// por Cristina Ribas
Brasil | brasiu | Brazis
Um Brasil? Não, não tem um só. À distância também são muitos. Há camadas de intensidade e de profundidade. Cada um tem um Brasil projetado, cartografia projetiva, e um Brasil radicalizado, conhecido, pé na terra. Tem gente que tem um Brasil urbano, do asfalto do metro a metro. Outros têm um Brasil de interior, de procurar cachoeira, curva e plano inclinado. Tem gente que tem Brasil pra fora, que vive fora dele e que o alimenta como se alimenta passarinho na gaiola. Tem gente que vive fora dele, porém dele nunca saiu. Quem vem de fora e quer chegar no Brazil, esse encontra outro também. Quem escreve Brazil, já diz a que vem. brasiu menor tem também.
Brazil | brasiu | Brasis. Significações em disputa. Um sonho moderno não consumado. Por ninguém. Como querer consumar um projeto moderno, quando na verdade não há consumação que chegue? Quando a consumação é equação, valendo mais como instrumento de mais valia, de incitar a máquina produtivista, de fazê-la espremer a estômagos vazios algo que se toma por Crescimento? … Consumação de algo, que não se consuma, e Poder. Há um cansaço da repetição dessa diretiva. Há uma reclamação pela proliferação de sentidos desse Brasil. Não faz muito que novamente fomos tomados por uns afetos grandiosos e impossíveis de conter: palavra Crescimento. O crescimento do Brasil seria imagem mais poética se não fosse dolorosa.
Quem opera, incólume, os bits das máquinas desenvolvimentistas? E quantos bits. Quantas estatísticas por encima daqueles que recebem seja na perfuração do corpo a bala seja na destruição de seus modos de vida, camadas de concreto armado sobre suas terras? Afetos duros esses de fazer crescer e exportar a torto e a direito mais valia de nós: “Engenheiros, mais engenheiros!”, disse Dilma.
Protesto Indígena em Brasília. Foto: Mídia Ninja
Todo mundo que menciona – Brasil – , agencia, todo mundo que habita, mais também. Aqueles que o fazem, desde dentro, do brasiu pequeno, desses jeitos de fazer dessa terra, tem segredos. Porque é assim que se faz Brasil | brasiu | Brazis. De maneiras diferentes. O brasiu pequeno escapa pelos discursos ostentatórios e promissores, como se não ouvisse, pela sua preguiça mixta de resistência, o que dizem essas vozes robustas, que anunciam desmedidos roubos, que arrasam desmedida gente. brasiu no toque das coisas daqui na palma da mão, e entre mãos e batatas de pernas e escápulas, suor e sono sonâmbulos no transporte público, e frita quente o pastel e queima e refresca pela concessão diária dos pequenos prazeres e das pequenas curas. brasiu mamão formosa cresce no fundo do quintal de quem tem casa ou cresce na rachadura do concreto daquela pirambeira no Alemão. brasiu código pequeno de sabor gigantesco, bula de sobrevivência essa sua toda medicina. Camarão seco cruza o país, chega aqui perto, cozido bem cozido entrou no estômago com cheiro de jambu e tudo mais da alquimia do que eu não sabia. cheguei. brasiu inteiro. interno. como acordar as 5 da manhã.
Quando eu era criança cruzamos o país em um ônibus. Foram três ou quatro dias. Minha mãe nos levou para o Maranhão. Rio Grande do Sul—Maranhão. Vixe Maria. Mudança da paisagem, claro, nem posso relatar tudo. Buriticupu. Imperatriz. São Luis do Maranhão. Conheci Maria-do-socorro, a tia avó dos meus primos. Eu olhava pra ela, que era dona de farmácia, ou enfermeira, não sei, e pensava “que nome! Que nome!” Que apropriado era, ainda mais pra mim na minha cabeça de criança. Ela tinha todos os jeitos do cuidar. (infraestrutura) Maria-do-socorro me faz pensar hoje no brasiu das pequenas medicinas, das pequenas curas, dos sabores… num brasiu pequeno e íntimo, que vem pelo gesto de se aproximar, de saber e pela intimidade. Um brasiu hoje confrontado… Um brasiu com menos espaço pra ser antropofágico, e que vem sendo apressado…
Na escala nacional, qual seria nossa Maria-do-socorro? Como será que esse país-cuida-de-si? Parece que nas transições Brazil | brasiu | Brasis se precisa de várias Marias-do-socorro… a todo o tempo. Este vocábulo não é, contudo, mister nem em remédios, nem em análise política. É uma maneira de relatar uma percepção. Na memória do recente, no plano da política do estado, parece ser impossível não refletir o que se tem agora com o que se tinha antes, quando antes o plano do governo sustentava diferencialmente os fluxos do desejo dos movimentos e das singularidades. Na memória afetiva, é como se houvesse um rompimendo do humanismo escala um-pra-um no Lula dos seus começos (dos seus pequenos remédios!), que desapareceu sob as estatísticas Dílmicas grandiloquentes, visto que meio que de repente nos interpela com sua violência feminina de presidenta, não que não soubéssemos de sua inclinação, traindo em parte, para muitos de nós, sua própria história militante…
No governo anterior a esse que já se despede (provável…) muitos se ocuparam temporariamente em sustentar uma tradução de projeto e de escala, com capacidade, com manobra política. Quanto esforço, quanta inviabilidade. Parecia que havia uma certa pedagogia, ou o experimento de potencialidades que dependiam evidentemente de uma contaminação mais fresca entre práticas dos movimentos sociais, seus representantes e os conselhos criados na busca de aplicar metodologias territoriais, porventura radicais, sobre os mecanismos cansados da máquina estatal. O que poderia ser renovado nas linhas da produção, reprodução e mobilização social num projeto talvez inaugural de abertura democrática? Mas algo disso se perdeu, aos poucos, e bastante, e quase tudo.
Ouvi de Célio Turino uma vez que o estado que ele pensava e praticava era um “estado educador”, quando ele ainda estava no Cultura Viva. (E hoje ele faz crowdfunding para publicar seu livro sobre Pontos de Cultura?) O estado educador foi portanto sendo enxugado e desmelhorando numa versão mais efetivista, retirando gente mais do que incluindo nos programas de fomento à cultura pela remodelação ou orientação à economia criativa. Nos últimos anos vivemos, portanto, uma disputa mais dura de usos e significações da terra Brasil-Brazis, colocado entre o superavit da economia (mais precisamente das empresas privadas), e a criação de programas de distribuição de renda, ou o aumento de serviços e assistência por parte do governo federal que são determinantes no crescimento do país a partir da mobilização da economia de bens de consumo, do aumento do poder de compra, do Bolsa família, de dignidade, de casa própria, de acesso a estudo, bolsas de estudo, etc. “Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades.” (Cocco, 2013) A disputa entre dimensões de tamanha distância não é só por valores, mas é por posses, pela manutenção das classes sociais estratificadas por parte daqueles abastados, ou pela subida ou atravessamento delas, como têm desejado alguns fluxos do governo… Por tudo isso somos BRICs lá fora, de forma glamurosa mas, e aqui dentro? Ao passo que há uma inclusão na economia (a retirada da extrema pobreza) há ao mesmo tempo um crescer em bloco, ou seja, aquele abastado também está crescendo numa equação que afeta por demais o brasiu menor. É perceptível então que afeto/efeito desenvolvimentista se mantém por meio de um tônus que faz adoecer gente e mais gente de afetos moles, afetos frágeis. Pobres da periferia, corpos índios em suas casas, camponeses nas suas nesgas(*), modos de vida, nas suas matas. Nessa cena confusa entre a floresta e a barragem, o grande verde-amarelo que é vendido é um Brazil colonizado por si mesmo, pequeno império regional.
Agricultura familiar e de pequenos produtores corresponde à cerca de 70% da produção de alimentos no Brasil. (dados do Ipea)
Brazis. Tanta gente, tanta gente. Se mistura e se multiplica com capacidade de proliferação incontrolável. A escrita antropofágica de Giuseppe Cocco em “Mundobraz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil” (2009) marca uma nova maneira de pensar o Brasil. Brasil arrebatante, intensivo, recuperado nas suas forças antropológicas e, claro, antropofágicas. É a partir de uma ética da potência dos pobres, de linhagem negro-negriana (de Antonio Negri) que ele vai traçar a análise desses Brasis que sacodem a relação significação/valoração no modo produtivo do capitalismo contemporâneo e colocam a criação como valor. A proliferação de modos de vida nesses Brasis seria não um arquipélago de multiculturalismos como se pensa nos discursos da globalização, mas uma hibridação, miscigenações, ou seja, mundialismos. Capacidade de criação do mundo, seguindo o pensamento de Jean Luc Nancy. Na perspectiva do trabalho, isso significa uma capacidade inventiva das formas de trabalhar, nas variações da cooperação social e da produção de renda. O Brasil é para Cocco um híbrido complexo. E na luta política a radicalização da democracia é o grande desafio donde surge uma construção imanente, a sociedade como constituinte, como processo. Um nervosssssso*
O Brazil desenvolvimentista por sua vez, na minha parca percepção, convoca a entrar numa linha de produção que é mais ainda da ordem de uma auto-exploração (assim como do território), que cobra uma espécie de fidelidade, o comprometimento com aquele Crescimento. O que não parece estar em discussão, contudo é o modelo de desenvolvimento, um modelo que nos leva para a mesma falência ambiental e social que já vimos em tantos outros países desenvolvidos. O Brasil é formado, evidentemente, por todas as variações possíveis de forma de produtividade e lucro, o que lhe dá essa característica plural e complexa. E a precariedade que marca o trabalho na contemporaneidade não é uma característica apenas do Brasil ou dos países menos desenvolvidos. O ideal do emprego não seria, portanto, salvaguardar de um perigo, visto que a precarização se acentua mais ainda com o novo modelo de acumulação. O novo modelo, o capitalismo financeiro (ou financeirista), desloca o lucro da produtividade de bens propriamente ditos e acontece por meio do aumento da circulação, seja de informação, seja de saberes, de funções. Ou seja, há mais lucro quanto mais há de circulação da informação, e do valor que um produto agencia, por exemplo – imagem da publicidade ela mesma no mundo digital. Jean Baudrillard chama isso de “fim da referencialidade”. Franco (Bifo) Berardi fala em uma “autonomização do dinheiro”, que passa a circular por si, separado também da força-trabalho do trabalhador. O fim da referencialidade é também a des-papelização do dinheiro, que se soma à essa des-fisicalização do dinheiro relacionado tanto à força-trabalho como ao produto ele mesmo. Encurtando uma boa parte da história, o “crescimento econômico” hoje em dia é baseado também em estatísticas de aumento de poder de compra, ou capacidade de aquisição de crédito (dinheiro des-papelizado), e portanto, de endividamento. Não é à toa que para Maurizio Lazzarato na atualidade o homem e a mulher se tornam sujeitos “endividados”, ou seja, por mais que o lucro na dimensão mais abstrata do capital esteja desrefencializado, a dívida sempre será paga na medida do trabalho do corpo.
A chamada que faz o Estado para uma pactuação com o aumento da auto-exploração de cada um de nós sem uma radicalização da democracia, desenha um mapa total do território que passa por cima das diferenças que são constitutivas dos povos brasileiros. O enunciado do Crescimento pelo Poder do Estado tenta convocar uma simbiose, e de alguma maneira induzir à força, pela força da repressão. E não só aqui, o território Brasil-Brazil, na promessa do Crescimento que pode levar junto de si outros países latinos ou países do Sul mundial, se estende para Bolívia, Venezuela, Cuba, Argentina. Engole a África, velha mãe, e lhe provê recursos, tecnologia, mão de obra – caminhos de mão dupla da criação e da inclusão em uma economia.
Esse Brazil que reproduz dentro de suas tramas colonialismos cujas linhas de poder nunca sumiram, que os convoca desde a esquerda como a direita, de repente recebe um levante. (manifestações) Susto nos discursos do poder, susto nos discursos arraigados de que há um povo pacífico, que tudo assimila e que a tudo se adapta, que tudo digere – e até mesmo seus 5,2 litros individuais de agrotóxico por ano. 2013 um ano que marca um rompimento. O rompimento que diz um basta, que escancara a rebelião da periferia e que reclama no asfalto seus corpos sumidos na favela. Cadê o Amarildo? ((Anti herói anônimo)) Enquanto insurge um poder de ruas e de redes, os colonialismos, variando-se e confundindo-se em fascismos, militarismos e diabo a quatro se afirmam com mais força, instituindo um momento em que a violência passa a escancarar que esse é o último recurso do Poder. Repressão. Brasis em conflito, não um Brasil homogêneo, ele mesmo contra o Estado. Mas uma multiplicação, uma multifacetação da potência-criação-vida (potência concisa da vida cotidiana, assim pode ser tomada, como na palavra biopolítica), insurgindo e diferindo, debatendo suas significações, enfrentando de frente e de baixo as linhas visíveis e invisíveis de Crescimento, Poder e Repressão.
Pinheirinho, ninguém nunca viu. Saíram de foices, facões, capacetes, e barricada inventada, galão de óleo. Fogo. Potência rizomática pura, transversal, integração doutra ordem.
Rafael Braga Vieira condenado a 4 anos e 8 meses de prisão, sem crime qualquer, derivava pela rua, passou pela manifestação de 20 de Junho de 2013, ‘portava’ uma garrafa de pinho-sol, trabalhava com limpeza, quando foi preso.
Nos últimos anos o Brasil se transforma paulatinamente em um grande balcão de negócios, tornando-se uma espécie de teatro mambembe de mega eventos, Copa do Mundo, Olimpíadas e grandes outras vendas e espetáculos que deixam mais explícita a incongruência social da diretiva economicista. Brazil. Negócios de brasileiros com brazileiros, negócios de brasileiros com estrangeiros, negócios de extrangeiros com estrangeiros. O que sigifica então ser brasileiro por direito diante de uma semiotização máxima como tal, diante de um tipo de engajamento generalizante, macropolítico do tipo que o Crescimento e os megaeventos formalizam? Sendo o Brasil ele mesmo uma coisa trans, #só tem bicha nessa cidade!, transnational, e não dizente apenas dos processos internos do Brasil-no-meu-quintal, a que servem os discursos de Brasil? De uma Brasilianização? De brazilianismos? De a certain braziliannnessss? De Brasis? Esse é um tema que Cocco trata com profundidade em parte de Mundobraz, livro cuja extensão e complexidade trago apenas drops. Cocco recorta esse trecho de Paulo Arantes em “A fratura brasileira do mundo. Visões do laboratório brasileiro de mundialização” (2001):
“Ocorre que a tal ‘brasilianização’ do mundo (…) indica justamente a contaminação da polarização civilizada em andamento do núcleo orgânico do sistema pelo comportamento selvagem dos novos bárbaros das suas periferias internas, que se alastram propagando a incivilidade dos subdesenvolvidos, de sorte que a grande fratura passa a ser vista também como a que separa os que são capazes e os que não são capazes de policiar suas próprias pulsões. (…)”
O Brazil portanto não é só aqui, expresso no território geográfico mensurável. O Brazil se faz lá fora, também nos foras desse território. Desejo olhar, contudo, mais para esse brasiu menor, insurgente, esse da ordem dos bandos e dos bárbaros, que encanta pela capacidade de quebrar as representações totalizantes de um Brasil-estado, de sucumbir àquela semiotização máxima – Brazil=potência. São partes dele que se movem e desafiam as determinações da polarização, e bem por isso não é à toa que o que caracteriza essa brasilianização é a proliferação de modos produtivos, embrenhados de invenção, jeitinho, gambiarrice… sobrevivência. (hidrosolidariedade + etnoempoderamento)
O Brasil-Brazil como coisa vendável é uma malha flexível, serve a tantos usos quantos modos de vida habitam esse território. Por isso o Brasil nas suas variações enfrenta um conflito de representações, visto que aquilo que define esse território são os modos de vida e seus movimentos desgarrados, suas insurgências contra o poder repressivo, inflexões Brazis-brasiu. O brasiu de corpos vem sendo maltratado nas segregações do poder, julgado e excluído da sociedade de direitos, criminalizado tanto pela esquerda no poder e como pela direita no poder, pela criação de proibições, pelo achatamento da potência criativa que insurge nos protestos. O brasiu cabe dentro do Brazil (**), mas esse maior não cabe dentro do menor. Nos códigos de desenvolvimento financeirista, naquilo que tem direcionado a economia, se desvela que as linhas de sub // desenvolvimento não é que sejam incapazes de serem semiotizadas no progresso, no crescimento, na competitividade, … o Brazil mesmo é que não quer aceitar tanta diferença e portanto opera expulsando a rodo gente de centros urbanos, por exemplo, enquanto que políticas urbanas de planejamento mais cuidadosas poderiam ser implementadas; e o que falar da dizimação de muitos e muitos grupos de índios, expulsos de suas terras, … Sobra um brasiu menor onde só há resistência, um brasiu de pobrezas que são o oposto daquela pobreza descrita logo nacional: “País rico é um pais sem pobreza”.
O brasiu das diferenças, das aldeias de índios urbanos que segundo alguns não parecem índios, ou que se tornaram índios, ou de rolezinhos de jovens negros de periferia nos shopping centers só acirra mais a crise da representação do Brasil, que é também a crise da representação da política, dos modelos da política. Na entrevista “Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial nas metrópoles”, Giuseppe Cocco analisa o ciclo de manifestações no Brasil a partir de junho de 2013 como sendo em parte uma consequência positiva dos 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, isso não aconteceu porque o governo tenha sido de “esquerda” ou socialista, mas porque “tenha se deixado atravessar – sem querer – por ume série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.” Na (( conspiração )) de que algo pudesse estar sendo implementado pelo privilégio de estar no poder (o socialismo?), Cocco avalia que o que o poder pode fazer, contudo é “apenas ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.” Contudo essa não parece ter sido a sensibilidade expressa pelo governo Dilma nos últimos meses, visto que, por exemplo, o modelo repressor das manifestações públicas primeiramente adotado para a Copa das Confederações em 2013 se extendeu não apenas evidentemente para o megaevento Copa do Mundo (sendo parte dela a Lei Geral da Copa) mas também para as favelas elas mesmas, como no caso da Maré, no Rio de Janeiro, onde se acopla com o curso de ‘pacificações’ ordenado pelo Governo do Estado. Ou seja, o megaevento é igualmente um aparelhamento militar do país, ele sela a compra e a implementação de políticas de ‘segurança pública’ que atuam, ao contrário, na repressão das periferias.
O posicionamento do governo diante das manifestações, a criminalização dos movimentos organizados, a prisão preventiva por “crimes que poderiam ser cometidos”, o julgamento de inocentes que portavam ‘artefatos’, assim como o extermínio incessante de jovens negros de periferia, crianças e velhos, reforça uma política de controle social que vem instaurando sensações e dúvidas sobre que tipo de poder, na verdade, ocupa o Planalto Central. As conspirações de que estamos ou continuamos em um regime de ditadura foi uma constante na passagem 2013-2014, ao passo que muitos movimentos de favela e contra o extermínio de jovens negros nunca deixou de assinalar “a ditadura (na favela) nunca acabou.” Essa espécie de zum zum zum e medo fez proliferar uma série de textos, dentre eles o que destaco de Bruno Cava, “A ditadura perdeu pero no mucho”, em que ele analisa como a ditadura na atualidade está constrangida, acuada, pela mobilização social.
“Não é que, com a redemocratização pós-1985, vivamos uma aparência de democracia encobrindo a perseverança da ditadura. Mas, sim, que continuamos a viver a própria ditadura, agora entranhada na democracia representativa, uma ditadura molecularizada, convertida em princípio interno de reprodução das relações sociais desiguais, nos mais diferentes níveis (renda, origem, racial, gênero, sexualidade), por dentro da democracia representativa.”
Cava afirma – junto com os movimentos – que “é preciso derrotar a ditadura sempre.” Mas esse derrotar a ditadura dos movimentos não é a mesma perpetração da “paz” da maneira como ela tem sido impressa pelo estado, no Rio de Janeiro no caso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), chamada pelos movimentos de Unidade de Porrada em Pobre. Dilma convidou os presentes em um discurso no começo de 2014 no Fórum de Davos na Suíça para a “Copa das Copas”, que seria para ela um momento de afirmar a paz, o papel principal do futebol… Mas bem, se a paz era o que se via dentro dos estádios – frequentado por uma maioria branca e abastada -, não era o que se via fora deles…
Há quem diga agora que a Copa de fato não aconteceu – ainda mais pela literal derrota da seleção do Brasil 0 x 7 Alemanha. Já gritavam os movimentos antes dela #Nãovaitercopa! Seria essa derrota um feito de (( conspiração )) ? Ou de corrupção? Ou uma grande mandinga dos movimentos sociais para quebrar o encanto de uma simbiose Estado desenvolvimentista=seleção, marcando uma perda histórica que destitui a força do Brasil-Brazis, e nos devolve os cuidados do brasiu menor?
Verdade é que sabemos bem quando as ruas reiventam gritos que estão exaltando mais e mais as linhas ativas dos estados vitais, das transformações sensíveis e da política como criação ela mesma. Nas passagens Brazil | brasiu | Brasis abrimos nossos mapas de análise de relações de força e de poder, tornando-nos mais atentos aos cheiros das ervas e das ervas daninhas.
No brasiu menor acho que somos todos Marias-do-socorro.
(*) Nervossssso, um tipo de nervoso que bate no osso, coisa constitutiva… definido por mim segundo expressão de Margit Leisner nos encontros do Vocabulário Político no Rio
(**) Querelas do Brasil, Maurício Tapajós e Aldir Blanc
Referências
Berardi, Franco (Bifo) (2012). The Uprising: On Poetry and Finance
Bruno Cava. “A ditadura perdeu pero no mucho”, 08/04/2014
Giuseppe Cocco (2009) MundoBraz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil. Rio de Janeiro: Record
Entrevista Giuseppe Cocco “Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles”, 25/06/2013
Querelas do Brasil
// por Aldir Blanc e Maurício Tapajós
(1978)
O Brazil não conhece o Brasil
O Brazil nunca foi ao Brasil
Tapir, jabuti, liana, alamandra, alialaúde
Piau, ururau, aqui, ataúde
Piá, carioca, porecramecrã
Jobim akarore
Jobim-açu
Oh, oh, oh
Pererê, câmara, tororó, olererê
Piriri, ratatá, karatê, olará
O Brazil não merece o Brasil
O Brazil ta matando o Brasil
Jereba, saci, caandrades
Cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, Guimarães, bachianas, águas
E Marionaíma, ariraribóia,
Na aura das mãos do Jobim-açu
Oh, oh, oh
Jererê, sarará, cururu, olerê
Blablablá, bafafá, sururu, olará
Do Brasil, SoS ao Brasil
Do Brasil, SoS ao Brasil
Do Brasil, SoS ao Brasil
Tinhorão, urutu, sucuri
O Jobim, sabiá, bem-te-vi
Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê
Madureira, Olaria e Bangu, Olará
Cascadura, Água Santa, Acari, Olerê
Ipanema e Nova Iguaçu, Olará
Do Brasil, SoS ao Brasil
Do Brasil, SoS ao Brasil