Grupo de Educação Popular

Grupo de Educação Popular

// por André Bassères

Esse texto nasce de um problema, na mais forte acepção desta palavra: como força que vem de fora, me põe em movimento e me faz pensar. Uma questão que sempre me acompanha, que enquanto educador (ou alguém que se pretende educador), nunca posso deixar de colocar. Este problema que me move, esta inquietação que é a minha, imagino, deve aparecer de diferentes formas, com inúmeros nomes, a todos aqueles que vivenciam o espaço pedagógico na qualidade de “professor”, buscando com isso fazer das suas vidas e do seu ofício uma experiência de libertação, de aumento de potência, transformação de si, dos seus alunos, e do mundo. Esse problema, portanto, creio eu, é comum, comum ao menos a todos aqueles comprometidos com uma educação para a vida, para a liberdade, para a transformação da realidade (atividade que me parece intrínseca a todos aqueles comprometidos com a vida, em qualquer espaço, em qualquer ocupação).

De toda forma, trago aqui este “problema comum” na singularidade da minha experiência com ele. Este texto é uma pequena expressão de como eu sinto, vivo e penso a educação, e sobre também como penso e construo em conjunto com outros – não a resposta ao problema (insolúvel, devo dizer) – mas sentidos possíveis, aberturas conquistadas, rachaduras nas velhas muralhas claustrofóbicas que constrangem a vida, buscando apequena-la, sufocando resistências e diferenças. Não pretendo escrever um artigo acadêmico, ou algum tipo de “projeto” já acabado acerca de uma educação que seria a ideal. Trata-se aqui apenas do desenvolvimento de uma questão, uma breve narrativa acerca de algumas experiências, movida a partir de angústias, mas plena também de profundas alegrias.

Nomeemos, portanto, o problema: como pensar a educação como instrumento de libertação? Como fazer da educação um processo de emancipação comum a mim, ao outro engajado nesta relação comigo (o aluno, o colega), ao mundo? O problema, podemos colocar dessa maneira, embora o nome seja o que menos importa: como fazer educação popular?

Não é uma questão nem um pouco fácil de responder. No Brasil, talvez, seja ainda mais difícil que em outras partes, onde todos os poderes estabelecidos, todas as relações institucionais, parecem conspirar contra qualquer experiência minimamente transformadora de educação. Por aqui (não sei se é tão diferente assim em outras partes, mas enfim…), o sistema educacional é de uma perversidade absoluta, por que ele se constitui enquanto ferramenta fundamental na clivagem entre aqueles que irão se manter em confortáveis posições de privilégio e a vasta maioria relegada ao subemprego e ao desemprego; uma ferramenta racista, dura, onde qualquer princípio de uma suposta “igualdade” é destruído desde a creche. A distinção entre escolas públicas e as caras escolas privadas corresponde quase que perfeitamente à distinção entre as posições sociais que serão futuramente desempenhadas pelos respectivos “públicos”. Nossa educação traduz um elitismo quase estamental, onde a subordinação de um sujeito a uma vida de opressão e trabalho precarizado é assegurado desde a primeira infância; o mesmo valendo para aqueles que serão os seus senhores.

Mas o problema, entretanto, no seu cerne, naquilo que ele tem de mais íntimo, não é em sua natureza brasileiro, não se resume às agruras que se vive na educação aqui, nos salários baixos, carreira desvalorizada, péssimas condições de trabalho para os professores e alunos, etc. O problema, realmente, não é mesmo só esse, por que o problema é anterior, é mais profundo, constitutivo da própria noção de educação como entendida contemporaneamente: ele é antes de tudo a própria escola.

É um problema que se faz sentir no corpo e na alma de qualquer educador que se queira libertário, que se queira um elemento de composição e fortalecimento com os seus alunos, ao invés de guarda castrador, juiz e sacerdote dos “limites”. A pergunta que o problema suscita é imediata: para que foi feita a escola? Qual o seu sentido? O que se pretendia quando a universalização do ensino se tornou palavra de ordem nos centros do nascente capitalismo (ali, por detrás “das boas intenções”, dos “nobres ideais”), para depois ser exportado mundo afora? Que tipo de estratégia nascia ali, com que finalidade, apontando para que tipo de sujeito?

Todos estamos, é claro, cansados de saber a resposta (duvido que um único professor não a reconheça, mesmo que não queira pensar sobre isso, ou antes, abrace a sua “missão civilizadora”): o propósito sempre foi a formação como formatação. A construção de vidas adaptadas, conformadas a uma nova organização econômica, política, social: corpos dóceis, disciplinados (sinto calafrios ao lembrar que todos somos professores de “disciplinas”), prontos e preparados para uma nova realidade produtiva, um novo tipo de trabalho (que é antes um novo tipo de trabalhador), em suma, para as exigências agora impostas pelo Capital (em uma realidade que transcende a diferença entre classes, mesmo que sua estrutura fosse sempre adaptada a distinções classistas). Escola, hospital, fábrica, hospício, reformatório, e, aquele que constitui o modelo privilegiado, o paradigma dos demais: prisão. Eis as instituições disciplinares, e a sua finalidade nunca pôde ser outra que aquela de formar vidas para o capitalismo, nem mais nem menos.

O mundo, claro, mudou. E é necessário reconhecer que, se ainda há essa escola disciplinar, se ela ainda persiste em muitos de seus elementos (e é um fato que persiste), ela também vem sendo paulatinamente criticada, desconstruída, reformulada. De fato, o velho capitalismo fabril, monolítico, vertical (como os buracos de uma toupeira), tem dado lugar a formas bem mais sutis de dominação, a relações até certo ponto flexíveis, sinuosas (como os caminhos de uma serpente), a relações de poder e práticas discursivas que vêm transformando inteiramente os velhos campos institucionais que antes se colocavam unicamente como espaços de adestramento dos corpos, como produção de subjetividades passivas e prontas para um trabalho mecanizado, repetitivo.

Neste novo mundo que traduz um capitalismo modificado (e, portanto, pleno de novos sentidos e novas exigências), a educação é muitas vezes apresentada como já “liberta” de suas velhas amarras, suas constrições, suas jaulas. Seu íntimo parentesco com a prisão produz hoje horror (quer a ironia da história que os bons sentimentos de hoje muitas vezes não reconheçam os de ontem). Os grandes “reformadores” do discurso pedagógico contemporâneo vieram “libertar” a todos da escola-prisão. Assim como os grandes heróis da reforma psiquiátrica na Europa do final do XVIII, vêm ao nosso auxílio pedagogos, neurocientistas, psicólogos, psicopedagogos, e uma miríade de novos especialistas (que incluem, por mais pitoresco que isso possa parecer, economistas, administradores – até mesmo o Banco Mundial, vejam vocês, se tornou autoridade em educação). Graças a eles recebemos as boas novas: “não temam mais, viemos salvar os alunos de um ensino tirânico e opressivo; viemos também reformular a administração escolar, tornando-a eficiente, dinâmica, baseada em coeficientes de produtividade, trazemos conosco a modernidade para a sala de aula!” Ao menos nas escolas particulares por aqui, trazem também na bagagem seus smartboards – quadros interativos – e outros gadgets. Tecnologia de ponta: a grande facilitadora do processo de “ensino-aprendizagem” contemporâneo.

Em grande medida, esta “revolução” pedagógica se assenta em dois princípios (me refiro, é claro, aos “saberes” que têm sido apropriados de maneira hegemônica na educação brasileira, principalmente na pública, mas também na privada, e não a todo e qualquer esforço pedagógico; como queremos argumentar, este é um campo – como sempre – em disputa): a administração de uma escola deve se assemelhar cada vez mais a uma gestão empresarial, e o mais aterrorizante é que isso deve ocorrer mesmo em seus aspectos estritamente pedagógicos, na própria aula, na própria relação direta entre professor-aluno, libertando o aluno da “opressão” do modelo fabril, prisional, que, de certa forma, os professores ainda representam (não à toa, o ensino à distância ganha cada vez mais força: o professor é, neste modelo, cada vez mais dispensável).

Entretanto, salvar os alunos não é apenas modificar a estrutura escolar, e mesmo a forma como os professores dão aula (ou se eles dão aula de todo), introduzindo mecanismos de “eficiência corporativa”. É preciso realmente salvá-los! E, como o louco “resgatado” por Pinel e Esquirol dentre inúmeras figuras que infestavam os sanatórios do século XVIII, os “reformadores” de hoje vêm resgatar a criança doente da confusão indistinta que antes se fazia (a criança doente se separa das outras “anômalas”: as desobedientes, as preguiçosas, as agressivas, as mal-educadas, etc.).

Transtorno Desafiador Opositor; Transtorno de Déficit de Atenção (com ou sem Hiperatividade); etc.: muitas são as doenças que “assolam as crianças”, e muitos (e caros) são os remédios para trata-las. Hoje, cada vez mais, substitui-se a condenação moral sobre a conduta do jovem por uma avaliação psiquiátrica e neurológica. Nada a ser “punido”, mas sim “tratado”. O que se vê é uma verdadeira epidemia de medicalização da infância, assustadora mesmo que não entremos na penosa discussão sobre se tais “patologias” possuem uma “existência em si”, ou se elas são o outro lado do mesmo saber médico que as “descobre”.

Esses dois recortes pedagógicos que busquei desenhar (de maneira por demais genérica, esquemática e pessimista, é bem verdade), todavia, de forma alguma se excluem mutuamente, como se houvesse uma ruptura cronológica e hoje nada restasse da escola “clássica”. Muito pelo contrário: nas escolas do Rio de Janeiro o que se vê é a mais perfeita fusão desses distintos “modelos” de educação: temos uma secretaria de educação que avalia seus alunos e professores através de índices de produtividade (claramente tomados de empréstimo do modelo empresarial) medidas em provas regulares e outros mecanismos (interferindo diretamente no salário desses professores), mas que coloca, ao mesmo tempo, policiais na porta dos colégios para “cuidar da segurança”; temos uma educação que medicaliza seus alunos por “transtornos de aprendizagem”, mas sem jamais pôr realmente em questão a sala de aula, a quantidade de alunos em uma aula, a obrigatoriedade da presença, as notas, medidas punitivas, etc. Está lá todo o velho arsenal da escola “tradicional” que faz com que seja corriqueiro encontrar jovens na escola que a reconhecem claramente como a velha prisão, mas com nova roupagem.

E o professor libertário, não libertador, que compreende a educação como um processo coletivo, que não está separado (e nem pode se separar) das demais condições do mundo em que vivemos, deve procurar seu caminho nesta densa floresta de espinhos, entre o martelo da escola disciplinar conservadora e os mecanismos “modernos” de gerência da vida (até mesmo do ponto de vista da química cerebral), postos em prática pelos discursos “flexíveis” da lógica empresarial. É um caminho obviamente difícil, mas é o caminho da educação popular.

A crítica mais poderosa que se pode (e que sempre se pôde) fazer à escola e à educação é que elas estavam (como ainda estão, sem desconsiderar as novas relações de poder em jogo) a serviço da produção de um mundo desigual, doente, opressivo; a serviço da produção de subjetividades apaziguadas, submissas, prontas para um mundo de subordinação e exploração, cultivando as “competências e habilidades” necessárias para desempenhar suas futuras “funções sociais”. Buscar uma educação que liberte é, antes de mais nada, se despojar da indumentária da educação (tão presente na educação de hoje como foi na de outrora); é esvaziar os lugares instituídos de poder (em primeiro lugar, é claro, na sala de aula); é buscar um caminho com os alunos, abandonar a pretensão despótica de lhes “educar” (o que não significa que não haja transmissão de conhecimento, é claro que há, mas sempre numa via de mão dupla, de troca e de respeito pelas diferenças e vivências de cada um). É Paulo Freire sim, em cada palavra, mesmo que ele também, tragédia da história (ninguém é dono do seu próprio pensamento) seja apropriado pelos “reformadores escolares” que querem mudar tudo para não mudar nada. É, por mais que a palavra seja um clichê, uma atividade que se faz com amor, com entrega e disposição de se ver desprovido de um papel central e preenchido de autoridade. Por isso a educação popular, libertária, é uma militância, constante, feita dentro desses espaços a que chamamos “escolas” e fora deles.

E o bonito quando se faz essa educação com amor, essa militância pela liberdade na (e através da) educação, é que dificilmente se fica sozinho. A diferença busca a diferença: surgem sempre aqueles que também se indignam com as correntes, todas elas, da educação, há sempre aqueles a quem dar o braço, e seguir experimentando uma educação que não seja “dona da verdade”, que não opte por reforçar simplesmente saberes instituídos, em detrimento de toda uma infinidade de experiências, de discursos, de práticas. Uma educação que não busque perpetuar relações de poder institucionalizadas (sancionadas por aqueles saberes), que busque um espaço de trocas horizontal. Um espaço onde, nessa vivência, alunos se misturem com professores, suas figuras se diluem e se combinam, e onde, em uma assembleia na qual assuntos que são do interesse de todos são discutidos (desde questões práticas sobre aulas, até demandas da comunidade local), se torne difícil distinguir quem “chegou ali como professor e quem chegou ali como aluno”.

Aqui no Rio existem (como em qualquer grande cidade, imagino) alguns grupos que se engajam particularmente nessa luta. Um deles é o GEP, Grupo de Educação Popular, do qual faço parte.

Somos educadores populares (ou antes, buscamos a educação popular em nosso trabalho), agimos dentro das escolas públicas da cidade e fora delas, em diferentes experiências comunitárias. O grupo começou há sete anos, com um pré-vestibular popular no morro da Providência, após as “forças militares” que, naquela época, garantiam a “pacificação” da favela (como hoje fazem as UPPs) sequestrarem três jovens e os entregarem a uma facção criminosa rival daquela que controlava o tráfico de drogas no morro e na região. Os jovens foram barbaramente torturados e mortos.

O grupo inicial, muito deles militantes oriundos do movimento sem-teto no centro do Rio (que contava com algumas fortes ocupações, como a Quilombo das Guerreiras, a Zumbi dos Palmares, a Machado de Assis e a Chiquinha Gonzaga – única dessas que não foi removida pelo Estado), decidiu construir um projeto de educação popular que pudesse ir além da sala de aula, além do trabalho importante de tentar garantir o acesso de jovens negros e pobres à universidade, um dos espaços mais excludentes da sociedade brasileira. O que se buscou desde o começo foi um forte engajamento nas lutas e demandas não apenas da Providência, mas de uma das regiões do Rio que se tornou um dos alvos prioritários desse capitalismo predatório e selvagem ao extremo que o Estado e a iniciativa privada vêm experimentando no Rio: a região portuária. Um processo de violência que não se iniciou com a morte dos três rapazes, mas que certamente vem experimentando um recrudescimento da brutalidade somente proporcional à ganância dos investidores (à medida que a região vem se valorizando cada vez mais no mercado). Inúmeros despejos aconteceram nos últimos anos, comunidades inteiras arrasadas para dar lugar à especulação imobiliária, como a ocupação Quilombo das Guerreiras, despejada no começo do ano após meses de verdadeiro terror imposto pelo Estado.

Apesar do aumento da repressão e da violência estatal na região, o grupo cresceu e hoje somos muitos: educadores, alunos dos projetos que desenvolvemos (de modo absolutamente autônomo e independente), estudantes universitários, alunos de escolas públicas de diversas partes do Rio. Além de trabalhadores da região e militantes com outras experiências de luta. Na Providência, o pré-vestibular continua e um curso de alfabetização de adultos já funciona há vários anos. Buscamos estar presentes nos espaços comuns, e ajudar a fomentá-los, como assembleias populares da região e também de atos coletivos que combatem às inúmeras arbitrariedades que acontecem ali todos os dias. Hoje também atuamos fortemente como parte do apoio da ocupação Chiquinha Gonzaga, com oficinas para as crianças do prédio e outras atividades que ajudamos a organizar com pessoas da ocupação e de fora. Mais recentemente, nasceu um braço do GEP na Uerj e no morro da Mangueira, com, entre outras atividades que buscam cruzar a esmagadora fronteira que divide esses dois espaços na realidade tão próximos fisicamente (favela e universidade), um novo curso de alfabetização de adultos. Também atuamos em diversas escolas públicas do Estado, e no sindicato dos professores (SEPE), tendo uma presença forte nas lutas dessa categoria, em especial, nas últimas duas greves. O GEP educação pública une professores que pensam um novo modelo pedagógico e que lutam cotidianamente pelas melhorias materiais das escolas públicas, com os próprios alunos, aqueles que mais sentem a opressão dessa “negligência” e desse “projeto de educação” sobre as suas vidas.

O que faz deste um belo processo de educação popular é exatamente o fato de conjugarmos a crítica ao que normalmente entendemos como educação (e a construção de sua alternativa) com a luta popular, cotidiana, entendendo que o processo coletivo da educação deve, ao mesmo tempo em que se reinventa, apontar para uma transformação de mundo. São, na realidade, atividades análogas (ou mesmo, dois aspectos da mesma atividade), pois reinventar o que se entende como “relações de ensino-aprendizado” é já produzir uma singularidade no mundo, e todas as vivências e lutas das quais participamos são já um profundo processo de aprendizagem. Daí a inexistência de uma distância real entre o trabalho que muitos de nós fazem em escolas (em sala de aula e fora dela, mas ainda vinculados à escola pública, como nas greves e atos) e o trabalho comunitário que fazemos cotidianamente em espaços vivos e cheios de vida, de experiências belas e trágicas, de lutas e violências de uma brutalidade que não podem ser expressas por meio de palavras, como as ocupações e as favelas da Providência e Mangueira.

A própria educação popular é quebrar os muros da escola (mesmo quando não podemos fazê-lo fisicamente); é já um gesto de libertação. E a própria luta comunitária, cotidiana, é um intenso processo pedagógico de formação para a transformação, é educação no sentido mais pleno e poderoso que essa palavra pode assumir: troca, composição, afeto, construção coletiva. É já, na luta para mudar o mundo, a criação de um outro mundo, em cada uma daquelas relações, em cada pequena experiência: na rua ou na sala de aula, é emergir outro e apontando para outro mundo.

Talvez seja por aí (menos do que nas “justificativas oficiais”) que devemos buscar a real explicação para a pesada e inclemente perseguição do Estado, que recentemente emitiu ordens de prisão preventiva (por sermos “perigosos demais” para aguardar o julgamento em liberdade) contra sete militantes do grupo, além de outras dezesseis pessoas de outros grupos. Se estamos “a solto” nas ruas, nos nossos trabalhos, nas nossas vidas, é apenas graças a um Habeas Corpus emitido por uma instância superior do judiciário, não sem antes termos de passar (como os outros perseguidos políticos) duas semanas presos ou foragidos, sob a alegação (sem nem uma única evidência concreta que incrimine os acusados) de “promovermos atos de violência nas manifestações” de Junho e dos meses subsequentes.

A acusação, de tão absurda e dramática, me faz lembrar o rótulo de “terrorista”, preferido pela ditadura militar para se referir àqueles que a combatiam. Atuamos com educação popular em espaços absolutamente abandonados pelo poder público (abandonados de políticas públicas, que fique claro, de nenhuma maneira abandonados das relações de poder e violência sistemática de todas as formas do capitalismo contemporâneo: aponto a prática fascista de pintar em casas da Providência a sigla da Secretaria Municipal de Habitação seguida de um número: a maneira pela qual a prefeitura achou por bem informar centenas de famílias que suas casas seriam derrubadas). Buscamos, pela educação e trabalho cotidiano, construir relações libertárias e potentes, compondo forças com os gestos de resistência que encontramos pelo caminho, gestos (ou melhor, gritos) que devem ser sufocados, vidas que devem ser esmagadas. E por que lutamos com eles, sem querer levar nada, nem salvar ninguém, sem almejar cargos públicos, nem verbas públicas ou privadas; por que queremos apenas juntar nossa voz às deles nesse grito, não nos podem perdoar. Paciência. A vida segue, e a repressão que estamos vivendo é ainda ínfima quando comparada com a violência reservada aos moradores de favela, aos pobres, às “classes perigosas”. A luta continua e o aprendizado também.

Concluo mencionando um trabalho que estamos fazendo, por nenhum motivo especial a não ser o de acha-lo bonito e de pensar que ali já acontece uma experiência de educação popular que vale divulgar: o trabalho que o apoio da Chiquinha Gonzaga (e muitos de nós do GEP estamos lá) tem feito na ocupação. Ali, vem nascendo nesta mesma semana em que escrevo essas linhas, um novo e potente espaço para uma educação popular, libertária, uma educação para transformação. Estamos angariando recursos e, braços dados, fazendo mutirões para reformar e reestruturar um amplo galpão que jazia abandonado há anos. Lá iremos continuar atividades que já vêm acontecendo e criar novas possibilidades. E elas são inúmeras: a alegria é sonhar com o que pode ser feito, com as múltiplas experiências horizontais, coletivas, companheiras, de educação que poderão nascer ali.

Mas certamente esse já querido espaço nasce sob bons auspícios: sua primeira atividade, no seu salão ainda vazio, sua estrutura ainda precária, foi uma oficina de Teatro do Oprimido para educadores populares.

 

 vocabpol em 08122014 entradas, índice

Hidrosolidariedade

// por Giseli Vasconcelos

Neol. 1) Solidariedade solúvel: a) Oportunidade de sistematizar as ações realizadas e apresentar o resultado daquilo que pensamos e executamos b) Processo de colaborações e associações entre artistas ou agitadores culturais c) Encontros d) Parcerias e) Envolvimento. (1)

 

Localizado no extremo norte do país, entre os estados do Pará e Amapá, o delta recebe águas de centenas de rios menores transbordando o Rio Amazonas em direção ao oceano Atlântico. É nessa desembocadura que se encontra o fenômeno da POROROCA (o tupi “poro’rog” = ‘estrondar’), quando as águas oceânicas se elevam e invadem a foz do rio num confronto que promove o surgimento de grandes ondas, mais evidente nas mudanças de fase da lua, principalmente Lua Cheia e Nova.

A solidariedade solúvel

A produção da rede aparelho aconteceu entre encontros que por vezes chamamos de reuniões e que transbordavam em ações de rua. Para cada ação proposta se constituía uma pequena rede de relações afetivas que se relacionavam às redes maiores, através dos meios digitais ou não, como: associação de bairro, terreiros, botecos, rádios comunitárias, listas de discussão e quilombos. Ao longo do tempo, espalhados entre tantos esporos, fomos coletivizando pela cidade debates em torno da liberdade de criação, expressão e ação como direito comum e público. Os assuntos amplificados discorreram sobre a pirataria, economia informal, a autonomia na produção artística e cultural e principalmente, cultura livre. Num devir impregnado pelo mote “o que ocorrer…”, experimentávamos uma composição poética política que tentava reunir fragmentos de tudo e todos entre textos, resenhas, música, vinhetas, entrevistas e cineclubismo de maneira fluida e atemporal. Estávamos na intercessão com os nascidos e crescidos ao Norte e entre viajantes, convivendo nesse tempo-espaço de comunhão em meio ao Delta do Amazonas – esse imenso grandes lábios molhados pelos rios Amazonas e Tocantins-Araguaia. Durante todo o tempo em que estivemos juntos, a hidrosolidariedade foi incorporada de modo orgânico à nossa fala, entre notas e trocas de e-mails sem muito se preocupar com as origens ou contextualização do termo.

Há-braços

Arthur Leandro (2) que traz do Rés-do-chão (3) o conceito de hidrosolidariedade para dentro do [aparelho]-:. Em maio de 2009, respondendo a uma entrevista proposta por Denis Burgierman e encaminhada para a lista de discussão CORO, Arthur sinaliza exatamente quando o termo se incorpora às nossas ações:

Re: [CORO] Re: entrevista coletiva com um coletivo de coletivos – pergunta 1
https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/corocoletivo/conversations/messages/11280
Date: Fri, 1 May 2009

Por que “coletivo”? O que esse tipo de organização permite que o trabalho individual ou os grupos tradicionais – empresa, cooperativa, ong – não permitem? Enfim, o que vocês querem com esse negócio de coletivo, diabos?

Eu vejo diferenças entre hierarquia e liderança, mas a identificação das lideranças pelas relações sociais que nos circundam – e não conseguem nos circunscrever na hierarquia de poder…, como desejam -, faz com que nos identifiquem com palavras como “coordenador”, ‘chefe’, ‘manda-chuva’… Nós resolvemos por aqui com a auto-identificação como ‘agitadores’…, adjetivo também usado pelos que nos olham ‘de fora’, mas com a multiplicidade de interpretação que nos interessa.

daí o ‘agitador chefe’ vai depender muito de qual é o universo e de onde vem a identificação, por exemplo, no micro-universo do campus do Guamá da UFPA… Para a faculdade artes o chefe sou eu, mas nos bloco de ciências humanas já foram Luis e Angelo e hoje talvez seja a Bruna… No micro universo das culturas afro-amazônidas: nas comunidades de terreiro sou eu…, no hip-hop é a Yá Maré ou Perna, e no tec nobrega é a Giseli… Na comunicação comunitária é o Angelo, pros artistas de rua é o Rodrigo, na ilha de Colares e na baía do sol é o Fernando, pro pessoal das cênicas talvez já seja o Pedro… e por aí vai… é rede de relações… quem é o coordenador/chefe?

pra mim interessam as trocas, eu também atuo em outros coletivos e/ou grupos de outras cidades onde morei, como o Urucum em Macapá; e em outras formas de des-organização como o Rés do Chão, no RJ, ou em grupos virtuais como este coro que diverge tanto que nem faz coro…. Dai aqui na rede [aparelho]-: sou eu que trago do Rés o conceito da hidrosolidariedade…. E nossa primeira ação realmente coletiva e colaborativa se chamava “Potoca free-style, ou cineclube hidrosolidário, ou projeção de filmes para Yemanjá no dia 2 de fevereiro, ou esperando um novo nome pra batizar…”; também sou eu quem impregna a rede de informações das artes visuais…, mas eu não sabia (ou não sei) n ada de só-fi-tu-ér livre, e aprendo muito disso com a proximidade com a Yá Maré, como de edição de som com o Angelo, de Mônadas com a Bruna e por ai vai, é rede de relações….

ELEMENTOS DE UM RIO
fluência, afluência, confluência, leito, margem, montante, nascente, foz.

Com o passar do tempo, na tentativa em rescrever esses processos, percebemos um conjunto de significações potentes por detrás desse vocábulo que vai muito além da nossa micropolítica: a palavra desvela intrinsecamente nosso comportamento grupal, tribal e tropical-amazônico carregados de uma alegoria fundada num horizonte plano, infinito e líquido – somos sinônimos de água procedente de qualquer secreção corporal (o suor, as lágrimas, a baba…), do suco das frutas, do líquido que escorre das árvores, da bebedeira e do rastros espumantes das embarcações. A palavra também simbolicamente remete nossa história entre hidrovias, furos e recortes de rios, elaborados por gente em civilizações provavelmente antes da descoberta da América. E ainda, esses fluxos de passagem, relatados entre tantas viagens, desvelaram um imaginário de olhares mais de longe que de perto exauridos entre agonia e empatia.

Oxum

Oxum: orixá feminino que reina o amor, a intimidade, a beleza, a riqueza e a diplomacia sobre a água doce dos rios.

Proposta de com-viver

Em 2005, Arthur Leandro apresenta os Reslatim, uma série de relatos de viagem que culminaram nos registros de um ritual-de-passagem durante sua residência ao sul da França. Estávamos trabalhando juntos na seleção de parte desse diário (compartilhado pela lista de discussão do Rés-do-chão) para a publicação Digitofagia (4). Os Reslatim expõem caprichosamente a tensão de uma experiência individual de um amazônida diante da adversidade e desentendimento travados noutra cultura. O norte hemisférico, pautado na homogeneização de valores e comunicação padronizando conduta, sentimento, imaginação e linguagem.

O autor contrariado com o comportamento europeu, se desdobra por vezes na reflexão sobre o uso comum da expressão “desolee” (o que no português diríamos “sinto” e no inglês é o equivalente ao “sorry”) para discorrer sobre um modo coletivo ausente de solidariedade para com o outro: “O desolee é um vazio semântico, é o contrário de guerra que lança a palavra e seu significado ao encontro de novas circunstâncias, vejo o desoles como a atitude da muralha de comunicação. é muralha do eu para com a comunidade com que se com-vive.

Diante da nossa compreensão amazônida, o outro é afluente de vida. O outro é o que corre ao teu lado, atravessa e trespassa e cruza, como um rio. Nossos redários se formam por fruição, experimentando um curso de água, e desvendando as tecnologias possíveis como fora a canoa para a cabanagem e o regatão, para o jornal e televisão. E assim também, como na pororoca, a sobrevivência é um encontro estrondoso de movimento brusco que provoca na diversidade, as ideias, os desentendimentos, as redescobertas e outras linguagens.

Nesse diário de memórias, carregado de um comportamento tropical-úmido percebemos o clamor por trocas solidárias, fluidas e frouxas desmensurável, quase análogo ao nascimento de um rio buscando seu curso: (…) e talvez eu seja muito radical, mas quero continuar a viver na hidrosolidariedade e na hidrogenerosidade que faz a gente trabalhar junto por um projeto coletivo que ninguém sabe o que é. como a liberdade, mas que tem a participação de toda comunidade, com liberdade. Juntos!!!

Portanto, esse relacionar-se íntimo presente nessa terra do meio tropical, espelha-se num tempo que pára com as chuvas, que segue entre o aguaceiro penetrando nos solos para assim encontrar espaços vazios entres brechas e furos até chegar a um outro corpo d’água. E como num movimento solidário, um rio maior precisa se hidratar recebendo águas de rios menores, e então estes se tornam seus afluentes num fluir que compartilha o que não fica, que vai e escorre.

Estrela do Norte

PARÁ = RIO GRANDE. Do Brasil, sentinela do Norte.

Esse rio é minha rua

A imagem que se tem a respeito da Amazônia é formada por um imaginário por vezes edênico e satânico representada arbitrariamente por quem a olha de fora. Esta representação perpetuada pelas mídias, também mimetiza esse imaginário entre os fatos, denominando como único o que é diverso, e impondo uma identidade única a uma pluralidade de culturas, de naturezas e de sociedades.

A imaginação que normalmente se tem da região é, quase sempre, “mais uma imagem SOBRE a região do que DA região” como produto resultante de um contexto marcado por relações de poder. De uma geografia diversa, da nascente do extenso Rio Amazonas até a sua foz, a visão que temos do extremo norte é um rio de horizonte-infinito de onde muito de nossa poesia se referencia. De Belém vive-se conflitos de uma cidade cosmopolita que não sabe se é uma pequena metrópole ou uma grande província. Belém é um constelário de ilhas que representam 69% da superfície da cidade, nasceu por assim dizer sob o signo insular. É uma cidade portuária que recebe pessoas de todo o mundo sendo um ponto de partida de riquezas ancestrais. É onde o arcaico e moderno coabitam o mesmo espaço, a vanguarda e retaguarda com-vivem, o sagrado e o profano não se separam.

Di-versos

“Quanto a este mundo de águas é o que não se imagina. A gente pode ler toda a literatura provocada por ele e ver todas as fotografias que ele revelou, se não viu, não pode perceber o que é.” (5)
Enquanto reunia notas para este verbete deparei-me com um pequeno artigo “um grau ao sul” de Maria Christina que rememora a carta de Mário de Andrade encaminhada a Manoel Bandeira datada em junho de 1927. Esta carta denominada deliciosamente “Por esse mundo de águas” discorre sobre desejo sexual e arrebatamento em torno de suas experiências em Belém do Pará. Ela faz parte de uma série de registros entre fotografias, cartas e notas que Mário de Andrade manteve durante sua viagem à Amazônia, que dizia ser um diário despretensioso do que foi a viagem mais importante na vida do autor.

Neste relato que Mário denominou de “O turista aprendiz: viagens pelo Amazonas até o Peru pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega!” se percebe numa espécie de adesão à civilização tropical, descoberta sentimental intelectual de sua interpretação de um Brasil numa concepção plural de civilização mais sincrética que sintética. A viagem começa no início de maio e termina em meados de agosto de 1927. Já nos 10 primeiros dias o autor anuncia o espanto do seu olhar europeizado diante da desmesura e singularidade do mundo amazônico: “Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintarão que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjinho que ainda tenho dentro de mim (…)”.

A experiência de viagem de Mário de Andrade na região mesmo que curta for fundamental para sua meditação sobre uma civilização tropical. É durante esta viagem que o autor complementa as notas para versão de Macunaíma (redigido um ano antes mas totalmente aberto para inserções e colagem, lançado no ano seguinte), esboça a narrativa Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, além de experimentar a fotografia moderna.

Assim como nos Reslatim, as cartas e notas de Mário sobre a Amazônia sempre marcam de modo contumaz e por vezes irônico a ótica européia tecnicista, marcada pela hegemonia de um pensamento sintético e científico. Mesmo em tempo espaço diferentes, dum campo de visão deslocado (um amazônida na Europa versus um paulista europeu na Amazônia), esses relatos vem carregados de uma tensão que misturam a paisagem com estados afetivos que direcionam a escrita e o pensamento, propondo quase uma oração mental que nos ajuda a seguir profundamente sobre esse horizonte fluido.

Discorrer sobre um vocábulo que confirma-nos em ação é trazer à margem um translado de raízes e rotas que nos representam traduzindo signos e significados que nos semeiam. A hidrosolidariedade não deixa de ser uma utopia amazônica – quando pretendemos seguir um caminho solidário, frouxo e volúvel seguindo a natureza do comportamento das águas, desconsiderando o contágio e a assimilação como caminho único de civilização em direção ao progresso, sucesso e desenvolvimento. A hidrosolidariedade é a intenção – quando muitos juntos se dispõem como fluidos – correndo como a água, vagando a trocar experiências e conteúdos por uma re-produção, distribuição e reciclagem de tudo, aos VIVOS.

Ursa Maior

Ursa Maior

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci… Não é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e traçando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. (Macunaíma – Capítulo XVII: Ursa Maior)
Notas:

(1) Hidrosolidariedade faz parte do glossário sugerido para o projeto de pesquisa [Nu]-: aparelho: Relatos sobre coletivos, arte e colaboração baseado em entrevistas e ações envolvendo agitadores da rede aparelho, em Belém do Pará. A definição é proposta por Bruna Suelen, em sua tese de mestrado em artes na Universidade Federal do Pará.

(2) Arthur Leandro ou Etetuba (homem-forte) é pai-de-santo, guerrilheiro-artista, amigo-amado, pensador e professor na Universidade Federal do Pará.

(3) Rés-do-chão, foi um espaço autônomo na casa do artista Edson Barrus que promovia vivências, criação e discussão em arte. O Rés produziu uma série de publicações independentes além de experimentações entre performances e vídeos, compartilhada entre listas de discussã o, transmissão online, exibições etc.

(4) ROSAS, Ricardo; VASCONCELOS, Giseli (Org.). Net_Cultura 1.0: Digitofagia. São Paulo: Radical Livros, 2006.

(5) ANDRADE, Mário de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

(6) Relato crítico de Maria Christina para 31ª Bienal de São Paulo, acesso disponível em: http://www.31bienal.org.br/pt/post/634

 vocabpol em 07122014 conceito, entradas, índice, movimento, transformação

Humor

// por Geo Abreu

Dentro do processo das chamadas “Jornadas de junho” acontecidas desde junho de 2013, brotou das ruas, como escape lírico à truculência da polícia o humor, numa mistura de sagacidade com a criação de fatos mais estranhos que a ficção.

A memética dos acontecimentos acumulou uma produção de fôlego cujos locais de desague inicial tenham sido facebook/tumblr/twitter, transpondo conteúdos políticos por meio de piadas curtas, com núcleos que se transformam e perpetuam (as memes), multiplicando-se à medida que o afastamento do caso gerador não prejudique o entendimento da piada, de tal forma que seu uso se expanda e seja incorporado na linguagem cotidiana das redes sociais.

A criação das memes (sim, neste texto memes são entes femininos, porque férteis) partiam da curadoria de episódios exemplares com a intenção de assinalar o descabimento da inversão de valores, como num dos mais famosos casos, a depredação de uma loja da rede de roupas Toulon, cujos manequins foram vandalizados pela população. Fato que a midia corporativa transformou num quadro de horror, rídiculo e doloroso, quando ao entrevistar o dono da rede, este se pôs a chorar pelos bonecos e sua perda inestimável. A partir deste vídeo, a roda memética se pôs a girar e a inteligência coletiva produziu algumas respostas correlatas: uma missa de sétimo dia pela morte dos manequins; um prêmio pelas performances em protestos, cujos símbolos/estatuetas eram os ditos bonecos, e no rastro disso, uma intimação formal para que o jornalista/humorista/ativista Rafael Puetter/Rafucko prestasse esclarecimentos sobre a acusação de furto de um destes objetos.

O próprio termo “vandalizar” passou por uma transformação nestes dias, ampliando seu raio de uso e englobando não só as atitudes irresponsáveis de alguns cidadãos com “a coisa pública”, mas também as irresponsabilidades da classe política e da polícia no trato com os manifestantes, e o próprio discurso oficial criado neste contexto para legitimar a violência e a criação de verdades.

A partir de determinado momento, com a lei antiterrorismo em vias de efetivação e o terrorismo de estado crescente, provocando o esvaziamento das ruas, o humor criou soluções para manter o movimento e escapar da repressão. O casamento de dona baratinha é um deses casos: quando manifestantes apareceram para protestar durante o casamento da filha de um dos maiores empresários do ramo dos transportes no Rio de Janeiro, atrapalhando a festa e dando nomes a um dos agentes envolvidos na crise dos 0,20 centavos, o aumento nas passagens de ônibus que deu início às jornadas de protestos.

Daí à criação de coletivos de artivistas, tanto envolvidos com a trasmissão ao vivo dos protestos (Rio Na Rua, Mídia Ninja) quanto de intervenção urbana (Projetação, Vinhetando), quanto de criação de intervenções não violentas (Atelier de Dissidências Criativas), várias ações tomaram corpo e a cidade foi se organizando, transformando um movimento acusado de confuso e sem pautas definidas em um laboratório vivo de criação ferramentas sutis, cujas forças estejam no momento concentradas num esforço coletivo anti-copa. Forças que se expressam através de frases projetadas em muros, carimbos em notas de dinheiro, hackeamento de álbum de figurinhas, atos cujos traços são difíceis de rastrear e culpabilizar, espalhando a mensagem de descontentamento, conquistando mais e mais pessoas que estavam dispersas dentro da crise de representatividade política, bem como talentos obscurecidos no limbo do precariado cognitivo, e afirmando que aqui, nas cidades, “dois papos não se cria e nem faz história”.

 

Carnavandalirismo

// por Isabel Ferreira

O Carnaval faz dos nossos corpos território político.

Carnavandalirismo na rua é a política explodindo sua audácia imaginativa. Com seu feitiço socioerótico coletivo, o carnavandalirismo traz entusiasmo aos movimentos rebeldes, transborda as mentes, os corpos e os espaços da arte, e os leva às ruas.

No Carnavandalirismo, a ironia e o humor substituem a testosterona desestruturando a hipermasculinidade das táticas de confronto tradicionais. O corpo, a música e a dança se convertem, desta maneira, em ferramentas poderosas de desarticulação da violência policial e midiática.

O Carnaval de resistência surge do movimento fluido que pensa e atua em redes e que leva a criatividade e o prazer para à política. Rejeita as hierarquias sociais, a divisão entre atores e espectadores, confunde os gêneros, insiste na participação total e no seu caos criativo imprevisível e nos enfrenta com tudo aquilo que a sociedade de bem precisa controlar.

O Carnavandalirismo ocupa às ruas porque o rebolado é nosso e a cidade também!

Nota:
Carnavandalirismo é um projeto que parte do Atelier de Dissidências Criativas.

QUE É O ATELIER DE DISSIDÊNCIAS CRIATIVAS?
É um espaço para a criação de materiais diversos para o ativismo criativo: material gráfico, sonoro, vídeo, contra-publicitário, traquitanas, máquinas, roupas, performances, etc.
Todas as quinta- feiras, na CASA NUVEM(**) um espaço coletivo, para experimentar, praticar e espalhar o tesão de fazer e pensar política. Lugar de convergência, de troca de ideias, de mistura de cada um de nós, e dos vários coletivos artivistas e movimentos sociais da cidade. Experimentar um arte que REAL-liza, que busca a criação de realidades concretas, que constrói no aqui e no agora, que se alimenta e alimenta os movimentos sociais, que propõe outros tipos de dissidência fugindo dos clássicos rituais de protesto.

(*) Referência do texto: Tomando notas al caminar (sobre como romper el corazón al Imperio) John Jordan (2005), uma tradução muito livre de um extrato do texto Notes Whilst Walking on “How to Break the Heart of the Empire”. Texto disponível aqui .
(**) A Casa Nuvem está localizada na Lapa, no Rio de Janeiro.

 

 

 vocabpol em 06122014 entradas, oficina

Infraestrutura

// por Cristina Ribas ((parêntesis de Barbara Lito))

“Estamos dispostos a fazer algo pelas futuras gerações? Então resolvamos nossa dor infantil e coloquemos nosso corpo a disposição dos que são crianças hoje.” Laura Gutman

INFRAESTRUTURA

{ Maternidade / paternidade / economia do cuidado / trabalho }

A maternidade desacelera o mundo. Ensina ele que só há uma economia: a economia do cuidado.

Acordo num dia sem saber, que horas são? A contagem é do estômago pequeno daquele serzinho iluminado que ao lado me diz, tenho fome, ou é que foi perturbada por um sonho de monstro, de coruja noturna como já me disse uma vez. A hora é também equação: contagem das horas de sono, se é hora de acordar mesmo, ou se é hora de ficar, fazer estender o sono, aumentar a preguiça cair em sonho novamente. Acordar, posso tentar só eu, posso, preciso trabalhar (aquele tanto de coisas acumulado, a demanda constante), e arrisco 20 minutos nessa manhã silenciosa, quase segredo, só minha. 20 minutos às vezes me dão tempo para entrar, de novo, na trama do irresolvível (do que foi deixado na noite anterior, arquivos abertos, anotações esparsas). Ela acorda logo depois de mim, vem caminhando pessoa pequena, choraminga, mama no peito. Estamos juntas, colo e chamego. A contagem da hora enquanto olho para ela segue projetiva, planejando o dia por vir. Dia de quê? Dia de trabalho, dia de creche, dia de entrar na linha do tempo de fora, de um tempo grande e irresponsável com a nossa temporalidade pequena. I n t e r r o m p e r . Arriscar cortar e acelerar esse tempo da pessoa pequena, que não sabe das razões, e as quais lhe explico. É hora disso, de creche e de trabalho, de meias e de roupas, qual é o clima lá fora, de fazer caber o que se precisa na mochila, de conferir as coisas todas na bolsa, se há bilhete da creche, é fraldas que pedem. Preparar o café, alimentar, conversas, rimos juntas, nem sempre dá tempo. Não estamos sós, o pai está junto, dividimos tarefas, criamos um sistema. Temos, afinal, nossa estratégia (temos?). As manhãs são organizadas num tempo conciso, e tempo de despedida: deixo-a no portãozinho de sua sala catterpillar, abandonada saio eu para meu playground da vida adulta, vida essa a ser reinventada.

Eu sou daquelas que se permitiu estranhar ao máximo na gravidez, deslocar e ouvir as sensações de um corpo hormonoturbinado, hipersexualizado, e ao mesmo tempo que sensível e frágil, forte e mutante… E me permiti continuar, da maneira como a própria biologia do corpo continua, um estado de mutabilidade que se estende após parir, percebendo incorporar-se em todo espaço atmosférico da casa a mudança molecular da chegada de uma nova pessoa. Como é que o mundo a recebe? Eu e seu pai acendemos a atenção extrema na sua dimensão pequena, na sua delicadeza e imprevisibilidade, uma atenção que é sobretudo i n t u i ç ã o. Com isso adentramos também a comunidade-de-todas-as-cores de pais e mães que se constitui ao nosso redor, e da qual passamos a ser como membros natos, aprendizes e consultores de amigos que vão entrando naquela mesma sensibilidade do mundo, eles também tiveram bebê. Na dimensão pequena e misteriosa, silenciosa e sem linguagem (são grunidos) daquele corpo e realidade pequenos, de potência molecular, o que vai ficando estranho, mesmo, são as relações de um “mundo adulto”. Contrastam as tarefas, as responsabilidades (?), os compromissos, os conteúdos. Saltam aos olhos os sistemas de valoracão, comunicação e significação que criamos. Com a chegada de uma filha, de um filho, o mundo que reproduzimos nos percalços da vida como naturalidade primeira (ainda que cada um na sua cartografia particular), é subitamente freado, cortado, interrompido.

((… Essa semana que entra o Davi faz 38 semanas. Já tem o mesmo TEMPO do lado de fora que passou do lado de dentro. A questão do tempo é muito doida, porque eu não sinto que desacelerou… Eu me sinto teletransportada mesmo pra uma outra temporalidade, específica dessa nossa díade. Claro que a Hannah já ta maiorzinha, e a gente acaba tendo que fazer um rehab pra voltar pro tempo da vida da onde a gente foi radicalmente arrancada quando nasce a cria. Mas tenho a impressão de que nunca vou conseguir voltar com o CORPO todo…))

Algumas questões, dúvidas e enfrentamentos aparecem. Algumas que assumimos, e outras que não assumimos (para si ou para os outros ao nosso redor). A direção de nossos movimentos no mundo anda tão concentrada nos fazeres do trabalho que viver com a filha e cuidá-la contrasta imediatamente com o que quer que tenhamos hoje por trabalho, visto que, num crescente, o trabalho se mistura ao tempo da vida. Trabalho imaterial, trabalho precário. Quando digo “trabalho” digo uma mistura de trabalho com militância, um tipo de produtividade que toma conta dos nossos dias, noites, afetos, emoções, e que gera renda, mas que muitas vezes também não gera renda. Quando falamos em trabalho hoje em dia necessariamente falamos em precariedade, visto que o emprego formal está em franca derrocada, e muitas vezes os contratos temporários, na verdade, se fazem valer da não regulação trabalhista, sem a garantia de muitos direitos, ou seja, na precariedade. Então aqui devemos levar em conta – para equacionar com os pensamentos sobre c u i d a d o que seguem no texto – sob quais condições trabalhamos, se somos auto empregados, se temos emprego, se somos bem remunerados, se esperamos um aumento, se tememos a demissão, se criamos uma instituição!

Quero embarcar aqui brevemente em duas questões ligadas a trabalho x cuidado. A primeira questão a perda da autonomia do tempo, ou de um tipo de tempo (tempo produtivo?), e a politização do trabalho doméstico; a segunda a perda da certeza, de algumas convicções em relação ao que se faz (relacionadas mais ou menos à noção de trabalho, militância, etc). No final faço um ensejo de como podemos pensar no cuidado dos adultos eles mesmos, aqueles que tiveram filhos, e como pensar na participação dessa assuntação nos nossos vocabulários cotidianos, e na reprodução de nós mesmos, de nós mesmos mais ou menos como movimento.
A perda do tempo, ou a ideia de…

Embarcando na primeira questão: a dúvida se coloca assim: se tomar conta da filha toma meu tempo, como não opor a filha ao trabalho (aquilo que eu faço para ganhar dinheiro) visto que preciso seguir trabalhando? Essa oposição é simples demais, contudo, sobretudo porque ela separa em duas dinâmicas o trabalho e a vida com a filha. A inversão dessa oposição é exatamente a raiz da mudança… Visto que o tempo do cuidado da filha pode ser intensivamente lento, prazeiroso e imprevisível, posso pensar então que o tempo, no cuidado, é mais de ordem subjetiva. ( ( É porque o tempo é lento que essa entrada-vocábulo s a i demasiado devagar? ) ) E o tempo da produtividade do trabalho seria aquele que eu posso controlar? Mais objetivo? Será? Ou doutra maneira, da produção do tempo. Ou seja, o tempo atomizado da criança sempre vai contrastar e empurrar a ideia de produtividade requerida pelo tempo do capital, tempo esse que por sua vez, ao requerer uma implicação da vida num tempo produtivo, ele mesmo atomizado, por sua vez, com a precariedade das condições de trabalho e pelas novas condições do trabalho imaterial que se torna toda uma questão de tempos descontínuos em cooperações virtuais. Cruzamentos… Ramificações… Desvios… Impossibilidades?

((… Nem sei se eu vou ter TEMPO de te responder como eu gostaria. Acabei de conseguir colocar o tourinho pra dormir (depois de 1h e 30), que agora resiste resiste, quer ganhar o mundo. Uma das primeiras impressões que tive foi que o Davi era um marcador temporal implacável, trazendo ele pra esse tempo cotidiano capitalista. Mas ele relativiza esse tempo o tempo todo, porque simultaneamente me leva pra eras e eras ancestrais (primitivas, genealógicas, genéticas…) e de salto eu já estou no futuro. Nesse primeiro ano, me pego vendo fotos antigas dos meus avós, tios, pais, minhas e de meus primos, e vejo o quanto de vida a nossa linhagem já caminhou, até chega no Davi, que carrega com ele coisas deles (e dos bisos, tataravós, etc) que eu desconheço. E pisco, ele já está com 8 meses, engatinhando, ontem mesmo tava com cólica, chorando… E começo a sentir nostalgia dele como tá agora. Agora sinto saudade dele como tá agora, porque não é possível frear esse tempo com ele, que às vezes passa arrastado, mas é implacavelmente veloz, que é próprio do espaço de maternar. Centrífugo e centrípeto. Tempo de átimo e não de cronos…))
… E o trabalho doméstico

Essa questão do tempo traz consigo outra: a possibilidade de que uma remuneração – o fragmentário e temporalizado salário-maternidade, o salário social ou renda mínima, ou a bolsa família por exemplo – seja o reconhecimento da função social do cuidar, o que se chama mundialmente de “trabalho doméstico.”A remuneração é um aspecto político da economia do cuidado, imprescindível numa realidade contemporânea em que o cuidado ainda não tem o espaço devido junto aos fluxos econômicos da sociedade.

Essa remuneração não dá conta, contudo, e talvez nunca vai dar, de aquietar a questão da percepção e da produção do tempo no cuidado. Me refiro aqui não tanto ao cuidado como profissão, o trabalho feito pelos cuidadores, mas à percepção do cuidado como ocupação primeira dos pais e mães, nas relações familais. Será que receber algum tipo de remuneração (uma licença maternidade, por exemplo) acomoda de alguma maneira, por um tempo, o conflito que uma mãe e um pai podem passar, ao liberar seu tempo (de trabalho) para a rotina de intuição e cuidado?

Observando o aspecto subjetivo do tempo do cuidado, cada mãe e cada pai tem que encontrar a maneira suave como a passagem de um a outro se dá (do cuidado ao trabalho), a transição de cuidadores primários de seus filhos para (voltarem a ser) trabalhadores num mercado (ainda que precário) de trabalho. Há diferenças nessas temporalidades, e elas dependem também da situação econômica de cada configuração familiar.

(( … (pausa pra dar de mamar) Toda vez que eu tô acoplada no Davi, ou ele em mim, especialmente quando fico com o corpo ali e a cabeça nas trocentas outras coisas do tempo cronológico ordinário, eu escuto a voz que ele ainda não tem me dizendo: “vem mamãe, se entrega aqui comigo, olha como é gostoso e quentinho aqui, fica aqui, aqui e agora.” … Voltei a pensar no corpo. Nessa temporalidade outra da existência infante que em três meses cronológicos tem um corpo que dobra de tamanho (nunca mais nosso corpo passa por isso, olha só a Alice aí). Não é à toa que esse momento é muito aflitivo para as recém paridas, ainda com vestígios da temporalidade ordinária nesse corpo materno ainda deformado. Esse: “vem pro átimo que eu quero mamar, mamar e crescer, mamar sem pensar no amanhã, no ontem, ai que delícia”. … E esse discurso patriarcal, que separa a temporalidade trazida pela criança do corpo da mãe e do mundo ordinário, de onde ele vem? porque? pra que serve? … (Ai, tenho que fazer a mochila do Davi pra sair, tomar banho, separar a comida, etc) … ))

Então há a licença maternidade, e quando há, o trabalho doméstico remunerado regulamentados diferentemente em cada país (ou ausentes, no caso do segundo, no Brasil), e há tambem o trabalho “de rua”, o trabalho como instrumento/ferramenta de sociabilidade e participação em redes, relações, contratos, vínculos…

Mundialmente o cuidado é atividade relegada às mulheres, na grande maioria dos casos. Seja o cuidado dentro de relações parentais ou o cuidado como trabalho (cuidadores, enfermeiros, professoras, cuidadoras de crianças…). (Lá em casa é um pouco diferente…, ou seja viemos construindo uma relação em que o cuidar é tarefa amorosa de ambos, pai e mãe, mas isso é outro parêntese.)

O cuidado, a criação dos filhos, foi politizada enquanto trabalho por lutas feministas que apontaram: se o capitalismo se beneficia desse cuidado, dessa procriação e consequente criação, visto que eles serão também “força-trabalho”, o cuidado das filhas e dos filhos é também trabalho, porém não remunerado! Das lutas feministas por uma valoração social do cuidado surgem as demandas por uma remuneração direta, estatal e por benefícios por se ter filhos, e ponto. Aqui gostaria de separar o benefício da licença maternidade (depende no Brasil de contribuições já feitas à previdência social) por um (projeto de) salário social (não deveria depender de contribuições já feitas, *) ou ainda do benefício por filho. Na Inglaterra por exemplo o benefício por filho se chama “child care credit”, e pode ser recebido até 18 anos de idade. O benefício se destina à provisão de bens que a criança demande na sua pequena existência, até sua puberdade e adolescência, comida, fraldas, roupas, remédios, lazeres, …

No Brasil o Bolsa Família foi criado com o objetivo de beneficiar famílias abaixo do nível de pobreza e em nível de pobreza, cuja renda familiar não ultrapasse os R$ 154,00 por pessoa, provendo recursos mínimos para garantir a alimentação dessas famílias. (**) A contrapartida é que todas as crianças da família em idade escolar devam estar matriculadas e frequentando escola, recebam vacinação, tenham acompanhamento médico até 7 anos de idade, não trabalhem, e no caso de grávidas que façam acompanhamento pré-natal.

Ainda que uma perspectiva feminista não seja muito conferida nos benefícios do Bolsa Família, acredito que o programa deva ser compreendido também na perspectiva da luta das mulheres (e dos cuidadores), visto que é um benefício que incrementa a renda da família para cuidar dos seus filhos. Segundo pesquisas recentes, o programa tem caráter emancipatório para muitas delas, que se sentem encorajadas a se libertarem da trama familiar, quando poderiam estar presas em relações que já não querem (muitas mulheres se divorciam, por exemplo), e são estimuladas a cuidarem mais de si. Ou seja, nos casos em que o homem representa a fonte de renda financeira primária, o incremento do Bolsa Família encoraja as mulheres a tomarem o rumo de suas vidas, quando antes poderiam depender da confusa relação amorosa misturada à dependência econômica. (***) Em outras situações, em que o homem já não está mais em casa complementando renda (porque muitos se separam e vivem sozinhos, sem a responsabilidade de cuidar das filhos e dos filhos) as mulheres também são beneficiadas pelo recurso, mas o valor do benefício não remunera, de nenhuma maneira, o tempo do cuidado dedicado por elas no crescimento dos filhos, visto que é um valor extremamente baixo, e não configura uma renda mínima.

A maternidade nos seus começos, é assistida, para aquelas que tem emprego formal, por uma curta licença maternidade de quatro meses. (O pai tem licença de uma semana!) Esse seria o tempo para cuidar de nossos filhos, sem trabalhar, e preparar-se para a dolorosa transição de terceirizar o cuidado! Os quatro meses, por sua vez, não fecham com os seis meses de amamentação exclusiva recomendados pelo Ministério da Saúde. O que não faz muito sentido… Mas muitas mulheres conseguem negociar isso com seus empregadores, e ficam mais tempo em casa. Mas muitas, muitas mudam de planos… E colocam em questão o modelo anterior de trabalho que tinham.

((… Fiquei pensando também na questão do corpo nesse jogo, que é o espaço onde ele é jogado. Logo que a gente começou a passar os perrengues de cólica (acho que bem antes até, quando tava contraindo, antes de parir, e tive que ficar de repouso) eu me liguei que a dor trazia o corpo pra esse agora infinito. Lembrei da Laura Gutman nesse livro “Amor o dominación, los estragos del patriarcado”. … Não sei bem se o trabalho não está englobado numa estratégia maior de dominação dos corpos, que evita mesmo o contato intimo entre pais e filhos (e velhos moribundos, e doentes, e loucos). Evita a presença deles no espaço cotidiano. Segrega. Fico pensando naquelas imagens antigas, algumas até recentes, das mães trabalhando com seus filhos pendurados, de boa, lavando, colhendo, plantando, aboiando… Acho que o corpo desvitalizado e congelado, moldado para um trabalho cada vez mais estático (no corpo, não na cabeça) é incompatível com a potência de vida de uma criança. Taí as milhões de vistas da galinha pintadinha comemorando não sei quantas crianças quietinhas. (****) O trabalho estático no corpo, mas não na mente, também é incompatível com essa temporalidade átmica da criança, sem passado nem futuro. pra gente é muito dfícil morar nesse eterno agora. … ))

Ora, sabemos que a falta de benefício para o cuidado ou a precária remuneração é reflexo de uma série de modos culturais arraigados e naturalizados, que se baseiam na divisão dos tipos de trabalho que homens e mulheres fazem (e o salários diferentes que recebem), na crença da naturalidade do cuidado como coisa feminina. Esse ponto é um dos mais importantes para as lutas pela legalização do aborto, visto que socialmente o cuidado é entendido como uma continuidade inquestionável do ato de gestar e parir. Quantas de nós já abortaram ou evitaram ter filhos pelo temor de não conseguir conciliar o cuidado com o trabalho? Pelo medo de não conseguir ou por não conseguir mesmo ter condições financeiras de cuidar de uma criança? Por temer reproduzir a sociedade machista enquanto tal em que o cuidado está relegado determinantemente às mulheres, e que portanto deixa a mulher em condições de trabalho menos favoráveis? Aliás: quantos abortos mal sucedidos são necessários para mudar as condições sociais do abortar? Para legalizar o aborto?

Silvia Federici, feminista italiana conta como as feministas dos anos 70 apreenderam que compreender o “trabalho reprodutivo” no regime da exploração (o capitalismo acumula também em cima disso) permitiu o reconhecimento de uma luta comum das mulheres:

“Uma vez vimos que ao invés de reproduzir vida nós estávamos expandindo a acumulação capitalista e começamos a definir trabalho reprodutivo como trabalho para o capital, nós também abrimos a possibilidade de um processo de recomposição entre as mulheres.” (*****)

O cuidado reconhecido como um trabalho, como uma ocupação que serve à sua maneira à complexidade de um sistema de produção/reprodução, acaba se tornando o t e r r e n o d e l u t a , usando as palavras de Federici, e esse terreno de luta se estende às vidas daqueles que cuidamos.

Ela pergunta: como lutar sem entrar em conflito com aqueles que amamos? (Falarei disso mais adiante.)

A perda do sentido. Havia um antes?

A outra coisa que pega que é: faz sentido? Fazer as coisas da maneira como se fazia?

Desde o começo eu resisti em não colocar a filha de um lado (a vida com ela, o cuidado), e o trabalho. Isso quer dizer que quando eu pensava em trabalho eu pensava em algum tipo de movimento, de fazer, que, menos do que pudesse incluí-la, pudesse se fazer c o m ela. Ou seja, em que ela estivesse presente, conferindo sentido àquilo. Mas não sabia bem o que nem como… Organizar uma residência-projeto para artistas-etc com filhos? Talvez…

É claro que quando se começa a questionar isso, se está questionando o que é que entendemos por trabalho e com o que é que nos comprometemos em um mundo capitalista-produtivista em que cada vez mais o produzir toma espaço. Então arrisco uma definição que expressa, na verdade, a raiz precária da minha experiência de trabalho: qualquer atividade que traga remuneração, não necessariamente que se tenha como profissão, que construa um comprometimento com algo que é ligado ao que se compreende como trabalho em si, mas que se conecta numa linhagem de ações e regularidades, que mantém aceso um certo vínculo, seja com as instituições com as quais nos associamos, as parcerias, a participação na atualidadede de um debate, os discursos e posições que adotamos. Pois bem, na mudança de sentido das coisas, é essa ideia de r e g u l a r i d a d e que se quebra quando um filho ou filha nasce (ou mais de um!). Essa é definitivamente uma quebra no sentido de um fazer que poderia estar muitas vezes automatizado, tecnicizado, dessubjetivado. Vou deixar umas perguntas soltas, sobre o sentido do trabalho: para quem e para o quê eu trabalhava? fazia? me mexia antes?; ou com que velocidade, com que dedicação, com que efetividade, com quanto de mim?…

A noção de continuidade é quebrada pois a temporalidade do filho é caoticamente outra, e isso reflete os sentidos que ela ou ele forçosamente vem sacudir. Cada um ou uma de nós percebe isso distintamente, claro. Para quem se conhece de um jeito, a quebra vem destituir uma série de convicções. Acredito que essa quebra acontece porque o que aparece é i n t u i ç ã o como a chave do cuidado. A intuição como um tipo de escuta, um cuidar com, que requer tempo para entender modos e ritmos… Um imensamente-cuidado, essa aproximação-atenção e fusão quase-orgânica e por vezes quase-estrangeira que descobrimos quase-inata em nós, que tiramos da caixola, da cartola, que vestimos quando seguramos a filha no colo, quando sentimos seu cheiro que ativa nossos hormônios mamários. Para outros essa quebra não acontece tão claramente, e a filha ou filho entra mais rapidamente na composição de um mundo mais perto eu diria de um “como era, como eu fazia”. Ou é que aquela zona de atravessamento gravídico eu diria, de intensidades hormonais, dura menos e é enquadrada também na temporalidade da produção. (Ai!) Cada uma de nós vive uma configuração diferente, ora similar, de retorno ao ritmo de trabalho depois de parir.

A filha o filho ao desprogramarem o sentido das coisas, pedindo intuição e cuidado, demandam também o descobrir, o inventar, o brincar, … virar ao avesso, sujar, desfazer, rimar, mimar, molhar, montar, desmontar, destruir… E olhar bem bem de perto. Estressar ou intensificar o tempo do cuidado me parece que é parte da resistência ao nivelamento de nossas ações num tempo único e produtivista, é parte da pluralização dos tempos, e da recomposição, ou de uma inclusão, como diz Federici, na luta por uma libertação das amarras do mundo pré-concebido da produtividade do capital do qual as filhas e os filhos não precisam automaticamente fazer parte… Um arco grande, mas vamos lá.

((…E sim, acho que isso tudo tem muito a ver com o cuidado. E acho que trazer tudo isso de volta pro corpo, prum corpo hiperafetado e atravessado pela temporalidade infante é sim revolucionário. A micro-revolução que eu escolhi me engajar. … No Mignolo(******) que eu te mandei, a simples existência infante já é por si só uma desobediência epistêmica radical.))

… uma desobediência epistêmica radical
Individualidade e reprodução do movimento

Voltando ao relato da minha experiência, nos primeiros tempos em que a coisa foi pegando, em que já não podia procrastinar o fato de que estava na hora de trabalhar (de recuperar algo dessas linhas de continuidade, de vínculo, que nunca se perderam, mas que definitivamente se enfraqueceram, era hora de fazer dinheiro) eu produzia uma espécie de estresse incontrolável. O estresse vinha de tentar evitar a sensação de negar, por não poder estar com a filha por ter que trabalhar, como se eu tivesse negando ela mesma… O estresse e o sofrimento que surgiu teve que assumir uma individualidade necessária. Afinal, na interrupção de um modo de ser em vias de recomposição nessa transmutação para uma mãe-que-trabalha ficamos pescando sapo, comendo mosca, movendo-se sem saber por onde. Aqui apareceu para mim algo importante: a recomposição da invidualidade faz parte da maternidade/paternidade, visto que não é um abandono da filha, e é o cuidado em si de si, que tampouco é diretamente um “voltar ao que se era” (como eu resisto a essa imagem!).

Exemplo disso: em Londres a artista Andrea Francke transformou, como parte de seu trabalho final de Mestrado, a galeria da faculdade de artes em uma creche. Um espaço aberto portanto aos pais e às crianças. Queria eu que essa creche seguisse disponível, como espaço de pesquisa e de produção, em que potencialmente pudéssemos compartilhar nossas questões maternais? (E materiais!) Preocupação: ainda que radical a proposta, eu não poderia, por exemplo ancorar naquela vivência a produção do que me cabe agora, minha responsabilidade, minha auto-exploração, minha “contribuição ao conhecimento”, meu doutorado. Eles dependem de um certo isolamento, e dessa ressignificação-recomposição em curso.

H a n n a h. Eu só escrevo porque ela está longe de mim, na creche, outro lado da rua (ou ali dormindo, sono bom de criança a crescer). Se escrevo junto com ela escrevo outro texto. Fazemos desenhos e desenhos, bolinhas, pontinhos, perseguimos linhas, e around e around. Se faço carinha, ela já completa com pernas e braços, e boca, se não tiver. E cabelos, como dizcabêêêlo!

Quando escrevo, escrevo junto com ela aqui, como parte da minha realidade, claro. Quero escrever junto com ela, com ela em mim, mas temo que escrevo para o mundo adulto, esse mundo estranho, esse mundo cuja seriedade me faz rir. A filha vem de um hiperíntimo, um hiperjunto, e ajuda a estranhar o mundo, com o qual copulo depois; mundo com o qual me identifico, e que também desejo. Voltando àquela recomposição, percebo que o cuidado, portanto, não é só com a filha, mas com a mãe e o pai nessa nova passagem de mundo, com o mundo que se recompõe. Da mãe se fala bastante da depressão pós-parto, esse mistério que não está nas calçadas, que é calcado aos espaços íntimos, e ao indizível, visto que se torna indecifrável se não assumimos a dimensão mágica e espiritual da maternidade. Mas e depois, como cuidamos uns dos outros, pais, mães, crianças? Seguimos… A economia do cuidado na luz do dia se torna um diagrama a puxar linhas e linhas de subjetivação, friccionando superfícies de singularidade, abrindo companheirismos num comum (aquela comunidade imprevisível de pais e mães, e avós, e tios, e cuidadores, claro).

A gravidez, assim como a maternidade e a paternidade são, afinal, coisas ordinárias. O comum, por sua vez, não pode ser o comum só-dos-que-tem-filho. Como informar, como passar, como recompor o mundo dos-que-tem-filho com o mundo dos-que-não-tem? Será que é dessa maneira que o problema se coloca? Ou é mais como fala Federici, uma capacidade de colocar em linhas de libertação e composição social um modo de reprodução social (todo movimento precisa encontrar a maneira de se reproduzir, diz ela). Politizar a maternidade e a paternidade, nesse sentido, é um trabalho vocabular, depende de muita conversa, depende de muita troca. Depende de abrir frentes com o mundos alheios vizinhos, as outras forma de copular e de familiar, de lesbicar, de transversalizar e de multiplicar. Depende de fazer cuidar, de fazer pensar no cuidar. Mas como? Num estado de mundo em que tudo se acelera, não sei se é possível não se posicionar e dizer, olha, a temporalidade aqui é outra. E não só tempo linear (como dito antes, para que não sejamos escravos da produtividade), mas a função ou a significação. A filha muda molecularmente o mundo porque ela está junto também nessa nova forma de ver o mundo, ela é processo estético, estetizante, ela desacelera a produtividade de um por fazer, e repolizita outras urgências. Quando se diz que é tempo de cuidado, é tempo de para endereçar (e soltar) uma produção do mundo. Um chamado a recompor a estética de um mundo (político, sobretudo), do que faz parte fazer/trazer esse texto para cá: vocabular, brincar, vocavulvar, vocavular.

Vou buscá-la no final da tarde na creche. Meu corpo atravessado pelas leituras, pelos mundos que me desvelam e me desconstroem, fica meio desconcertado. Acho que vivemos como pais uma constante reintegração e desintegração da identidade… Na porosidade dos movimentos adultos que me constituem, o movimento de ir buscá-la acopla e desacopla pedaços sem nunca dar tempo de lavar tim tim por tim tim cada anotação feita. O dia faz-se fragmentado. O corpo também. E de alguma maneira essa emoção de tê-la silencia tantos outros atravessamentos! Já não me importo. Descortina-se de novo o mundo adulto… Encontro seu corpo pequeno e aparentemente frágil, ora mais feliz e suado, ora mais saudoso e manhoso. Ela me leva para o buraco do coelho (coisa que encontramos no gramado ao lado do jardim da creche). Enfia o pé no buraco. Eu evito não dizer o que me vem logo à boca: “cuidado com a cabeça do coelho!”, ela, afinal, não teme pisar nele ou numa minhoca. Ali mora a touperia, ela diz. Ela quer ver a toupeira! I wanna see the mole! E sorri.

Vou buscá-la no movimento integratório puzzle like que não consegue complementar uma coisa e outra, mas que vai me encontrando de novo com ela no caminho – eu me encontrando comigo e com ela – , diante de outras crianças, cuidores, pais. A filha puxa um fio terra-coração, e devires, e devires… Quantas das minhas inseguranças, das minhas dúvidas incompletas silenciam não porque perdem o sentido por completo, mas porque ganham outra configuração no cuidado que ela me traz, como parte da suavidade mesma de sua pequena existência?

 

 

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Notas:

(**) O programa Bolsa Família existe no Brasil há dez anos. Hoje em dia cerca de 20,6 bilhões (0,5% do PIB) de reais são pagos a 14,1 milhões de famílias (o Ministério do Desenvolvimento Social estima o benefício direto de cerca de 50 milhões de pessoas).

(***) Entrevista com Walkiria Leão Rego, que publicou um livro junto a Alesandro Pinzani sobre o Bolsa Família (“Vozes do Bolsa família”, 2013)

(****) http://vilamamifera.com/mamiferas/a-galinha-pintadinha-e-a-crianca-quietinha/

(*****) Silvia Federici, Precarious Labor: A Feminist Viewpoint.

(******) Walter D. Mignolo. Desobediência epistêmica. A opção decolonial e o significado da identidade em política.

Referências:

Federici, Silvia. Precarious Labor: A Feminist Viewpoint (2008). Variant e The Journal of Aesthetics and Protest. http://www.variant.org.uk/37_38texts/Variant37.html#L9

Federici, Silvia. Feminism And the Politics of the Commons. (2010) The Commoner.org

Hirata, Helena; Laborie, Françoise; le Doaré, Hélène; Senotier, Danièle. (org.) Dicionário Crítico do Feminismo. (2009)

La Célula Armada de Putas Histéricas. Primer comunicado de la Célula Armada de Putas Histéricas http://vimeo.com/91641696
https://www.diagonalperiodico.net/andalucia/23274-la-brigada-informacion-como-mortadelo-y-filemon.html

Precarias a La Deriva. A la deriva por los circuitos de la precariedad femenina. (2003) Madrid: Traficantes de Sueños

SOF – Sempreviva Organização Feminista, Cuidado, Trabalho e Autonomia das Mulheres (2010). Cadernos Semprevida.

 

// por Steffania Paola

Justiceiras do Capivari

(Capivari, distrito de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 1998)

 

Priscila  Silva, de 8 anos, desaparece a caminho da escola. Apesar dos apelos  constantes da família para que a polícia procurasse pela criança, nada é  feito. O pai de Priscila resolve então recorrer a Dona Ilda, liderança  comunitária e antiga moradora do bairro.

“Fui  procurar sozinha no mato… nos brejo… no caminho que ela passava pra  vim aqui pra estudar… aí acabei achando ela morta no mato, já  decompondo a menininha pequena, magrinha. Peguei a menina lá no meio do  matagal e trouxe para a rua e aí chamei a polícia pra levar o corpo e  chamei a imprensa toda.”

Priscila foi violentada sexualmente e depois assassinada.

Após  esse caso, Dona Ilda resolve reunir mulheres para capinar ruas e roçar  os matagais próximos ao colégio, acreditando que essas ações poderiam  dificultar a ação de potenciais estupradores. Surge então as chamadas  “Justiceiras do Capivari”, lideradas por Dona Ilda, que depois passou a  ser chamada também de Ilda Furação ou Ilda do Facão, e com a missão de  proteger as mulheres do Capivari dos constantes casos de violência da  região.

Justiçamento contra o opressor/ Justiçamento como estratégia de defesa

Capivari, 1999:

Milene Souza de 8 anos é violentada e morta também a caminho do colégio.
Com  a morte de Milene, o grupo muda a sua forma de ação e reúne mais  mulheres. De 5, o grupo passa a contar com 20 mulheres, e assume uma  postura mais dura. Daquele momento em diante, as Justiceiras passam a  andar armadas com faca, facão, foice, espada e pedaços de pau. Queimam  mato, abrem caminhos e vigiam a região.

“Se  acontece alguma coisa a gente logo aparece. Uma liga pra outra, reúne,  junta tudo, foice, machado, enxada e vai atrás, prende, tortura e até  mata. Eles pergunta se mata eu falo que mata. Só não falo quem e quanto  já matamo. O trabalho das Justiceiras depois foi esse: levar criança pra  escola, limpar o matagal. Agora não que está tudo calmo e a gente não  tá vendo nada porque é férias nos colégio. Mas tá voltando e quando  volta você pode vim aqui e vai ver duas, três mulher nesses mato  limpando mas elas tão mais mesmo é vigiando as criança e vendo se tem  estranho na área.”

A  nova forma de ação, no entanto, funcionava mais como uma estratégia  para intimidar potenciais estupradores e homens que espancavam mulheres,  do que como possibilidade real de uso das armas. Dona Ilda acreditava  que para chamar a atenção tanto do povo da região, quanto da imprensa e do Estado, era necessário criar uma imagem das Justiceiras.

“Se eu apareço normal na imprensa igual você tá me vendo, preta, 1,60 m,  quem vai ligar? Agora armada com a foice e o facão e vestida de roupa  diferente, dá Ibope. […] de verdade no início eu tava revoltada e queria matar mesmo, mas depois que a gente resolveu tudo eu esfriei o sangue e voltei ter a ideia de andar certo para não perder o nosso  direito. De verdade matar… eu não vejo como sujar a mão com sangue de  bandido. Deus fez, Deus leva.”

Do  surgimento do grupo em diante, a região do Capivari sofre mudanças na  sua dinâmica, muitas delas provocadas por Dona Ilda e as Justiceiras. O  número de casos de violência contra a mulher cai substancialmente no  período de atuação do grupo. O delegado da 60º DP, de Campos Elíseos,  revelou que antes de 1998 os casos de violência sexual e assassinatos de  crianças e mulheres em Capivari eram pelos menos dois a cada mês e que  entre 1998 e 2004 os casos baixaram praticamente para zero.

Além  das armas, todas as Justiceiras andavam com lenços cobrindo o rosto,  sendo Dona Ilda a mulher mais conhecida do grupo. Em razão dessa  exposição, ela acaba sofrendo, a princípio sozinha, as consequências do  seu protagonismo.

Com  o crescimento demográfico do Capivari, novas pessoas ocupam o bairro e o  tráfico de drogas começa a atuar na região. Apesar de Dona Ilda manter  uma relação amistosa com os novos ocupantes – “Eu por exemplo não sou  amiga nem inimiga” – a disputa territorial se torna inevitável.

Quando  tentou proteger o que ela chamava de “sua gente inocente” do “envolvimento com as drogas”, e impedir a ação dos traficantes nas ruas  próximas ao colégio, Dona Ilda recebeu sua primeira ameaça de morte,  feita por outra mulher, a traficante Merinália de Oliveira, a “Índia”,  que dominava o tráfico na favela “Vai quem quer”.

Capivari,  fevereiro de 2005:

Maria de Jesus, de 73 anos, desaparecida.
Dona  Ilda sai em busca do seu corpo e o encontra em um matagal. Mais tarde, é  sabido que Maria de Jesus foi morta por um traficante que lhe devia  dinheiro e, ao ser cobrado, ele a matou. O caso é relatado à Polícia e a  partir de então Dona Ilda passa a ser vista  pelo tráfico como  delatora.

Capivari, 9 de março de 2005:

Dona Ilda do Prado Lameu, 58 anos, é assassinada no portão de casa com 5 tiros.

O  grupo das Justiceiras do Capivari se desfaz. Muitas mulheres do grupo e  também parentes de Dona Ilda fogem do Capivari temendo represálias.

*Tomei  conhecimento da história das Justiceiras do Capivari através de uma das  integrantes do coletivo PaguFunk, um grupo autônomo de mulheres  funkeiras que transmite através da cultura funk uma mensagem feminista  sobre o cotidiano das mulheres nas favelas e periferias. Depois iniciei  uma pesquisa pessoal sobre grupos de resistência formados por mulheres.  Nesse processo (em curso) conheci o trabalho do Linderval, pesquisador  que estudou profundamente líderes comunitários e líderes comunitárias da  Baixada Fluminense.

Todas  as falas citadas no meu texto foram retiradas de entrevistas que ele  fez com Dona Ilda e que foram publicadas no artigo abaixo indicado. As  pesquisas de Linderval foram também a principal fonte para a escrita do  meu texto.

Referências:

MONTEIRO, Linderval Augusto. “A trajetória de Ilda do Prado Lameu: dinamismo popular e  cidadania em uma periferia do Rio de Janeiro”. Disponível em: https://e.sarava.org/donailda.
Curta-metragem sobre “As Justiceiras do Capivari”: Disponível em: http://youtu.be/49pUMIPABBY.

PaguFunk: Disponível em: https://soundcloud.com/pagufunk.

 vocabpol em 05122014 entradas, movimento, oficina

Lugar

// por Inês Nin

1. se existe alto e baixo, direito e esquerdo, frente e verso, existe um lugar. 2. se onde havia uma coisa e existe agora uma outra, existe um lugar. 3. se há um corpo, há um lugar. 4. se cada corpo está situado em um lugar próprio, existe um lugar.

[sim, aristóteles. recorrer às bases, mesmo que as sobrescreva depois.]

artefato. povo construído. lugar errante.

de imensidão só lhe restam as botas, de tantas viagens por aí que gastas as lembranças fico, paro com o intuito de me recompor.

imaginar um terreno que não seja matéria de composição mas desastre, atraso, atalhos mesmos que furtivos só guardo em memória. as técnicas de sobrevivência variam tanto. o lido com os lugares, o tratamento, o embate cotidiano e as danças.

é de madeira o chão, telhado inclinado, construído com as próprias mãos. prever o mínimo de interferência no ambiente, de verdade. floresta quando penetra a casa e transforma ela mesma em um labiríntico desafio que traz conforto, diverte. põe para secar ao sol o que sobrou de antemão, enche de água o que se quer cultivar. observa.

para os estoicos, o problema do lugar está ligado ao problema do movimento. um lugar é concebido pela transição dos corpos que por ele passam. tal como em aristóteles.

( )

delimitações. um lugar é um intervalo? uma posição.

 

territorialistas dirão, este é o meu lugar. distinção por entraves, catracas, limites desenvolvidos arbitrariamente, gerando a noção de propriedade. lugar tem dono?

diria a terra. um pedaço de terra, um lugar. matéria pura, compreendida em consonância com o que há em volta. música. estrutura, movimentos sistêmicos que cumprem rotas em variação, caminhos, danos, elevação. cíclicas voltagens, antes mesmo de construir.

do limite surge o referencial. talvez, de um terreno preciso. para ele são traçadas rotas, mapas, são criados mitos, memórias. formam-se famílias, redes e articulações organizadas por sistemas de parentesco, continuidades. talvez então isso: ao invés de cercas, noções de assimilação em grupo. contiguidades, modos de fazer e habitar.

um dia, emitem um protocolo, pisam em qualquer noção de hábito, mesmo cuidados. alheios são aqueles, os que não decidem os rumos do lugar. montantes outorgam demolição do terreno, inventam de substituir as construções. dizem: “é a modernidade!”. despropositadas ferraduras, racham o chão.

os sem medo, enfrentam. “é por uma noção de pertencimento, pelo direito que chutam a pontapés. e onde construir, então?” umas vidas. uns sossegos. uns hábitos, que elétricos, flutuam. atravessam paredes, rompem territórios, emanando flores por onde passam.

 vocabpol em 04122014 entradas, escrita, livro, transformação, verbete, vocábulo

Escrever

/ por Cristina Ribas

 

Primeiro

Escrever me alegra. (Suely Rolnik)

Escrever me assusta. Eu diria também, assim como disse Suely que a alegra. E também me alegra, claro. Mas me assusta. Escrever complexifica, expõe, radicaliza, nomadiza linhas de pensamento. Sensação e pensamento. Pensamento e impressão. Expressão. A escrita é assustadora.

Quando digo da escrita, essa que assusta, digo da escrita como ato primário, como tradução humanotécnica, como capacidade de cognição. Como quando desenhava sem desenhar por 40 segundos uma natureza morta (e nem natureza, nem morta) sobre o papel branco, com lápis. Escrever como ato primário é trabalhar numa fidelização das linhas-pensamento, das suas linhas de vôo, do pensamento a nu, da sua diagramática. Escrever é um ato que se descola desse corpo, que provoca uma separação, ou uma tradução. Para uns está mais perto (escrita mais perto da noção de si). Para outros está mais longe (escrita como ato árduo, de algo que não se consolida como prática de si).

É belo também quando Suely Rolnik diz que há uma cartografia. Me refiro ao texto “Pensamento, corpo, devir” (1993). Ela fala da relação entre a escrita e uma cartografia do pensamento, que o pensamento é uma espécie de cartografia conceitual cuja matéria prima são as marcas (aquilo que provoca mudanças na nossa compreensão de si, de um “eu sou assim”, afetado por marcas desviantes de si que trazem o “outro em nós”…) e que funciona como universo de referência dos modos de existência que vamos criando, trazendo figuras de um devir. Ela diz também que é na escrita que o pensamento rende o mais que pode, visto que ela convoca o trabalho do pensamento, e lhe traz maior acuidade e consistência. Ela diz que escrever tem o poder de ampliar a escuta e suas reverberações, pois escrever é traçar um devir. Ao escrever colocamos as marcas em estado de proliferação. É nesse ponto que ela diz: escrever me alegra.

Essa escrita também provoca, ainda que seja desviante, uma consignação, uma conjugação de mundo.

 

Segundo

A escrita, doutra maneira, está em códigos. Em algoritmos (1). Em data bases. There is a form of writing in each and cada coisa. Uma escrita como codificação. Como segredo. Construída por sistemas, ou construtora de sistemas de escrita. Por trás de cada dígito, um cálculo algorítmico, de combinações, e de números. Essa escrita, essa aqui que se lê, é transcrição pura. Porque existe o escrever em código que permitir escrever em letras. Há uma mecanização ou uma automação da escrita, senão, ela não se faz. Outrossim, de um lado avesso, a escrita é toda uma elipse. Ela esconde e revela, revela assim como essa que se transcreve nos seus olhos: uma complexidade.

A escrita passa pelo legível, e portanto, também ilegível. A escrita impregna pela presença dessa palavra de poder metafísico as tantas suas formas. Há um trabalho de fundo da escrita. Há um trabalho de produção de verdade, como disse, Peter Pál Pélbart: “a verdade da relação, não a relatividade do verdadeiro.” Essa escrita seria aquela que chamo agora de escrita política. Escrita impregnada da construção de uma verdade que sabe da sua temporalidade.

Por isso penso agora numa escrita-streaming, de puro fluxo, de passagem, de pura atualização. Nas escritas feitas pelo agregador digital Agrega Lá (2), nos diversos grupos de midia livre que surgiram, como o Coletivo Mariachi (3), o RionaRua (4) e a Mídia Ninja (5). Há diferença em como cada grupo se organiza, e há processos de apropriação e reapropriação das escritas-streaming também. O streaming, para aqueles que estranham a sua presença aqui na entrada da escrita, é a passagem, como um fluxo aberto, de uma informação-vídeo ou áudio ao vivo pela trama da web… São escritas em formas alogarítmicas, pixeladas ou chiadas, que são feitas a partir de muitos pontos de vista diferentes, que dão vazão aos protestos do Brasil | brasiu | Brazis, multiplicando a sobrecodificação da informação da grande mídia e suas narrativas limitadas. Essas escritas se relacionam diretamente com o movimento, são o movimento ele mesmo, e não uma representação dele, tal como já aconteceu na Praça Tahrir no Egito, no Parque Gezi e na Praça Taksim em Istambul, na Praça do Sol em Madrid.

Algumas escritas se perdem no fluxo ao vivo que as sustenta, outras são recapturadas e constróem ferramentas de proteção, como as muitas câmeras de um mesmo evento que revelam, a nu, que se uma bomba saiu da mão de um homem, ele não era, definitivamente, aquele homem que a justiça ou a polícia acusaram. A forma como a mídia construiu o caso do acidente que teve por consequência a morte de Santiago Andrade, o cinegrafista da Band, levou à prisão de Caio Silva e Fábio Raposo, ainda presos. A Rede Globo trabalhou junto com a Polícia construindo a criminalização de ambos, tentando associar o estouro de um rojão ao então Deputado Estadual Marcelo Freixo e o movimento Black Bloc. O que se provou uma grande farsa, também porque o advogado inicialmente arranjado para os acusados, Jonas Tadeu, era o mesmo advogado de um miliciano da Baixada Fluminense – Natalino Guimarães, preso em 2008. Jonas Tadeu abandonou o caso. #liberdadeparatodosospresospoliticos

A escrita como movimento, que é fluxo puro, é também a escrita que incorpora o #hashtag os encadeamentos da escrita @twitter. São as cartografias reais dos sms cruzando a Espanha e construindo o 15M. São as leituras diagnósticas dos fluxos de informação, sintomatológicas de tomadas de posição sociais, como aquelas visualizadas por softwares e codificadas por Fabio Malini e seus alunos na UFES. (6) Tais escritas-signo de tom ágil e virtual, são escritas muitas vezes dessubjetivadas, que viajam e informam, que sobretudo convocam (essa é sua verdade), convocam subir um assunto, um evento, uma luta, no trend. São escritas políticas de uma verdade absurda, monstruosa. Expostas em chocante escala continental… Significam doutro lado, e voltam ao emissor, e transmitem-se a outros. Escritas que provocam, escritas que informam, escritas que transportam, escritas que se perdem.

(((a Sementeira num carrinho de supermercado))) (((o Rio na Rua e a narração de voz forte da voz da Clara))) ((descrever essa iniciativa)) (((O radio como escrita))) (((O streaming-escrita))) (((a reapropriação da escrita na Midia Ninja))) (((o arquipélago de escritas ))) (((a propriedade das escritas)))

 

Terceiro

A escrita, de alguma maneira, é a c r e n ç a desse vocabulinário. Escrita que é feita tanto de algoritmos legíveis e de imagens algorítmicas. A escrita é solicitada nesse projeto como processo estético, processo no qual nos envolvemos a codificar nossas ideias, mas não sem repensá-las, sem colocá-las novamente no confronto da experiência. Por isso a escrita aqui é crença de um análise, de uma análise de nossos vocabulários, de nossas posições, de nossas miscigenações.

Tomar a escrita depois de uma semana de conversas num Abril de Rio de Janeiro (((em chamas, e gás lacrimogênio))) é ao mesmo tempo instrumento de memória, mas também de novidade, abrindo o vocabulinário como espaço relacional (com a escrita, com a experiência e com o pensamento, com o leitor por vir), social (não escrevemos sozinhos, ainda que quando escrevemos possamos estar sozinhos), de estranhamento (sem fidelização àquele evento). A escrita que configura o Vocabulário político é como um prolongamento e uma complexificação daquelas conversas, de tudo o que elencamos como importante para constar aqui, nessa publicação sobre o sobre os fluxos entre os processos políticos e os processos estéticos. Quando digo crença, digo crença como aposta, como ferramenta que se coloca na dobra lash registro/legível, e provocadora de efeitos e funções. Efeitos e funções de escrita, efeitos e funções estéticas, efeitos e funções políticas.

Quarto

A escrita tem uma topologia. Ela acontece aqui, registro na superfície desse papel. Ela se dobra num prolongamento, como dito, sem fidelidade (não é essa verdade). A escrita pode ser pensada como uma das topologias, no sentido de provocar lugar (relacionar a lugar, da Inês) e provocar transformação (relacionar a trans), nos vocabulários vivos, nos vocabulários falados e também silenciados. A escrita pode portanto revelar, como forma de topologia privilegiada (porque permanece – como a tinta da ‘caneta arquivística’ que encontrei no Capacete) aquilo que não se disse ou que passou não visto, em dado lugar, em dada situação. A escrita, em seu potencial expressivo, trabalha como uma máquina de  expressão. (((Máquina porque não trabalha sozinha, trabalha com outras máquinas.))) Há uma provocação de “agenciamentos coletivos de enunciação”, fazendo falar para além do grupo e para além do isolamento individual. Como agenciamento, a escrita acontece criando partilhas ou estranhamentos (((uma escuta? ou violência?))). A escrita como máquina de expressão, como agenciamento coletivo de enuncição, chama a falar mais alto, solicita um ato de conjugação com o mundo, com os mundos. A escrita, portanto, como coisa que é capaz de provoca devires, disse Suely. Uma escrita fora de si. Afinal é preciso desnaturalizar e desapropriar-se das maneiras do escrever, assim como do ler, para reinventar. E definitivamente escrever mais, e ler mais e mais…
ler mais e mais… ler mais e mais… ler mais e mais… ler mais e mais… ler mais e mais…

 

((((referência))))

Rolnik, S. “Pensamento, corpo, devir”, 1993

 

Notas

(1) Algoritmo: combinações ou cálculos numéricos que inscrevem operações funcionais.

(2) Agrega.la http://www.agrega.la. Portal de coletivos de midia, grande parte surgiu no ciclo das manifestações a partir  de Junho 2013. A Nova Democracia, Carranca, CMI, Coletivo Mariachi, Comitê Popular, Linha de Frente Audiovisual, Maré Vive, MIC, Ninja, Ocupa Alemão, Ocupa Câmara Rio, Ocupa Copa, Ocupa Rio, Olhar Independente, Projetação, Rio na Rua, Vinhetando, Vírus Planetário,Voz das Ruas.

(3) Coletivo Mariachi https://www.youtube.com/user/coletivomariachi

(4) Rio na Rua. http://rionarua.org/

(5)  Midia Ninja. https://ninja.oximity.com/org/NINJA-1

(6)  Labic. http://www.labic.net/

 vocabpol em 03122014 entradas

Manifestações

manifestações > travesti

// por Inês Nin

02/07/2013

travesti é amor. aqui, outros nomes, uma apropriação. mídia travesti de asinhas de fora, se faz de amiga, quer assaltar as máscaras de multidão. violência de estado corrompeu nossas ruas. contação de alertas, gente no chão: pensamento difuso, escreve-se para fagocitar os termos, desentranhar os caminhos por entre as nervuras do acontecimento.

derivaceleste:

saber emaranhar os acasos nas estranhas lágrimas provocadas pelos anteriores.

o medo, a sede, a luta e o sossego se contaminam uns aos outros até não existirem mais.

não há permutas, marmotas, percepções inertes ou qualquer outro sentido além daquele visível, ainda que tão turvo, paspalho:

serão neves, tudo ao inverso. ou talvez não, coisadura. não serão fascistas a nos buscar nas casas, senhora no batente, senhor na multidão (infame ilógica inerte que perdura). enxame de refugiados na tijuca, naquela rua perto do estádio, encurralados no próprio quintal de casa. ninguém entende o assunto em voga, há tanta confusão.

de voz em voz uns tentam pintar as cores todas de verde e amarelo, as janelas de inferno, as lutas de brincadeira e então desvalorizam o todo, a própria multidão. em processos, recessos e mistérios, porque são muitos e mil-ações.

não tem jeito de cessar o grito porque vem de longe, de muitos, muitos anos, adormecido que estava nos pulmões de tantos, expelido enfim por aqueles que puderam se manter vivos de alguma forma. e não é caso de impeachment, sem surto. isso é tudo lorota turva, e muito simples, um caso de apropriação:

(explicaremos primeiro a oposição)

reacionário (adj.) é aquele que é contrário a quaisquer mudanças (sociais e/ou políticas); que se opõe à democracia; antidemocrático. sinônimos: antidemocrático, antiliberal, retrógrado e ultraconservador.

(nada como um be-a-bá das curvas)

tampouco nos iludamos com o liberal (s.m.), isto é, aquele que é partidário da liberdade em matéria política ou econômica. no plano econômico, é um perspicaz enganador, astuto defensor das desigualdades e do dinheiro no bolso dos indivíduos (sic) de bem.

nenhum deles representa um perímetro maior que o próprio umbigo. talvez, e digo sem muita convicção, sejam capazes de estender algum apreço a familiares e uns poucos semelhantes, pelo puro louvor conferido à família e à propriedade, ambas instituições tão intimamente conectadas. compartilham regras, egoísmos e convenções.

campo minado! acabaram nossos montes, direi. poderia ser – a crise já se estende por tanto tempo que mal é possível morar na cidade, e então lembramos de tantos problemas interestaduais e tão mais antigos: a polícia militar.

(militar é um órgão capaz de eliminar todos os outros, e, por isso mesmo, deve ter sua existência sumariamente questionada)

e então os bondes, as cores. os trios elétricos que se não estivessem cercados de tantos políciais (e nunca entenderemos tantos policiais) seriam carnavalescos, polivalentes quaisquer-uns com tanto orgulho de enfim existir. sua manifestação nada mais é que uma afirmação da própria existência. decidem ter voz. depois de tanto tempo que não se sabe ao certo de crença forçação velada em crer num sistema de números, morfemas, eixos temáticos e não se sabe ao certo e nunca em quem votar – requisito infame de uma política de delegações.

hannah arendt diz que quando há autoridade, não há ação política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou pequeno grupo que governa. pois então expliquemos, para fazer frente os confusos, gente que confunde totalitarismo com revolução (soa surpreendente, mas vive-se num mundo de disfarces, e nem é tão nova a ideia)

desacredita no sistema em ritmo contagiante de alienação // os espaços abertos são ricos em propostas e experimentos // há aqueles (e são muitos) que procuram lideranças/desejam lideranças/querem depor o lugar // me pergunto se precisamos de lideranças em qualquer lugar // o plural é importante // não se trata de verde e amarelo // bandeiras vermelhas representam grandes articulações coletivas por direitos sociais, nunca se esqueça disso // mídia golpista, que termo sensacional // veja, minhas máscaras foram usadas por outrem // ela foi às ruas e não sabia porquê // os discursos mudaram e continuou seguindo a marcha // mudaram o rumo e alguém ficou?

aqueles que pintam de branco são aqueles mesmos que desejarão eliminar todos os que não puderem se vestir da mesma cor.

você quer ser eliminado? ou espera obter uma fatia do bolo?

política de recortes, de cartas marcadas, de confusão. publicidade, política de imagens, vote no cara legal! os códigos binários e seus comandantes esperam somente respostas de sim-ou-não, são surdos de formação. no ministério das cartas altas, há interfaces e intermeios, ideias que protegem outras, surtações sim, mas muita blindagem, tanto de gentes quanto de informação. as curvas se contaminam, se misturam, não existe pureza no sistema: política de disputas, muita gana, fica um lembrete: a política é dura, mas é negociação. é perigo quando não se definem os temas, fica azul de imensidão

(sabe, aquele que preenche as arestas, cega no horizonte e se deixa engolir no sifão)

baderna é nossa aliada mais vasta, sim, posto que: vândalos são os policiais e seus mandantes. mas se nos chamam todos vândalos, se inserem vândalos entre nós, se vandalismo é a última moda da passeata multicolor da esquina, se qualquer passante é um vândalo em potencial, se o opressor é quem tem razão, se dão vazão às armas, tratam rua de cartazes como batalha campal, em suma, se nos bloqueiam, e atacam, seja nas ruas, em casa, em todo lugar, se não pode tanta coisa, se a fifa pode, se os donos podem, se a tevê pode, se o jornal quer convencer a sua mãe do nosso vandalismo, então sim, somos todos vândalos, vândalos venceremos, vândalismo vão de caminhar na rua, correr do gás, cair no chão..

curioso notar que as bandeiras do começo eram pelo pleno direito de circular – de andar! pois se cortam as pernas e cobram caro pelas próteses, cobrem tudo de cimento e aqui só passa carro blindado!

que espaço é esse forjado sobre tanta argamassa de minérios e gente que veio porque acredita que precisa trabalhar, que não come se não tiver sangue pra derramar, massa de manobra e ahhh.

faltam dores cores palavras pra dizer o porque dos tormentos, a coisa é tudo menos plana, vigente mas cheia dos interstícios estelares e sem muitas rotas de fuga (antes houvesse – a rota maior pede uma passagem de volta, pagamento no cartão, endividamento)

roda de chão sem voltagem, rebobina tudo, eu não quero levar porrada de policial.

acordar com helicóptero, quintal de casa como campo de batalha.

celebridades felizes na televisão, todos canarinhos.

esporte é travestimento de exploração.

Mulheres-violência

//  Juliana Dorneles

Pós Pornô e Feminismo
A pornografia era vista com desconfiança no vocabulário feminista (assim como toda a indústria da prostituição), considerada como signo de sujeição e reiteração da mulher como objeto sexual – única e exclusivamente para o prazer masculino. A mulher mesmo, ficava fora desse gozo.

Além disso, as imagens criam e mantém o imaginário sobre um tipo de comportamento sexual desejável. O apelo erótico do pornô invade nosso imaginário e a imagem pornográfica se conecta e alimenta nosso desejo. Isso é bem grave em se tratando de uma revolução dos costumes, que justamente quer se livrar dos padrões colonizados desse imaginário.

Mas não é negando o pornô que se muda o pornô. É fazendo o pornô que se gosta. Então, pernas abertas para o fluxo sangüíneo das atitudes divertidas.

O pós pornô é uma atitude a partir da constatação da colonização do imaginário sexual pelos padrões da dominação masculina. Se existe uma representação colonizada da sexualidade que não favorece a alegria e o imaginário das mulheres, a alternativa para isso é criar outros imaginários, dar chance de estabelecer outros mundos para a sexualidade, onde as fronteiras entre os gêneros se borram e os papéis clássicos homem/mulher ficam difusos.

Há histórias quentes, inversão dos papéis, cenas de mutilação, sexo hardcore entre mulheres, skirt, crossdressing, sexualidade queer e tantas outras cenas que surgem para encantar, chocar, ou divertir, mirando a invasão da nossa cultura sexual.

Sim, se trata de uma outra cultura sexual, de um desejo esta cada vez mais múltiplo; e cada vez encontrando mais fontes de ampliação onde nem mais os órgãos genitais são uma fronteira. Gozar pode ser uma experiência mais ampla, pode incluir a natureza, pode incluir um corpo andrógino e machucado, pode incluir carros (J. G. Ballard) ou paisagens sonoras. Tudo é sexo, mais escancarado ou menos, criando suas alianças e derivas em imagens, performances, relacionamentos. Sexualidade como criação artística.

Vertente crítica-criativa; que remete a uma crise da sexualidade normativa; e uma necessidade de encontrar novos corpos e imagens para outros corpos e mundos. Sua violência e virulência, alguns abordam, poderia ser lida como a violência necessária para a escuta daquilo que até então (até a irrupção deste ato estrondoso/performático) não existia no imaginário do mundo. Violência do grito que quebra as taças de cristal. Faz alguma coisa girar. Quebra padrões do imaginário – quebra que nem sempre acontece sem dor.

Violentas são as esperas, as crenças, o condeno no otimismo do triunfo, a prisão no armário fundo do eu.

Uma bofetada é bem mais importante do que dez lições, compreende-se muito mais rápido, sobretudo quando é uma mãozinha macia da mulher que nos dá a lição.

(Severino/Gregório. A Vênus das Peles)

 

Violentas
Este vocábulo poderia ser também poderosas, escandalosas e incômodas.
Palavra de ostentação do poder.
Mas fiquemos com violentas.
Porque existe um escândalo violento do poder. Mesmo nos velados, a portas fechadas, por tras dos muros. Nem sempre as coisas precisam se dar a ver para serem escandalosas. E se a primeira vista qualificar a violência como escandalosa poderia parecer um juízo comum (que ruim que é ser brabo, furioso, violento); veremos como, na operação inversa, este escândalo está diretamente ligado a força da violência.
Existe uma força na violência, uma energia. A que quebra um osso e a que quebra um padrão. O que salva a violência é que ela é um limite, um esgotamento, um desabafo. Tem nela um sem palavras, são atos, manifesto daquilo que é insuportável. E se faz entender assim, na marra. Parece feio ou estranho, machuca. mas é ela lá gritando como Rosalyn no deserto (a personagem de Marylin Monroe no filme “Os Desajustados” -1960- de Arthur Miller).
Sim, falamos dessa violência que irrompe, do incontrolável e incômodo; ao mesmo tempo completamente necessário. Faz alguma coisa mexer, um escândalo da raiva que realiza e expressa, criando uma brecha no espaço-tempo repressor e omisso. É um tipo mulher de poder: a violência uterina, tão sedutora quanto avessa a razão. Escândalo do poder feminino.

Pensemos neste filme e nesta cena específica. São três homens – a possessão masculina (dinheiro, força física, audácia). Violência primária como modo de lidar com o selvagem. E a mulher, corpo todo compaixão e angústia, incômodo. Onde não há mais palavras possíveis, advém o urro das entranhas. Longe, num solo assistido por estes tres homens mortos, Rosalyn lança uma maldição. O grito onde não há mais negociação possível. Elas são todas loucas, diz o mais triste deles. Loucas, furiosas, e poderosas; de palavras ingratas aos concílios e conciliações. Um poder da fúria se emege contra a própria violência, se diria. Um levante das entranhas em estado de miséria, dissecadas pela angústia das restrições (impostas ou auto impostas). Levante da arma do corpo berrante, o insuportável. Que madeixas poderiam ficar no lugar? Se o selvagem da natureza é domesticado e transformado em carne morta de cavalo, aparece uma mulher que instiga a horda masculina pelos instintos (reprodução! Reprodução!) e ganha a cumplicidade dos audaciosos. É o terceiro homem – do tipo que não gosta de ver a carne morta, pois admira seus adversários.
Que forças loucas e sensuais são necessárias para fazer sair o torpor do estabelecido. O incômodo.

É a violência crua e contratual de algumas práticas masoquistas; é a violência cruel do sádico, para colocar algo em movimento. Tudo sempre ligado a uma boa dose de sedução. A crueza é muito mais misteriosamente sedutora; ao contrário da maquiagem, que envaidece o jogo do poder.

A esses cabem os arregaços, de boca aberta, entrante. Mas também na boca fechada, miudeza, não se regram essas partes. Lugares sem senão, pouco acolhedores do consolo do eu. Um desfazer, numa espécie de geração açoitada na carne, violenta, vivificada pelas cicatrizes cravadas no lugar das angústias malvadas, pequenizantes, solícitas por restrição. De pequenices nos enche o pesadelo de restrições. De apavorados imploramos um perdão que já bem sabemos não existe. E por que se insiste?

Violentas são as esperas, as esperanças, as crenças, o otimismo do triunfo, da condenação da prisão no armário escuro do indivíduo. Violento é o sentimento de idiotice. Seja lá por que trevas for. E de noite dormido ia para o colchão de molas soltas que pertencia ao: vovô, papai, mamãe, professor, chefe, proprietário, todos cheios de respeitáveis.

Mas a carne viva não se apequena. Tem nela um corpo do exposto, atuado. Esse sim da fantasia, do se engraçar de um teatro erótico, angustiado, cômico tal como a morte comendo o cu da insensatez.

E lá no longe se viam cinzas, enchamadas, proclamadas de autonomia no céu, visitantes mais próxima de Deus. Vai lá a cinza, anaeróbica, virótica, realidade sem ar. Daí começamos a balbuciar, a boca solta, osso quebrado cambaleante, sem firmeza qualquer, se minhocando, sem se colunar. Matéria de dentes frouxos que morde um suspiro – se vai; gargareja uma canção … oh como fui besta, pra que cantar se o som não se propaga sem ar?

Os afetos de domínio tem queixo duro, mas não há nada que se necessite dominar.

Nunca se precisa de calma, se precisa de volatilidade.

 

// Beatriz Preciado

Nós dizemos revolução

“ (…) Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do abatedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais…”

Acesse o texto completo aqui

 vocabpol em 30112014 entradas, mulheres, oficina, política, trans, transformação

Mulheres Violência

// por Juliana Dornelles

 

Este vocábulo poderia ser também poderosas, escandalosas e incômodas.

Palavra de ostentação do poder.

Mas fiquemos com violentas.
Porque existe um escândalo violento do poder. Mesmo nos velados, a portas fechadas, por tras dos muros. Nem sempre as coisas precisam se dar a ver para serem escandalosas. E se a primeira vista qualificar a violência como escandalosa poderia parecer um juízo comum (que ruim que é ser brabo, furioso, violento); veremos como, na operação inversa, este escândalo está diretamente ligado a força da violência.
Existe uma força na violência, uma energia. A que quebra um osso e a que quebra um padrão. O que salva a violência é que ela é um limite, um esgotamento, um desabafo. Tem nela um sem palavras, são atos, manifesto daquilo que é insuportável. E se faz entender assim, na marra. Parece feio ou estranho, machuca. mas é ela lá gritando como Rosalyn no deserto (a personagem de Marylin Monroe no filme “Os Desajustados” – 1960 – de Arthur Miller).
Sim, falamos dessa violência que irrompe, do incontrolável e incômodo; ao mesmo tempo completamente necessário. Faz alguma coisa mexer, um escândalo da raiva que realiza e expressa, criando uma brecha no espaço-tempo repressor e omisso. É um tipo mulher de poder: a violência uterina, tão sedutora quanto avessa a razão. Escândalo do poder feminino.

Pensemos neste filme e nesta cena específica. São três homens – a possessão masculina (dinheiro, força física, audácia). Violência primária como modo de lidar com o selvagem. E a mulher, corpo todo compaixão e angústia, incômodo. Onde não há mais palavras possíveis, advém o urro das entranhas. Longe, num solo assistido por estes tres homens mortos, Rosalyn lança uma maldição. O grito onde não há mais negociação possível. Elas são todas loucas, diz o mais triste deles. Loucas, furiosas, e poderosas; de palavras ingratas aos concílios e conciliações. Um poder da fúria se emege contra a própria violência, se diria. Um levante das entranhas em estado de miséria, dissecadas pela angústia das restrições (impostas ou auto impostas). Levante da arma do corpo berrante, o insuportável. Que madeixas poderiam ficar no lugar? Se o selvagem da natureza é domesticado e transformado em carne morta de cavalo, aparece uma mulher que instiga a horda masculina pelos instintos (reprodução! Reprodução!) e ganha a cumplicidade dos audaciosos. É o terceiro homem – do tipo que não gosta de ver a carne morta, pois admira seus adversários.
Que forças loucas e sensuais são necessárias para fazer sair o torpor do estabelecido. O incômodo.

É a violência crua e contratual de algumas práticas masoquistas; é a violência cruel do sádico, para colocar algo em movimento. Tudo sempre ligado a uma boa dose de sedução. A crueza é muito mais misteriosamente sedutora; ao contrário da maquiagem, que envaidece o jogo do poder.

A esses cabem os arregaços, de boca aberta, entrante. Mas também na boca fechada, miudeza, não se regram essas partes. Lugares sem senão, pouco acolhedores do consolo do eu. Um desfazer, numa espécie de geração açoitada na carne, violenta, vivificada pelas cicatrizes cravadas no lugar das angústias malvadas, pequenizantes, solícitas por restrição. De pequenices nos enche o pesadelo de restrições. De apavorados imploramos um perdão que já bem sabemos não existe. E por que se insiste?

Violentas são as esperas, as esperanças, as crenças, o otimismo do triunfo, da condenação da prisão no armário escuro do indivíduo. Violento é o sentimento de idiotice. Seja lá por que trevas for. E de noite dormido ia para o colchão de molas soltas que pertencia ao: vovô, papai, mamãe, professor, chefe, proprietário, todos cheios de respeitáveis.

Mas a carne viva não se apequena. Tem nela um corpo do exposto, atuado. Esse sim da fantasia, do se engraçar de um teatro erótico, angustiado, cômico tal como a morte comendo o cu da insensatez.

E lá no longe se viam cinzas, enchamadas, proclamadas de autonomia no céu, visitantes mais próxima de Deus. Vai lá a cinza, anaeróbica, virótica, realidade sem ar. Daí começamos a balbuciar, a boca solta, osso quebrado cambaleante, sem firmeza qualquer, se minhocando, sem se colunar. Matéria de dentes frouxos que morde um suspiro – se vai; gargareja uma canção … oh como fui besta, pra que cantar se o som não se propaga sem ar?

Os afetos de domínio tem queixo duro, mas não há nada que se necessite dominar.

Nunca se precisa de calma, se precisa de volatilidade.

 

// por Beatriz Preciado

“ (…) Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do abatedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais…”

“Nós dizemos revolução”
http://www.uninomade.org/nos-dizemos-revolucao/

// por Juliana Dorneles

Violência domesticidade selvageria cavalos mulheres escândalo histeria muros

Vocabulinário estético em possessos políticos

ou de quantos jogos as palavras podem comportar.

A cena: Marylin Monroe, gritando no deserto: http://www.youtube.com/watch?v=gXHhy4c4UZw. O filme: Os desajustados. Tres homens – a possessão masculina (dinheiro, força física, audácia). Violência como modo de lidar com o selvagem. A mulher, corpo todo compaixão e angústia. Onde não há mais palavras possíveis, advém o urro das entranhas. Longe, num solo assistido por estes “tres homens mortos”, ela lança uma maldição. Grito, onde não há mais negociação possível. “Elas são todas loucas”, diz o mais triste deles. Loucura, terrorismo, violência também: à impossibilidade da palavra, tão caro aos concílios, às conciliações. Contra quem? Contra a própria violência, se diria. Levante das entranhas em estado de miséria, dissecadas pela angústia das restrições (impostas ou auto impostas). Levante da arma do corpo berrante, o insuportável. Que madeixas poderiam ficar no lugar? Se a selvageria da natureza atormenta os homens de forma que a única alternativa é domesticá-la (ou transformá-la em carne morta), aparece uma mulher que instiga a horda pelos instintos (reprodução! Reprodução!) e ganha a cumplicidade dos audaciosos. Eles nem sempre gostam de ver a carne morta, pois admiram o combate da vida. Enfim, de que forma nos tornamos tolos sem saber, e que forças loucas e sensuais são necessárias para fazer sair o torpor do estabelecido.

É a violência crua e contratual de algumas práticas masoquistas; é a violência cruel do sádico, para colocar algo em movimento. Tudo sempre ligado a uma boa dose de sedução. A crueza é muito mais misteriosamente sedutora; ao contrário da maquiagem, que envaidece o jogo do poder.

Nos cabem os arregaços, de boca aberta, entrante. Mas também na boca fechada, miudeza, não se regram essas partes. Lugares sem senão, pouco acolhedores do consolo do eu. Um desfazer, numa espécie de geração açoitada na carne, violenta, vivificada pelas cicatrizes cravadas no lugar das angústias malvadas, pequenizantes, solícitas por restrição. De pequenices nos enche o pesadelo de restrições. De apavorados imploramos um perdão que já bem sabemos não existe. E por que se insiste?

Violentas são as esperas, as esperanças, as crenças, o otimismo do triunfo, da condenação da prisão no armário escuro do indivíduo. Violento é o sentimento de idiotice. Seja lá por que trevas for. E de noite dormido ia para o colchão de molas soltas que pertencia ao: vovô, papai, mamãe, professor, chefe, proprietário, todos cheios de respeitáveis.

Mas a carne viva não se apequena. Tem nela um corpo do exposto, atuado. Esse sim da fantasia, do se engraçar de um teatro erótico, angustiado. Cômico é a morte comendo o cu da insensatez.

Dá tudo no mesmo, não é estar? E lá no longe se viam cinzas, enchamadas, proclamadas de autonomia no céu, visitantes mais próxima de Deus. Vai lá a cinza, anaeróbica, virótica, realidade sem ar. Daí começamos a balbuciar, a boca solta, osso quebrado cambaleante, sem firmeza qualquer, se minhocando, sem se colunar. Matéria de dentes frouxos que morde um suspiro – se vai; gargareja uma canção … oh como fui besta, pra que cantar se o som não se propaga sem ar?

Os afetos de domínio tem queixo duro, mas não há nada que se necessite dominar.

Nunca se precisa de calma, se precisa de volatilidade.

E sobre os muros (… ver Muro)

 vocabpol em 29112014 entradas

Muro

// Juliana Dorneles

 
O muro é aquela parede de concreto no meio da cidade. Vertical, reto, sólido, alto. Um muro alto não permite que se enxergue o que tem do outro lado. Quando são feitos de madeira se chamam cercas. Se o muro é baixo, muitas pessoas vão sentar nele e ele vai servir como descanso, mas isso não acontece muito, pois a maioria dos muros é bem alto. Acredito que na cidade ninguém gosta de ver gente sentada.
Os muros cercam propriedades ou dividem terras. O muro bloqueia a entrada para algum lugar, ou direciona esta estrada para um ponto específico. É preciso pedir autorização para passar, ou subir/escalar o muro, ou ainda fura-lo para ver o que tem do outro lado. Por isso o muro tem um quê de separatista: fique com suas regras aí desse lado que eu fico com as minhas desse outro. Mas, claro, sempre tem gente que fica em cima do muro.
O muro também serve para proteger propriedades; e tem o lado de dentro da propriedade que pertence aos proprietários; e eles manejam do jeito que quiserem; e tem a parte de fora da propriedade, que é público. Nesta parte de fora acontece todo tipo de coisas, como desenhos, propaganda, cartazes, espera, sexo, projeção, apoio.
O muro então, na parte que cabe o contato com o público, vem sendo usado de maneira livre. O muro é um banner natural da cidade. Muitas pessoas se importam com o que se coloca nos muros, mas o muro mesmo parece bem indiferente a isso. Os muros em geral são bem simpáticos.
O muro é uma transposição muito forte do concreto físico para a ideia abstrata. Sua solidez material marca fisicamente um espaço mental. A ideia da demarcação do espaço se concretiza na instalação de um muro. E a ideia aceita e manifesta o físico e vice versa. E ambos parecem cair juntos também, embora cada um tenha seu tempo. Foi assim que caiu o Muro de Berlim.
A permanência dos muros na nossa cultura é bem simbólica; a altura dele revela o quanto se tem a esconder e/ou temer.

No território dos cavalos de hipismo também existem muros. São feitos de madeira em módulos, imitando um muro sólido verdadeiro. O bom é que é apenas uma imitação; e se o cavalo bate neste obstáculo, ele não sai ferido. É um muro possível de ser transposto por um cavalo. É um muro de brincadeira e, no entanto, um obstáculo a ser levado a sério.
Eis aqui o vídeo de uma amazona batendo o recorde de salto ao Muro em estilo amazona (montada de lado).

competicaohipica

 vocabpol em 28112014 entradas, oficina