.
Há algo presente desses fluxos na pasta de dentes que eu uso pela manhã, no café que eu tomo para trabalhar, no emprego que eu não tenho, no transporte que eu uso, na reunião que eu fiz enquanto almoçava, no valor que cobro pelo meu trabalho, no cinema que eu não vou (porque não tenho tempo, ou porque não tenho dinheiro), no livro que eu compro, nos livros editados por amigos em uma pequena editora, na distribuidora de livros que entrega meu livro em casa, no candidato no qual eu voto, na empresa que o financiou, na água engarrafada que eu tomo, na água que falta na torneira, no travesseiro hipoalergênico sobre o qual descanso minha cabeça à noite…
Parece que hoje se torna difícil colocar em diagramas separados por um lado como são, como se expressam os fluxos vitais, e por outro como são, como se expressam os fluxos do capital e do estado. O estado se torna o instrumento regulador de uma “aplicação” contratuada com o sistema produtivo – a aplicação de um sistema de produção em nossas vidas, não da democracia, mas de instrumentos de controle. Essa confusão/questão pode ser exemplificada em como o agenciamento do desejo nos processos criativos na atualidade é re-significado pela forma de valoração da economia criativa, como novo agenciamento social produtivo da criação. O que diferencia a economia criativa da criação ela mesma???
Representação, apresentação e criação de mundo
Uma das principais posições que a cartografia pretende discutir é quem e como detém ferramentas de representação do mundo, pensando que é a vida que segue à frente, e as forças e os fluxos do capital que vem perseguindo a primeira. É importante ressaltar que quando dizemos representação estamos já em um regime específico. Será esse um regime que se alavanca na manutenção do poder? Podemos pensar naquele mapa do mundo clássico dos tempos da escola, e depois naquele outro, distorcido, que procura a representação “real” do território. Para a cartografia crítica não há neutralidade, e portanto representar ou apresentar um território dependem de uma certa ética da apresentação como criação de mundo, como operação cognitiva.
Qualquer mapa não é subjugação, contudo, ao mundo da representação. A representação ela mesma como ferramenta de produção de verdade torna-se a p r e s e n t a ç ã o na busca de representações do território-mundo que insurgem das lutas urbanas, das lutas rurais dos movimentos campesinos e das lutas dos territórios indígenas. A defesa da terra, expressa na representação/apresentação do território torna-se uma questão crucial na atualidade, visto que a r e m a r c a ç ã o de terra no caso indígena é a garantia da manutenção do direito de permanência na sua própria terra, lugar que conhecem com seus corpos e seus rituais, e que lhes é deveras constitutivo.
Clínica e trandisciplinaridade
Num dos caminhos para pensar a complexidade Eduardo Passos (9) aborda a relação entre complexidade, a transdisciplinariedade e a produção de subjtividade. A produção de subjetividade é toda uma trama de conceitos proposta a partir de diversos campos do saber e também a partir do que se conhece por filosofia da diferença, tendo surgido da mistura entre formas de pensar que extravasam os estudos da psiquiatria e da psicologia, e que se contaminam de biologismos e de formas de afetar moleculares. Como conceito, pensa o sujeito como construção constante (não cumulativa), não rígida, mas como corpo-no-mundo. Como uma complexa rede constitutiva que sempre ultrapassa sua unidade individual. Por isso pensada a partir da noção de processo, porque forjado e ativo no arranjo de forças ((E de encontros e desencontros)) . A complexidade da qual fala Passos é um aporte contemporâneo da ciência que é diferente da redutibilidade da ciência moderna, e portanto da compreensão mesma de sujeito. “A história natural da natureza desenha complexidades”, ele escreve. A transdisciplinaridade é, por sua vez, a proposta de pensar a ação de saberes variados, que nos força a atravessar planos desconhecidos.
Para abordar a complexidade Passos estabelece um pensamento que se produz no atravessamento de disciplinas e não no interior delas. Trabalhando a partir do campo da psicologia social, Passos propõe uma ‘clínica transdisciplinar’, que propõe discutir contra a noção de problema que sugere à busca de soluções, tomando a criação de problemas como um método da clínica. Associando duas modalidades cognitivas {ciência+inteligência} e {filosofia+intuição} o que pode surgir nesse modelo como clínica que pensa processo é, então, não a solução de problemas, mas a desmontagem deles e também a invenção de novos problemas. A clínica assim está ligada a uma capacidade de criação, que não é referente às sistematizações produzidas pela psicanálise, ainda que não se distancie dos seus estudos, mas procura inventar novos pontos de vista (e de vida…) (( Idéia de clínica do/no social, a clínica que transpassa os espaços privados, que atravessa no subjetivo e vai além, no individual, uma clínica que traduz a subjetividade da cultura, que está naquele indivíduo, uma clínica compreende um sujeito inserido em uma relação micro e macropolítica, e que ativa o sujeito para a busca de seus devires, de seus processos enquanto sujeito desejante… Clínica que provoca desconforto, desconstrução…para uma reinvenção. Neste sentido não é uma clínica somente de respostas, que procura amenizar angústias ou desencontros, ela provoca com que este desencontro traga à luz/consciência os atos do sujeito enquanto processos de subjetivação, em que ele/ela não é vítima, é ator/atriz. ))
Isso me faz lembrar de um texto de Félix Guattari em que ele narra a sua relação com um paciente, em que ele sugere ao paciente que deixe de viver na casa dos pais para experimentar novas relações sociais, libertando-se das relações familiais que o aprisionavam… Guattari ressalta que essa sugestão e a coleta de dinheiro para que ele pudesse financiar alguns meses em sua nova casa escapavam muito dos limites éticos da relação psiquiatra–paciente. É um episódio singular…
A clínica transdisciplinar, à sua maneira, provoca novas complexificações, novos caminhos para as identidades, em seus processos de diferenciação e acoplamento, ou de composição social. Desenha mapas invisíveis, mapas de invenção.
Singular / Comum
Volto para aquela minha pergunta formulada anteriormente: de que maneira a cartografia é provocadora de processos de singularização ao mesmo tempo em que provoca uma análise crítica de um sistema econômico e político que é necessário enfrentar? Me parece que essa pergunta pode ser pensada em uma dobra, ou em um encontro: na relação singularidade e comum, sendo a primeira a capacidade de criação de caminhos autônomos, e a segunda a capacidade desses caminhos de serem a construção de um comum, que extravasa a individualidade e endereça um espaço de produtividade maior, de uma ética comum. Ainda que pareça que a complexidade está centrada nos processos que envolvem a unidade de um sujeito, suas subjetivações, seus movimentos, seus pontos de vista, podemos pensar a cartografia de complexidade como uma ferramenta social. Ou será uma cartografia que se apropria de uma psiquiatria materialista – que se trata de uma dimensão de análise do desejo, de seus movimentos, considerando que eles são produzidos socialmente, e portanto não isoláveis no sujeito (retirando-o da dicotomia de sujeito ou culpado…), mas comuns, ordinários…
Em uma perspectiva, podemos pensar que a capacidade de se mover no mundo vem pelo conhecimento do mundo, assim sendo, uma pessoa só se moveria por aqueles territórios que já conhece. Portanto, uma pessoa só se moveria pela capacidade de pertencer às significações já correntes (falar uma língua, por exemplo). Pois bem, mas ninguém fala uma língua sem inventá-la, ao menos um pouquinho.
Na perspectiva das singularidades e sua tensão com o comum, há uma relação intrínseca entre os a cognição, os processos coletivos das lutas, grupos e movimetos, seus vocabulários, a língua e a linguagem.
Os vocabulários, a língua e a linguagem podem ser instrumento reguladores dos processos de significação, mas na cartografia das complexidades provamos como elas também podem ser esgarçadas no processo de criação e na política. A língua e a linguagem são constituídas também por elementos extra-linguísticos e por elementos extra-cognitivos, ou seja, elas interagem com e também excedem os vocabulários. Na perspectiva da singularidade, operar a construção de uma cartografia de complexidade pode ser, portanto, inventar novos caminhos para si, como tenho argumentado ao longo desse texto.
As (des)medidas de mundo, entre o finito e infinito no singular-comum, parecem ser uma expressão das bordas não rígidas da língua e da linguagem. Inventamos nossas expressões, mudamos aquelas que não nos cabem, recuperamos termos de outros espaços. Na perspectiva da singularidade-comum, parece que não nos movemos apenas por territórios que conhecemos plenamente, nem apenas por territórios que conseguimos representar. Acredito que nos movemos por territórios que nos deixam deveras inseguros, (( Territórios estes que estão inseridos no nosso ser, que estão nas ferramentas do olhar e do ver, mas que são poucos utilizados, mas quando acionados entram em funcionamento. São territórios que fizeram parte da construção de nosso self, mas que foram deixados à revelia, pois nunca foram “solicitados”…, territórios de infinito conhecimento)) visto que sabemos que nosso traçado vai constituindo imprevistos, e dessa forma é provável que vamos produzindo peças inacabadas, protótipos, pistas, rascunhos, diagramas, o que eu chamaria agora de exercícios de singularização na complexidade do mundo.
Na perpectiva do comum, a cartografia da complexidade desejar ir provocando bifurcações, no sentido de provocar encontros, de provocar atrito às representações do mundo, e de provocar outros mundos. Na perspectiva do comum a produção de uma cartografia de complexidade é a construção de signos junto da construção de mundos, em que não estamos isolados ou imersos num caos (possivelmente imobilizador), mas em que nos “ordenamos” singularmente no caos ou tomamos parte em diversas complexidades. Nos movemos por ali, e por aqui, e por ali… Cartografia produzida a partir de vários pontos de vida diferentes. A construção do comum, contudo, não é um todo homogêneo, mas um todo diverso, repleto de singularidades. O comum é a própria construção de alternativas, alternativas que se desenvolvem junto da vida, dos caminhos da vida, da ética das lutas, da construção de territórios e sentidos não fixados, pois multiplicam mais as linhas das cartografias dadas, e apagam, ao mesmo tempo, outras linhas. (sair)
Evidente que algo complexo pode ser difícil. Evidente… A complexidade é expressão que me faz pensar nas equações de química que eu não conseguia resolver. Assim sendo, pensar a composição do mundo no plano de uma complexidade me faz assumir – claro – que é difícil é se mover no mundo! Mas que não há nada mais prazeiroso do que quando nos movemos junto de alguém… E, ao inventar caminhos, inventar indiomas.
Notas
(1) http://bureaudetudes.org/
(2) Cartografia crítica da Amazônia. Em: http://dossie.comumlab.org/
(3) Dois trabalhos são referência para essa espécie de metodologia que descrevo aqui, um o ‘Manual de Mapeo Colectivo”, 2013, do Iconoclasistas (disponível aqui http://desarquivo.org/node/1679 ), e outro o livro ‘Pistas do Método da Cartografia’, 2009, (disponível aqui http://desarquivo.org/node/1593).
(4) Mapping the Commons http://mappingthecommons.net/pt/mondo/
(5) Red LabsurLab https://labsurlab.org/
(6) Antena Mutante http://antenamutante.net/
(8) Proprietários do Brasil www.proprietariosdobrasil.org.br/
(9) Eduardo Passos. Complexidade, transdisciplinariedade e produção de subjetividade. Em: www.slab.uff.br/index.php/producao/8-textos/46-eduardopassostextos
Referências
Félix Guattari e Suely Rolnik (1986) Micropolítica – Cartografias Do Desejo, Petrópolis: Vozes
Félix Guattari (1992) Caosmose: Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34.
Franco Bifo Berardi. (2012) The uprising: on poetry and finance. Los Angeles/London: Semiotext(e)/MIT Press.
Tania Maria Fonseca Galli e Luiz Arthur Costa. Da Diversidade: Uma Definição do Conceito de Subjetividade. Em: Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology – 2008, Vol. 42, Num. 3 pp. 513-519
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Cartografias da Ditadura
// Tiago Régis
Toda saudade é a presença
da ausência de alguém
de algum lugar
de algo enfim.
Gilberto Gil
A memória é uma ilha de edição, uma vez disse Waly Salomão. Com o auxílio deste maquinário, procede-se a uma edição não-linear, múltiplas operações: inserts, cortes, rearranjos, dentre outros mais.
Oportuno e bastante precioso o ensinamento do poeta, dado o contexto das “descomemorações” do cinquentenário do golpe de 1964. (1) Levando em consideração, portanto, a memória como uma dimensão fundamental para a reconstrução da história de períodos autoritários, emerge em fins de 2013 na cena política fluminense um trabalho de mapeamento de lugares de memória relacionados tanto à resistência quanto à repressão no estado intitulado Cartografias da Ditadura. (2) Trata-se de uma proposta de construção coletiva e colaborativa, de caráter permanente e processual, de uma plataforma virtual aberta às contribuições de pesquisadores, ativistas, ex-presos políticos, bem como de qualquer pessoa que tenha interesse ou informações pertinentes à temática em pauta.
Ao entender as memórias como objeto de conflitos e lutas, nas quais os participantes envolvidos neste campo de disputas estão permanentemente elaborando novos sentidos, esta ação objetiva contribuir para um processo de memorialização no estado do Rio de Janeiro, evidenciando a luta dos movimentos sociais pela disputa concreta e simbólica dos espaços da cidade. A proposta é reapresentar a memória de maneira que seja reconhecida a necessidade de mudança no âmbito das políticas públicas, bem como colocar em pauta os diferentes motivos que temos para recordar.
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Tendo em vista a produção cartográfica como uma ferramenta de estratégica importância para a disputa de territórios, a ação Cartografias da Ditadura tem por escopo fazer com que o mapa deixe de ser apenas um registro gráfico de representação para se transformar em um espaço de expressão de experiências coletivas, de encontros e trocas. O intuito aqui é sobrepor outras informações e grifar outros significados no mapa para assim possibilitar a produção de outras camadas de sentido. Interferir neste mapa é refazer uma outra cidade, a qual passa a não ter mais sua história escrita no mapa de contornos bem delineados.
Evidenciando cartograficamente as práticas da repressão ditatorial, bem como os atos de resistência àquele regime, esboça-se, aos poucos, o mapa de um Rio de Janeiro que desmancha a pálida imagética construída pelos discursos hegemônicos de poder. Trata-se de produzir outros sentidos acerca de lugares do passado ainda hoje muito presentes através do trabalho da memória, o qual se dá no imbricamento das biografias individuais e da história coletiva.
Reunindo os mais diversos materiais produzidos no campo temático Memória, Verdade e Justiça, esta cartografia pretende se constituir como uma ferramenta de valor pedagógico que objetiva fomentar a conexão entre as lutas e as violações do passado e do presente, bem como transmitir para as gerações de hoje e para as próximas o absurdo da violência institucional.
Considerando essa vertente coletiva de produção de conhecimento, Cartografias da Ditadura quer afirmar, como disse o crítico literário suíço Jean Starobinski em um texto concebido como discurso de agradecimento pelo Prêmio Europeu do Ensaio Charles Veillon de 1982, o “vivo interesse que sentimos diante de determinado objeto do passado, para confrontá-lo com nosso presente, no qual não estamos sozinhos, no qual não queremos ficar sozinhos.”. Afirmar, sobretudo, que as ausências deliberadamente soterradas e esquecidas da memória oficial se fazem mais do que nunca presentes!
Notas
(1) O golpe de 1964 mergulhou o país em uma ditadura de caráter civil, empresarial e militar que só terminou formalmente em 1985.
(2) Cartografias da Ditadura é uma ação do projeto de pesquisa e intervenção no campo temático Memória, Verdade e Justiça [Projeto MVJ] executado pelo ISER, organização de direitos humanos sediada na cidade do Rio de Janeiro. Em seu início [fins de 2013 e no início de 2014] foram realizados alguns encontros presenciais de interlocução com parceiros para formulação conceitual e tecnológica da plataforma. Em 26 de março de 2014 foi realizada uma mesa de debate que marcou o lançamento da plataforma. Desde então, a equipe responsável tem realizado algumas intervenções [parcerias com grupos/pessoas para produção de conteúdo + oficina em escola + concessão de entrevistas + participação em atividade da Campanha Ocupa DOPS >> ver mais sobre a campanha aqui <http://ocupa-dops.blogspot.com.br/>] para difusão desta ação cartográfica. Para contatos com a equipe, escrever para
Referências
SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? Tradução de André Telles. Revista Serrote, Rio
de Janeiro, n. 10, p. 43-61, mar. 2012.